SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 3 – Abril de 2004

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CINEMA BRASILEIRO: ATUALIDADES E REFLEXÕES INSPIRADORAS

Roberto Moura

 

Nesse final do milênio, quando a atividade cinematográfica chega a seu centenário, assistimos a um amadurecimento de perspectivas fundamentais no encontro da História com o Cinema. Falo de um patamar epistemológico comum das novas contribuições que convergem e se associam, como das que se confrontam, representando orientações diversas, conflitos de opinião ou divergências ideológicas. Minha proposta é flagrar genericamente essas concepções que se assentaram num patrimônio comum, com uma breve referência estratégica à Lingüística e à Semiologia, para depois me estender a questões da História do Cinema Brasileiro, provocadas por velhas e novas leituras. Assim, procuro inicialmente resumir percursos para depois trocar abruptamente de assuntos, já que esses se referem e vão dando a perceber essa conjuntura das discussões sobre a atividade cinematográfica no país.

 

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Quanto à História, esse século serviu, pelo menos, para acabar de vez com a pretensão dos historiadores de enunciar irrefutavelmente como as coisas se passaram. Ainda nas primeiras décadas, começa a se democratizar, na comunidade acadêmica internacional, a compreensão de que o objeto da História não é o passado mas o próprio tempo, mais especificamente, as transformações dos fenômenos no tempo. A História, assim, se propõe como um conhecimento abrangente da realidade, assumindo como seu território tudo o que é humano, toda a realidade concreta e mental. Nesse sentido, então, considera-se a História como um saber que federa as demais ciências sociais,[1] configurando-se um processo de profunda contaminação recíproca entre esses conhecimentos, principalmente entre a História, a Sociologia e a Antropologia, que resulta numa significativa redefinição do pensamento histórico, quanto à sua metodologia e à sua temática.

Filha de seu tempo, a História ressurge em seu confronto com o presente e tenta escapar da erudição e do esoterismo para se comunicar de forma mais franca com a sociedade, multiplicando seus interesses, ultrapassando os limites da linguagem acadêmica. O que uma época pergunta a outra, na tensão entre o passado reconstituído e o presente vivido? Sem perder a perspectiva de uma História total, passa-se a pensar em Histórias, em diversos veios do pensamento histórico, cada um com sua perspectiva, metodologia e cadência próprias. Histórias-problema que constroem seus temas com base em questões conceitualmente postas a partir de documentos, pistas, sintomas; produzindo um conhecimento indicial, conjectural, certamente imperfeito, inevitavelmente aleatório, polêmico, e nunca inocente. Assim, consensualmente abre-se mão de qualquer pretensão de cientificidade, enquanto tenta-se adquirir maior clareza de propósitos, sistematicidade, e maior capacidade de interlocução entre os diversos veios do pensamento, se propondo a História construir, não objetivações, mas perspectivas da realidade.

Já o Cinema -depois de inicialmente ser considerado pelos intelectuais como um fenômeno secundário, uma forma superficial de entretenimento de massa manipulado por interesses de mercado, indigno de ser considerado pela História, nem os filmes podendo ser considerados como documentos legítimos para o trabalho historiográfico -, hoje se encontra legitimado como objeto de um campo histórico preciso, assim como uma referência para diversos campos do conhecimento, dos quais recebe uma atenção especial como fenômeno, fornecendo até, segundo alguns, elementos para a elaboração de uma contra-História (Ferro).

Herdeiro de todas as artes e meios de comunicação de massa, atingindo seu espectador através de diversos sentidos, fica claro que impõe-se para o Cinema uma abordagem múltipla e interdisciplinar. Compreende-se a possibilidade de representação, nos filmes, da multiplicidade de aspectos da realidade como do mundo das idéias e da fantasia -e essa abrangência é um ponto de proximidade entre o Cinema e a História -, e também a múltipla e complexa repercussão do Cinema na sociedade moderna. Assim, em sua abordagem do Cinema, a História vai considerar o "fato cinematográfico", um fato social total, com repercussões culturais, econômicas, políticas, etc., e como "fato filmico", os textos cinematográficos em si, os filmes. Firmam-se concepções que abordam a linguagem cinematográfica em sua especificidade, como uma forma própria de produzir sentido, através da manipulação de uma multiplicidade de códigos culturais, tendo como suporte códigos específicos, relativos à construção da imagem em movimento, e à montagem.

Se amadurece a compreensão da linguagem cinematográfica como resultado da absorção pelo pensamento dos primeiros cem anos do fenômeno, a atenção pela Linguagem é muito mais antiga, remontando aos primórdios da experiência humana, surgindo nos textos religiosos arcaicos, como definitivamente na Bíblia, na filosofia grega e, depois, na filosofia teológica medieval. No entanto, na modernidade essa atenção se torna um aspecto central de todo pensamento, quando a Linguagem é compreendida como a própria forma da humanização, uma chave para o pensamento e para a cultura.

