SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 9 - Maio de 2012

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A GRANDE ILUSÃO ANTICLÁSSICO-NARRATIVA DE JEAN RENOIR

Vinicius Bandera

O capitão von Raffelstein (Erich von Stroheim, ao centro) cumprimenta seus prisioneiros, o capitão de Boeldieu (Pierre Fresnay) e o tenente Maréchal (Jean Gabin) em A grande ilusão (La grande illusion, 1937), filme de Jean Renoir.

 

O filme A grande ilusão, dirigido por Jean Renoir, focaliza uma história que acontece no período da Primeira Guerra Mundial, ambientada num campo de prisioneiros de guerra franceses, ingleses e russos, sob o domínio alemão. No entanto, ele foge ao gênero clássico-narrativo de filme de guerra, tornado padrão pelo cinema estadunidense. Podemos adiantar que o protagonista do filme é o humanismo. Vamos, a seguir, explicitar este resumo.

Trata-se de um filme fora do padrão clássico-narrativo, sobretudo pelo fato dele ser ímpar, isto é, abstém-se de ser um mimetismo de vários outros filmes que lhe antecederam e outros que lhe viriam a seguir. Não é um filme de guerra, em que pese ter a guerra como ambiente geral. Menos ainda o é um musical, malgrado ter cenas nas quais as personagens cantam, inclusive de forma coreografada. Tampouco se trata de um filme de suspense, nem quando os planejamentos de fuga por parte dos protagonistas deixam no ar se eles conseguirão ou não realizar seus intentos. Um filme de amor, também não, a despeito de haver cenas que retratam o idílio amoroso entre a personagem principal e uma moça alemã que ele encontra em um caminho de fuga da prisão. Portanto, resulta inviável catalogá-lo em uma das várias categorias do cinema clássico-narrativo. Parece-nos evidente que A grande ilusão é deliberadamente (por parte de Renoir) uma subversão a este gênero. Então como poderíamos classificá-lo? Primeiramente, é mister considerar que estamos diante de um filme que avoca a pretensão de fugir a rótulos. Não obstante, se quisermos dar-lhe um rótulo, mesmo assim de forma abstrata, poderíamos tê-lo como um filme de autor, mais precisamente um cinema de autor, levando-se em conta o fato de a filmografia de Renoir ser um todo harmonicamente autoral. Um filme que é uma livre expressão do pensar cinematográfico de Renoir, assim como há filmes que são a livre expressão do pensar cinematográfico de Eisenstein, Pasolini, De Sica, Rossellini, Fellini, Buñuel, Carl Dreyer, Bergman, Godard, Cassavetes, Glauber, Candeias, Bressane, Sganzerla, etc.

Outra fuga ao paradigma clássico-narrativo tem a ver com o fato de as personagens do filme ser tão humanas quanto humanos reais. Quer dizer, não há a exacerbação de heroísmos nem a representação da figura do mocinho, além de outros clichés próprios do cinema clássico-narrativo. A duração fílmica e a história roteirizada não investem em “caras e bocas”, isto é, certas posturas e comportamentos dos protagonistas visando destacá-los como seres especiais, dignos de serem copiados pelos espectadores. Não há, portanto, as personagens e também os atores transformados em mercadorias, tal qual é contumaz vermos nos filmes identificados como indústria cultural, grande parte deles componentes do cinema clássico-narrativo.

Quanto ao enredo, o espectador não é tomado como cúmplice de sua construção, como soe acontecer com filmes do tipo clássico-narrativo. Ou seja, as cenas anteriores não sugerem as posteriores. O espectador torna-se refém de assistir ao filme cena por cena, quiça plano por plano. Em um filme clássico-narrativo, salvo exceções, se o mocinho sofre direta ou indiretamente um revés – e quase sempre isso acontece – o espectador é induzido a imaginar que ele agirá no sentido de reverter a sua adversidade, o que quase sempre consegue. Em A grande ilusão, a narrative não se dá em torno de uma trama e no desfecho da mesma, como é comum no esquema clássico-narrativo. A narrativa é conduzida em torno de fatos corriqueiros (o cotidiano se sobrepõe ao anormal, o que também vai contra a visão clássico-narrativa) que se sucedem, sem que uns tenham uma natureza de dependência em relação a outros. Assim, as relações de causalidade (tão cara a Platão, Aristóteles, Descartes e Kant, entre outros, além de ao gênero clássico-narrativo) e ternária (introdução do enredo, clímax e desfecho) não existem em A grande ilusão. Não há um drama propriamente dito a ser desenvolvido.

O filme aborda pessoas do cotidiano que são prisioneiras de guerra, mas a rigor são prisioneiras de si mesmas e de seus respectivos destinos. Estar prisioneiro de guerra aparece, portanto, como uma metáfora. Durante toda a narrativa não é ressaltada a história de vida de nenhuma personagem, o que não é comum no cinema clássico-narrativo, que tem o individualismo dos protagonistas como um de seus pontos centrais. As personagens são menos individuais do que coletivas. Importa mais para Renoir abordar a humanidade, a condição humana (para parafrasearmos Hanna Arendt), do que esse ou aquele indivíduo. Daí que a figura do herói, tão sublinhada no modelo clássico-narrativo, sendo mesmo um ponto nodal neste gênero, não é valorada em A grande ilusão. Pelo contrário, é deliberadamente diluída na figura abstrata do humanismo. O filme de Renoir é, portanto, se quisermos atribuir-lhe uma identificação mais imanente, uma obra humanista, que compreende os seres humanos de uma forma a mais real possível, sem o maniqueismo e/ou o heroicismo que se costuma encontrar no gênero clássico-narrativo. A propósito, a intenção de evitar o heroicismo, forjado pelo modelo clássico-narrativo, que busca confundir atores (Brando, Dean, Pacino, Delon, De Niro, Nicholson, etc.) com suas personagens na consciência (não crítica, segundo Grasmci; não distanciada, segundo Brecht) dos espectadores, induzindo estes, não raramente, a seguir padrões de introjeção de comportamentos exibidos na tela, é patente em A grande ilusão. Jean Gabin, a personagem principal, pode até despertar empatia (outra característica do clássico-narrativo, caudatária da fórmula poética aristotélica) nos espectadores, face ao seu carisma e ar de galã; não obstante, isto não é explorado por Renoir, pelo contrário.

Concluindo, um filme à margem do modelo clássico-narrativo, como o objeto destas considerações, tem uma maior possibilidade de provocar entre ele e o espectador um distanciamento semelhante àquele propugnado pela dramaturgia brechtiana. Distanciamento esse de natureza conscientizadora, ensejando a que o espectador se porte mais como sujeito do que como objeto, ainda mais levando-se em conta que ele elege esse tipo de filme para assistir, presumivelmente por que possuí uma consciência crítica (independentemente de seu nível de escolaridade) mais desenvolvida do que a daqueles que optam por um filme da indústria cultural, que é, no mais das vezes, mera forma de entretenimento, para não dizermos alienação. Em um filme como A grande ilusão, dificilmente o espectador se torna cúmplice a ponto de abandonar a si mesmo enquanto assiste à projeção e metamorfosear-se em um objeto de ilusionismo, tal qual o que sucede com alguém vítima de um mágico ou de um prestidigitador.

 

VINÍCIUS BANDERA é doutor em Sociologia na UFRJ e Pós-Doutor em História Social pela USP.

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