SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 8 – Abril de 2012

VER COM OLHOS LIVRES

A UTILIZAÇÃO DO SOM E DO SILÊNCIO EM A FESTA DA MENINA MORTA

Mariana Angelim

 

 

Daniel de Oliveira em cena de A festa da menina morta, de Mateus Nachtergaele; ao lado, cartaz do filme.

 

Falar, atualmente, da questão da sonoridade em um filme, seria falar o óbvio. É justamente o óbvio que é captado na grande maioria da produções audiovisuais contemporâneas. O cinema que justamente nasceu do casamento entre luz, som e movimento, hoje parece não se importar com um dos seus pilares. Não que as técnicas de som subjulgadas pela maioria, ao contrário, está sempre havendo um nojo jeito de ser captado algo que esteja mais próximo possível da realidade. Mas por que essa preocupação indispensável com a realidade? O real não é único e as manifestações sonoras de um filme também poderiam se prestar a manter certa distancia saudável do que é trivial, comum, evidente e, de certa forma, óbvio.

Talvez por uma influência massiva do modelo hollywoodiano ou apenas por uma certa preguiça e acomodação, a técnica de som hoje trabalhada no cinema é captar algo ainda muito restrito ao que está em quadro, com muito diálogo sempre e músicas em qualquer momento. As trilhas sonoras, por mais bem vindas que sejam em qualquer produção, hoje em dia ganham enorme destaque, exercendo um função quase que primordial no campo sonoro de um filme. Neste caso, portanto, os ruídos são quase que inaudíveis e as nuanças da voz imperceptíveis. É claro que essas definições são postas em um cenário mais geral, de produções de maior escala e maior acesso. Há, contudo, filmes que valorizam as possibilidades dadas com uma captação auditiva bem trabalhada, fora do padrão e do óbvio.

Este é o caso, por exemplo, do filme “A Festa da Menina Morta, do diretor estreante Matheus Nashtergaele. A trama que se passa no interior da floresta amazônica, tem o audio como peça fundamental tanto para narrativa quanto para florear ainda mais o filme. Por ser filmado dentro da Amazônia o som de bichos e elementos naturais estão presentes quase que o tempo todo. Estes ruídos dão tom ao filme enquanto uma captação extremamente realista ambienta o espectador numa trama em que justamente a realidade causa desconforto.

Ao contrário do modelo que foi posto anteriormente, o filme capta a realidade com a intenção de faze-la ferir ainda mais e não apenas concordar com o que se passa em tela.Tanto as falas do povo quanto os sons dos bichos são tão reais que assombram. Assim como quando o volume é mais alto ou mais baixo do que seria normalmente, isso nos conduz antecipadamente pra onde a trama vai nos levar em seu tempo natural. O som, neste caso, atua. Ele narra a história ao seu modo, é presente, é ativo. Se há diferença no tom, este conflito é proposital. Como quando se passa uma cena no interior de uma casa e, no lado de fora, um porco é posto para abate. A morte do porco, por mais que não de fato se relacione ao diálogo que se passa no interior da casa, é ouvida em tom muito mais alto do que o normal. Ouve-se mais o porco do que os atores, praticamente. É claro que isso não é sem propósito, o que traz à cena um valor muito mais trágico. O grito do porco nos perturba internamente e essa é a proposta da cena.

Com essa valorização do ruído a escolha foi “economizar” na trilha sonora. Esta, é composta por apenas uma música, a música-tema do filme. Em um único momento o personagem principal canta a música com sua voz em off e esta só aparecerá novamente quando subirem os créditos. Não há qualquer outra música no filme. Em alguns momentos, são captados sons provenientes de rádios, um show ou alguém ao violão, porém é algo muito mais ligado à ruído do que à trilha. Fica claro que o diretor abre mão desse artifício justamente para ligar-se nesta “hiper-realidade” do som diegético. Essa escolha se torna brilhante quando é comparada à trama e à estrutura do filme.

É, portanto, compreensível que haja também nomeáveis silêncios no filme. Por ser fiel ao som “real”, há diversos momentos sem diálogo ou trilha sonora, onde o filme fica apenas sobre os ruídos, num silêncio parcial. Estes momentos são especificamente fortes, onde não há nada para competir a atenção do espectador com a misancene. É o caso de uma cena de relação sexual entre pai e filho.

É assim que se dá, portanto, um filme de valorização de uma cultura brasileira marginalizada, um filme que constrói a áurea da floresta amazônica, um filme que mostra a vida de forma tão racional que assusta e consegue fazer isso tudo utilizando os componentes sonoros como aliados.

 

MARIANA ANGELITO é aluna do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense (Niterói - RJ - Brasil).