Assim, hoje, já é corrente pensar na Língua, as línguas nacionais, como um sistema de modelação primário, como uma grade que dá forma a nossa apreensão do mundo; assim como conceber o Cinema como um sistema de modelação secundário. A Semiologia, abordando a produção do sentido nas outras linguagens, desenvolve um labor sistemático sobre a linguagem cinematográfica, quando já falamos de uma Cine-Semiologia. Assim, se o sistema narrativo cinematográfico criado no ambiente dos grandes estúdios americanos, por exemplo, pode ser descrito em seus múltiplos aspectos de forma absolutamente competente, por suas possibilidades descritivas, a História localiza o complexo comercial-industrial do Cinema Americano planetariamente hegemônico, observando seu impacto nas diversas cinematografias nacionais, tanto as restringindo, como inoculando nelas seus modelos empresariais e artísticos.

Essa cultura cinematogáfica, tanto de fundo histórico, como de fundo cine-semiológico, gestada por textos dos próprios realizadores, como Eisenstein, Glauber, e por críticos militantes, como Bazin, Paulo Emílio - personagens emblemáticos em suas dimensões nacionais e planetárias, a quem se juntam lingüistas, semiólogos, historiadores, psicanalistas, etc. que tomam o Cinema no centro de suas reflexões -, é politicamente radicalizada nos anos 70. Se discutem extensamente e se denunciam os efeitos ideológicos da linguagem dominante, seu "ilusionismo", que esconde do espectador seu caráter discursivo e manipulatório, enquanto diversas cinematografias nacionais e filmes revelando novas possibilidades da linguagem cinematográfica atingem o mercado, garantidos pela politização das massas e pelo papel exponencial que desempenham episodicamente intelectuais e estudantes. Idéias que, agora, são relativizadas, quando pragmaticamente se recupera a confiança na plasticidade e na capacidade de comunicação da linguagem cinematográfica corrente. Conquistas que se perdem, quando o cinema "multinacional" retoma o espaço perdido, e o imediatismo comercial torna os filmes mais previsíveis.

Evidentemente, podemos associar as derrotas políticas dos regimes comunistas e a sutil democratização da idéia da inevitabilidade da mundialização imposta pelo mercado, com a difusão, no meio intelectual contemporâneo, de uma visão desencantada e desmistificadora da linguagem frente à incapacidade do homem "pós-moderno" de discernir entre a imagem e a realidade, situação que implodiria a produção do sentido. Assim, seria a realidade impalpável e nossos valores deveriam se atomizar em uma constelação de pura relatividade. A perspectiva permite, como veremos, que se ponha em cheque, hoje, a própria possibilidade de considerar o Cinema Brasileiro como um objeto de estudo. No entanto, através de novos trabalhos de historiadores e analistas culturais, reafirma-se a possibilidade de se produzir conhecimentos não-dogmáticos sobre o mundo histórico, enfim, a possibilidade de se sustentar uma visão teleológica, ideológica, norteando um projeto, uma proposta, frente à sociedade. O que está em cheque é a própria possibilidade de se produzir sentido frente à opacidade cronotópica do imediato, a possibilidade de tentar fazer a racionalidade humana repercutir nas mudanças, tornando o homem não só objeto mas também sujeito da História (Marx), recuperando seu poder de iniciativa frente à barbárie do pragmatismo econômico através do conhecimento.

Essas conquistas e esses confrontos foram e são vividos de forma própria na errática, mas progressiva, elaboração de uma História do Cinema Brasileiro. De início, os setores cultos simplesmente ignoravam os filmes brasileiros, com parcas exceções como o Chaplin Club, cujo pensamento vai mais tarde repercutir em Paulo Emílio Salles Gomes, que é no país uma figura-chave na criação de condições técnicas e materiais para a produção de um pensamento sobre nosso cinema. De fato, o próprio Movimento Modernista não viu o Cinema Brasileiro passar, assim como ignorou - com a dupla exceção de Mário de Andrade - a cultura negra-urbana que, através da indústria cultural, daria uma identidade nacional a esse país. Aliás, nesse aspecto o Cinema foi relativamente privilegiado, pois toda a produção cultural associada à indústria cultural e aos espetáculos-negócio nacionais que tomava as páginas dos jornais desde a virada do século, não foi considerada pela História e, muito menos, por nossa História da Arte. Pois o Cinema Brasileiro começa a ser pensado nos textos de pioneiros como Pedro Lima, Ademar Gonzaga, ainda na década de 20, e, depois, por Caio Scheiby, Benedito Duarte, Alex Viany, Paulo Emílio etc. nos anos 50, para ser abraçado por uma geração despertada pelo Revisão crítica do Cinema Brasileiro, de Glauber Rocha, e alimentada pela riquíssima crítica cinematográfica que, já nos anos 60, se espalha pelos estados, e depois, com Paulo Emílio, adentra a Universidade.

Tratar o Cinema a partir do aspecto nacional tem a vantagem de articular seus diferentes aspectos com a plural idade de forças de um contexto sócio-cultural imediato, que sugerem caminhos e preocupações. Talvez ainda não tenhamos suficientemente elaborado o conceito de "Cinema Nacional", assim como certamente ainda não foram aproveitadas todas as possibilidades postas pela referência nacional; entretanto, já foi perfeitamente entendido que os filmes não podem ser ignorados pela História na compreensão de uma determinada sociedade. Certamente, para os países vindos da experiência colonialista, heterogêneos quanto à sua formação étnica e sócio-cultural, de nada valem os conceitos de corpus nacional, inconsciente coletivo nacional, sujeito coletivo nacional. Mas a necessidade de caracterizar efetivamente cada uma dessas novas nações que ganham identidades peculiares, mesmo que paradoxais, ao longo.desse século, de dar conta de populações de grandes cidades divididas entre diversos e desiguais partilhando de experiências e sentimentos regionalizantes e nacionalizadores comuns - é um desafio fundamental para a História e para as demais ciências sociais, que têm como uma inestimável referência as cinematografias nacionais.

Alguém já afirmou que o Cinema é contemporâneo da expansão internacional dos capitais, como das empresas "multinacionais"; no caso do Cinema - um eufemismo que recalca o fenômeno da expansão mundial das companhias americanas, com suas características invasivas e hegemonizadoras. Assim, aspectos ligados às características de cada circuito cinematográfico nacional contraposto à política cultural de cada país, são decisivos para a própria concretização de cada projeto cinematográfico. Um filme recebe sua indelével identidade nacional frente ao mercado, que favorece ou dificulta sua exibição nas diversas mídias e circuitos nacionais, seja ele mais ou menos aproximado a seu contexto sócio-cultural ou aos padrões impostos pela circulação prioritária dos filmes americanos. Essas constatações certamente problematizam, mas absolutamente não invalidam a perspectiva de elaboração de histórias dos cinemas nacionais, que se propõe, então, não apenas como uma empresa epistemológica mas também como uma atitude política, frente à perspectiva agressiva de uma mundialização hegemônica do mercado.

No nosso caso, paralelamente à afirmação de um Cinema Brasileiro, que, mesmo mantido em crise pela situação do comércio cinematográfico, entre assassinatos e renascimentos precários, se tradicionaliza no país, por momentos arrebatando o público ou dialogando com o que de ponta se produz no mundo - ganha consistência um pensamento sobre o Cinema, hoje principalmente no meio universitário, já que a crítica cinematográfica cotidiana perdeu substância entregue, em geral, nas mãos de inexperientes jornalistas generalistas ou de experientes divulgadores. E não apenas nos poucos departamentos especificamente voltados para o Cinema e para a linguagem audiovisual, representados aqui neste primeiro encontro do Socine, mas nos seus mais diversos setores.

É representativo desse momento, por exemplo, o ocorrido nesses últimos anos no Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense onde trabalho, inicialmente criado como um setor do Departamento de Comunicação voltado prioritariamente para a formação de profissionais de cinema. A partir de 92, quando ganha autonomia como departamento, paralelamente à crise do Cinema Brasileiro decretada pelo Collor, cresce o número de projetos de pesquisa sobre tema do Cinema Brasileiro, tanto desenvolvidos pelos professores como pelos alunos nos seus "projetos especiais" de conclusão do curso, interesse que agora se estende nas atividades de dois novos mestrados, "Ciência da Arte" e "Comunicação, Imagem e Informação", ambos do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade, que contemplam o Cinema, e particularmente o Cinema Brasileiro, em suas linhas de pesquisa. E como compreender a complexa dialética dessa historieta universitária?

Entre outras iniciativas significativas ocorridas no âmbito do IACS, fundamos um núcleo de estudos sobre o Cinema Fluminense, cujo nome homenageia o nosso Grande Othelo,[2] para atender a necessidades que, acredito, a Universidade Federal Fluminense - única no estado a dispor de um departamento voltado para o Cinema e o Vídeo, a que, agora, se articulam dois importantes mestrados - está vocacionada a atender. É quase desnecessário ressaltar a importância dos filmes realizados no Rio de Janeiro, berço e, notoriamente, a cidade onde mais se produziu cinema nesse país. No entanto, não existem bases de dados organizadas sobre essa importantíssima filmografia, e é preocupante a situação dos filmes, mesmo recentes, considerando que já se perdeu toda a "belle époque" -surto precoce, e quase desconhecido, entre 1907 e 1911, que produziu cerca de duzentos filmes por ano, no Rio -, assim como a maior parte dos filmes realizados até 30.

Assim, a proposta é disponibilizar esse tesouro cultural, trabalhando em complementariedade com outras instituições voltadas para o Cinema Brasileiro, tendo o núcleo como característica a preocupação específica com a cinematografia, e a produção de vídeo e televisiva, carioca e fluminense. O projeto se propõe a colocar esses filmes e vídeos à disposição tanto da universidade e dos estudiosos, como do meio cinematográfico e da sociedade em geral, organizando um acervo de informações e documentos acessíveis, através de atendimento pessoal e da rede internet. Inicialmente, disponibilizar a partir da estruturação de um banco de dados e de acervos específicos, as informações organizadas remetendo ao acervo da produção audiovisual do estado - os filmes copiados em vídeo para escapar aos altos custos das cópias em película cinematográfica -, aos acervos de imprensa e da bibliografia específica.

Uma proposta histórico-semiológica tem orientado as atividades iniciais, os cursos, os projetos especiais e as dissertações e seu projeto central, voltado para a representação da cidade nos filmes ficcionais de longa-metragem realizados entre 1954- 74, como a metodologia de organização do banco de dados. Essa proposta tem também como objetivo estabelecer uma interlocução com outros departamentos e projetos que abordam ou se valem da produção audiovisual, oferecendo referências para o convívio multidisciplinar.

 

Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, de Paulo Emílio Salles Gomes (São Paulo, Editora Perspectiva, 1974)

 

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Foi para nós particularmente inspirador o trabalho de Paulo Emílio, principalmente as leituras de sua obra-prima Humberto Mauro, Cataguases e Cinearte[3], que provocaram discussões quanto a seus aspectos teórico-metodológicos, de natureza inequivocamente, a meu ver, histórico-semiológica. Essa questão referente ao Paulo Emílio "teórico" já foi anteriormente tratada. Alfredo Bosi, em seu artigo Argüição a Paulo Emílio, fala do pudor "com esses assuntos" nesse texto sobre Humberto Mauro que Paulo, originalmente, apresentou como sua tese de doutoramento no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, quando foi orientado pela professora Gilda Mello e Souza. Bosi observa que o autor "foge meticulosamente a qualquer tentativa de enquadramento epistemológico mais rígido. Ela (a tese) não usa de nenhum jargão teorizante. O que é um bálsamo para o leitor. Fiquei até espantado de ver, duas ou três vezes, um 'diegeticamente' em cinqüenta páginas de prosa realmente concreta, sem espasmos tecnicistas".[4]

Mestre de toda uma geração de cinéfilos, em que se inclui sua própria orientadora, Paulo Emílio se envolve com a criação, em 40, do Clube de Cinema na Faculdade de Filosofia; na década seguinte, da Cinemateca Brasileira, do Curso de Cinema da Universidade de Brasília, abortado em 65 pelo governo militar; e em 67 lidera o Curso de Cinema na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde, a convite de Antonio Candido, já dava aulas no curso de Teoria Literária e Literatura Comparada. Naquele final de década, Paulo se vê instado, por sua posição institucional na universidade, a obter um título de doutor, quando já era uma celebridade do meio cultural e acadêmico, embora mal tivesse recebido o diploma de graduação na Escola de Filosofia, envolvido desde cedo na militância política e cultural. Gilda, que assume a tarefa de orientadora, no caso uma interlocutora privilegiada do "grande homem", também aborda a questão no seu artigo Paulo Emílio: a crítica como perícia,[5] quando se refere ao que chama de seu "método critico".

Tal método se definiria por sua "paixão pelo concreto", uma expressão cunhada por Antonio Candido, para caracterizar a atitude do grupo que publicava a revista Clima, onde trabalhava Paulo, expoente de uma geração que, como ela afirma, não produziu filósofos, mas que inaugurou no Brasil a moderna crítica de teatro e de cinema, além de ter renovado o pensamento dirigido para a música, a literatura e as artes plásticas.

 

"Na verdade, o relativo desinteresse pelas teorias, típico do grupo de Clima, é em Paulo Emílio uma práxis consciente, um estilo. Em vez de confrontar as posições teóricas em voga, prefere se debruçar sobre o filme na moviola. O que o preocupa é o real, o concreto, a obra, o que ela diz sobre o mundo, como o autor fala por seu intermédio. (...) não envereda nunca pela discussão teórica; (...) não perde tempo com o novo enfoque semiológico de Pasolini e de Metz. Não quer estar à la page."[6]

 

Gilda vai comparar o trabalho analítico de Paulo com os filmes brasileiros, sua assumida predileção madura, com a atividade de um "perito", que define como um homem menos preocupado com sistemas e teorias do que com a "prática da arte"; a que Paulo acrescentaria, a partir das necessidades de sua fantasia, elementos de análise iconográfica, de sociologia da arte, da psicologia da criação, do romance biográfico e da análise formal. Ela se estende sobre a questão, embora o pudor imposto por Paulo a impeça de ser mais precisa:

 

"O método caprichoso que descobriu por conta própria, impelido pela natureza peculiar do material que examinava e por irresistível vocação interior, se alia a uma escrita extraordinariamente pessoal, inconfundível. Ela foge de todos os modelos convencionais de linguagens e talvez se explique pela escolha tardia da carreira universitária. Quando chegou ao magistério superior para se transformar, na sua expressão pitoresca, num 'doutorando temporão', já era um intelectual consagrado e, no consenso geral, o maior crítico de cinema jamais surgido no Brasil. Tinha feito seu aprendizado por caminhos muito diversos dos companheiros de geração, não apenas nos bancos escolares, mas participando ativamente dos acontecimentos, que acabaram mudando o seu destino. Desde a extrema mocidade aprendera a acolher com igual fervor as paixões mais diversas, a política, os filmes, a pintura, as amizades, e o ensinamento de tudo isso fez com que muito cedo desconfiasse do valor exclusivo dos livros e das oscilações das vogas intelectuais. Foi assim que conquistou o estilo independente de vida que se reflete com fidelidade em sua escrita: uma escrita sem tempo, sem moda, que, como ele, soube preservar na disciplina da vida universitária, o mesmo frescor da juventude -a confiança na aposta, o gosto arriscado do imprevisto"[7]

 

Compreendendo o aparente excesso como sendo simplesmente a admiração da discípula/orientadora, a que se soma o gostar da amiga sensível, podemos perceber bem, através do seu texto e das leituras dos livros e artigos de Paulo Ernílio, o temperamento e o estilo de um homem que aliava a uma cultura diversificada e obtida de maneiras não formais um grande talento como crítico e, especificamente, como escritor. No entanto, acho que ainda não é bastante, e que devemos ir adiante por essas pistas relutantemente confessadas na compreensão do pensamento teórico e da astúcia metodológica de Paulo, mesmo considerando as advertências implícitas em suas atitudes, tão bem compreendidas por Bosi e por Gilda. Considerarmos nesse intento, além da mera ludicidade de espreitar seu texto denso, ma duro e divertido, a importância de retomar ao pensamento do Paulo como uma referência rica para a formulação teórico-metodológica de novos projetos sobre Cinema Brasileiro.

Assim, tomamos como objeto de reflexão seu livro, procurando abordar sua estrutura abstrata, pensar sua organização teórica e os procedimentos de um autor "paciente como um explorador, metódico como um egiptólogo, desconfiado como um detetive e sutil como só ele", como definiu o "orelhista" da edição francesa do seu livro sobre Jean Vigo. Afinal, isso se impõe para quem preza o Cinema, e particularmente o Cinema Brasileiro, universo que o livro sobre Humberto Mauro abrange de forma mais ampla do que se supõe. Nele, o autor vai exercitar uma proposta analítica implícita, mas que me parece perfeitamente configurada, que se concretiza no resultado do texto, que podemos considerar como um amadurecime.nto de todo seu percurso como cinéfilo e crítico refinado, bem temperado por suas convicções políticas e por seu paulistismo generoso e internacionalista.

Dois aspectos a serem registrados já na introdução do texto, intitulada de Motivação, são, primeiro, a forma como o autor apresenta o projeto, a partir do amadurecimento de sua percepção de Humberto Mauro -a quem encontra ocasionalmente em 40, quando não lhe dá grande importância, se aproximando de sua obra e, depois, do próprio Mauro, por conta de suas tarefas acadêmicas -, e, segundo, como ele se insere no texto, como personagem/autor, escrevendo na primeira pessoa, propondo uma interlocução informal com o leitor, quando a oral idade da escrita só acentua sua elegância e fascínio, que do relato reflui para o autor.

Essa instabilidade idiossincrásica que se instaura explicitamente, propõe o projeto epistemológico, quando o leitor/interlocutor é inteirado do itinerário da obra, sem que o autor explicitamente apresente suas referências teóricas ou antecipe sua estratégia metodológica, como já foi ressaltado, embora se refira à evolução do trabalho - aos filmes e a outros documentos compulsados, a visitas, encontros, etc. - e à sua insatisfação em relação a uma "visão oficial" de Humberto e de seus filmes, oferecida pelos jornais, revistas, programas e livros, muitas vezes informados pelo próprio Mauro, o que serve de motivação para a tese.

Dois capítulos iniciais dão conta, por um lado, da história econômico-político-social da Zona da Mata a partir do século XIX, a zoom partindo da situação (inter)nacional para a zona mineira, se assentando na formação e no desenvolvimento de Cataguases, focando a família de Mauro, que chega ao Brasil, em suas atribulações e conquistas, e mais especificamente ainda, sua infância e juventude. A partir daí, nos cinco capítulos seguintes que constituem a parte substantiva da obra, o livro continua avançando linearmente no tempo, acompanhando a carreira cinematográfica de Mauro em Cataguases, que se estende de 1923 até 30 com o fechamento da Phebo, sua produtora. A linearidade da narrativa só é interrompida por um capítulo, em que o autor se reporta ao ambiente "cinematográfico" carioca, que dialogava diretamente com o cinema de Mauro em Cataguases, e que, no momento seguinte, o capturaria para trabalhar no Rio, onde Mauro se estabelece para realizar o resto de sua obra cinematográfica. Essa segunda parte de sua vida e de sua obra seria objeto de um segundo estudo que Paulo Emílio nos prometeu escrever e, infelizmente, não pode cumprir.

A conexão dessas duas partes, a primeira dando substância histórica e construindo o caráter e o imaginário matricial de Mauro, e a segunda em tomo de seus primeiros filmes – já fora questionada por Bosi, que argüia quanto à "função lógica" da primeira em relação à segunda, uma vez que os elementos histórico-biográficos oferecidos vão muito além de um relato anedótico. Não atendido explicitamente pelo texto de Paulo, elabora uma proposta em que tal conexão, entre infância – fixações e constrangimentos -e obra cinematográfica -a obra imatura -, poderia render a partir de uma leitura que se valesse da psicanálise existencial sartriana articulada à sociologia. No entanto o autor, como ele observa, não realiza "essas operações" embora ofereça fios nítidos para que isso aconteça.

O próprio Bosi responde parcialmente sua questão, quando observa que a epistemologia de Paulo obedece ao princípio evangélico do "quem tiver olhos, veja; quem tiver ouvido, ouça". Mesmo crítico, como se impõe a uma amigo, o próprio Bosi relativiza a pertinência de sua argüição: "O ceticismo em relação a todo discurso de causa.efeito, a aversão à linguagem probatória, me parece que foram levados um pouco longe; daí a impressão, injusta decerto, de um empirismo excessivo, de um descritivismo sem freio. Injusta, porque as peças para a feitura de um hipótese (existencial e social) estão todas, na tese, admiravelmente expostas".[8]

Assim, vai-se compreendendo, pouco a pouco, uma proposta que busca reconstruir a vida e a obra de Mauro com os documentos historicamente disponíveis, a partir de determinados pontos de vista e de determinadas hipóteses analíticas que, se não são antecipadas, vão se materializando frente aos olhos do leitor, como que evitando que qualquer pretensão de cientificidade ou de totalitarismo analítico possa ser confundido com o fervor argumentativo do autor.

A meu ver, efetivamente, Paulo Emílio não atende totalmente à proposta de Bosi em sua tese, embora construa elementos para que ela possa ser trabalhada. Mas isso não significa que o texto peque por não ter propostas consistentes ou por não dar conseqüência a seu movimento. Para chegarmos a essa proposta não enunciada, mas implícita, observamos, inicialmente, dois aspectos fundamentais associados que a possibilitam: a utilização de um registro de escrita diverso do texto acadêmico-convencional, se valendo de recursos do memorialismo e da literatura e, em segundo lugar, a superação da relação convencional fenômeno/contexto por uma tessitura onde interagem diversos veios descritivos e analíticos.

Escrevendo na primeira pessoa, assumindo uma relação "pessoal" com o leitor, a quem nutre com sua história e com suas elucubrações, proporciona-lhe, por vezes, momentos de humor e insights que consagram essa intimidade -o texto ganha o tom de uma oralidade memorialista que sua imaginação impele à literatura, não no que se refere à criação de fatos fictícios, mas à utilização livre dos seus recursos narrativos e descritivos. Essa utilização exponencial de outras possibilidades da linguagem em textos histórico-analíticos -me lembro, nesse sentido, de outra obra prima, também relativamente pouco conhecida e nunca mais reeditada, que é O negro no futebol brasileiro de Mário Filho -, é o elemento estilístico que permite que seja superada no texto a relação fenômeno/contexto, clássica nos estudos culturais marxistas, quando questões amplas do universo econômico e político passam necessariamente a anteceder a abordagem de um autor ou de sua obra. Na tese, determinadas temáticas vão se explicitando por sua recorrência, se estabelecendo uma tessitura entre estes fios, cuja interligação propõe de forma explícita ao leitor, através da sucessão de sub-capítulos em que configura o andamento de sua vida e de seu cinema.

Mas defendo que a extensa aposta na capacidade de compreensão do leitor e a recusa em aprisioná-lo num conclusivismo fácil, não implica, na tese, na ausência de caminhos teórico-metodológicos consistentemente desenvolvidos e arrematados. Muito ao contrário, "o ceticismo em relação a conclusões unívocas de causa e efeito" é um aspecto central de um ambicioso projeto epistemológico, propondo-se Paulo a construir uma arquitetura da realidade através da pluridimensionalidade dos documentos e da pluralidade de perspectivas, assumidas frente a uma diacronia a partir da interseção de diversas temporalidades.

Invertendo a mão do fastio acadêmico e do pudor, procuro relatar mais concretamente essa proposta, peça exemplar a ser considerada em sua dialética pelos novos projetos, procurando eludir o fascínio informal do texto e ser esquemático. Assim, percebo três "fios" principais do seu pensamento, cada um remetendo a um determinado campo do conhecimento e sua metodologia. Cada um tendo um objeto imediato, vinculado a um aspecto do artista e de sua obra, e um objeto profundo, mais abrangente, remetendo a aspectos centrais da história da sociedade e do cinema brasileiros. Assim como é central a tessitura que esses fios do pensamento traçam entre si, em sua constante interlocução proposta pela estrutura de sub-capítulos, cada um dando sequência a um dos fios ou o complementando a partir de um novo prisma, a partir de motivações postas que evidenciam sua interatividade.

O primeiro fio é o aspecto biográfico proposto como objeto manifesto da tese, e podemos considerar que todos os elementos constituintes do livro servem para plasmar sua síntese como pessoa e como artista. Assim, a biografia é suscitada por uma multiplicidade de temas e aspectos que vão, de alguma forma, se imprimir em sua sensibilidade, em seu caráter e em sua obra. A abordagem de Mauro como protagonista da obra é extensa e criativa, potencializando múltiplos documentos sobre os acontecimentos no universo do biografado como forma de superar uma precariedade estrutural - ah, a questão da memória nacional -, sendo expandida pelo confronto com seus contemporâneos, contemplados por sub-biografias. Esse último procedimento é desenvolvido na construção de "mestres" de Mauro, personagens centrais que servem para ressaltar fases e passagens do protagonista, transmissores de conhecimentos e de restrições que apontam tanto na direção da estética do seu projeto cinematográfico como de seus condicionantes ideológicos.

Assim, o próprio caminho metodológico argumenta por trás da biografia parcial de Humberto Mauro (até 1930), passando do relato da dinâmica existencial do homem para uma história das mentalidades das elites nacionais. O encontro do patriciado rural decadente ou garantido pela política-negócio,

com os técnicos e com as informações que vêm das metrópoles - e nesse sentido foi elaborado o capítulo sobre o meio cinematográfico carioca em torno da revista Cinearte -, revelando a duplicidade de mundos freqüentados por Humberto e como nele se definiam as relações de discurso e poder. Esse capítulo, que serviria como canal umbilical entre a tese e o texto seguinte sobre Humberto maduro, costura sua relação com um dos seus mestres, Ademar Gonzaga, influência preponderante, emblemática do seu contato com a metrópole e com o Cinema americano, cuja crise seria o contexto de sua obra prima Ganga Bruta, certamente um dos temas centrais da obra seguinte que Paulo Emílio nos ficou devendo. Aqui são ressaltados aspectos contraditórios do modernismo nacional, seu conservadorismo burguês sob a crescente influência da poderosa civilização norte-americana através de seu cinema.

O segundo fio que o texto desenvolve é o surgimento da personalidade cinematográfica de Humberto Mauro. Se uma proposta psico-semiológica não foi atendida na extensão que vislumbrou Bosi - as fixações da primeira infância dando substância à elaboração cinematográfica, condicionada pelos conhecimentos e ideologias dos "mestres" -embora a todo momento o autor se refira à penosa reelaboração do passado na construção do moderno nos filmes do primeiro Mauro -, efetivamente a tese, na abordagem do cineasta, elabora uma história estilística do Cinema Brasileiro, relatada a partir da absorção do sistema expositivo do cinema industrial pelos nossos realizadores, e, assim, de sua peculiarização no nosso ambiente cinematográfico. Mais uma vez o tema imediato, Mauro cineasta ou os filmes de sua primeira fase, se estende num tema mais amplo, a partir da caracterização de uma situação de hegemonia cultural, da capital sobre a província, do país produtor para o país exibidor e de nossa "incompetência criativa de copiar", outra tese cara a Paulo. Os filmes rodados progressivamente em Cataguases cotejados com filmes estrangeiros tornados "modelares" e com a produção nacional daquele momento. O tratamento meticuloso na descrição dos filmes de Mauro e de alguns outros que com eles dialogam, de forma imediata definindo a formação uma personalidade cinematográfica, como, considerados metonimicamente, dando substância a uma História Estilística do Cinema Brasileiro.

No tratamento das produções da Phebo Filmes, com que se materializa seu percurso de aprendizado cinematográfico, da mera manipulação das ferramentas até o desenvolvimento de um artista regional que incorpora, relutante, as exigências comunicacionais e os atrativos de espetáculo referenciados pelo cinema americano e pela experiência das platéias cariocas – Paulo Emílio vai realizar uma interessante empresa semiológica com a reconstrução filme a filme, que é habilmente ajustada às condições desiguais da tarefa. Na verdade, Paulo Emílio lida tanto com filmes dos quais tem cópias perfeitas, reportagens e críticas pesquisadas, e, um luxo, que contou com a companhia do velho Humberto lado a lado na sala de projeção e na moviola, como com filmes, os primeiros, dos quais pouco restou além de parcos fotogramas, e dos quais o próprio autor e alguns dos seus participantes ainda vivos, todos procurados, pouco se lembravam.

O interessante é o trabalho, que partindo de maior ou menor riqueza de fontes, procura reconstruir o filme, inicialmente descrevendo os documentos, e inclusive as circunstâncias dos depoimentos, obtidos. A trama do filme é descrita num processo que parte da concretude da fábula para sua abstração em movimentos dramáticos, pólos de ação, para chegarmos, na intimidade da linguagem cinematográfica, a seus temas e teses. Temas que se confrontam, explícita e implicitamente, com os elementos trazidos na primeira parte do livro se referindo à sua infância e formação, assim como com o impacto em Mauro de seu convívio adulto na movente sociedade nacional. Esses temas são considerados através da leitura de determinados códigos como, por exemplo, o que se refere ao que hoje chamamos a direção de arte - a cenografia, os figurinos, etc. -, ou abordando os códigos de construção da imagem, no uso dos primeiros planos. As teses, partidos ideológicos, teleologias conjunturais, articulados aos conflitos da ideologia modernista metabolizados em texto cinematográfico, o confronto com os "mestres" e a afirmação de uma cidadania cinematográfica.

O terceiro fio do pensamento da tese são as relações de produção e mercado dos filmes de Mauro, quando mais uma vez o tema é ampliado, tanto pelo confronto com o trajeto de outros filmes do período, como por uma percepção que busca articular as regras do mercado cinematográfico nacional na direção de uma História Econômica do Cinema Brasileiro. Esse aspecto referente a essa história econômica, como os demais, poderia ser decomposto em sub-histórias, ou associado a outros veios históricos que apóiam sua exposição no texto. Desta forma, observamos algumas elaborações secundárias na tese, como uma História Tecnológica do Cinema Brasileiro contida nas transformações das condições de produção nos filmes, e uma História da Crítica Cinematográfica Brasileira que surgem, aqui e ali, nos sub-capítulos que se referem à exibição dos filmes e ao seu impacto na sociedade - sub-fios perfeitamente delineados, subsidiados por percepções específicas e por sugestões temáticas e metodológicas.

Mais uma vez o trabalho minucioso na exploração criteriosa e gentil das fontes e a sistematicidade/liberdade analítica, que torna determinadas questões recorrentes mas suscita digressões, que explora os filmes de Mauro, não se furtando a articulá-los com a situação ampla e peculiar de produção, distribuição e exibição de filmes brasileiros no Brasil - permite que pense~os em concepções metodológicas pertinentes a serem trazidas para a oportunidade desse fim de milênio.

Recapitulando, defendo a idéia de que o texto de Paulo Emílio é mais do que uma obra de divagações ensaísticas potencializadas pela erudição e pelo talento memorialista/ literário de um grande intelectual brasileiro. O livro resiste a uma argüição que busque as linhas mestras em que constrói seus temas, Sendo também mais do que uma biografia de Humberto Mauro ou uma visão analítica de seus filmes. Percebo então, uma vez que a tese trabalha com uma perspectiva diacrônica, o partido da História, que se desenvolve em três veios específicos com relativa independência e cadência própria, perfeitamente configurados e postos em relação - uma História das Mentalidades, uma História Estilistica e uma História Econômica. Cada um delineia metodologia própria estabelecida na configuração de seus objetos, formulados na tensão entre um aspecto específico, ligado a Humberto Mauro e sua obra, e um aspecto geral, vinculado ao Cinema Brasileiro. Ressaltei, ainda, a forma como a tese supera a relação entre fenômeno abordado & contexto, através da tessitura desses fios históricos, produzindo assim múltiplos contextos específicos na construção dos seus objetos.

Essa concepção é possibilitada estilisticamente através de dois procedimentos centrais: primeiro, através da divisão dos títulos em sub-capítulos, tendo cada um destes um aspecto histórico dominante, sendo a sucessão desses sub-capítulos articulada por relações de complementariedade: ou avançam trazendo novos elementos da mesma questão, ou explicitamente suscitam a percepção do homem (do artista, da classe, do brasileiro) e do filme (do cinema, da estética, do Brasil) por outro prisma. E, segundo, através da emergência do autor-personagem que se vale do arsenal estilistico do memorialista e do literato, que tem a volúpia analítico-descritiva avalizada pela coerência do arcabouço e do percurso teórico-metodológico praticado.

Assim, ressalto a riqueza teórico-metodológica do texto, procurando, para tal, esquematizac seus propósitos e procedimentos - questões que podem ser aprofundadas noutro trabalho que ultrapasse os limites dessa comunicação. Além desses aspectos comentados, outras questões devem ainda ser exploradas no seu livro. Pensemos, por exemplo, na trama dos diversos tempos que se confrontam no texto, o da produção e exibição dos filmes com o tempo do analista em seu encontro com o artista e seus filmes, percebendo que interrogações o pensamento culto e politizado dos anos 70 propunha aos tempos de Mauro. Outro aspecto, no capítulo sobre a Cinearte, é a simultaneidade proposta entre dois tempos civilizatórios vividos por Humberto entre o universo de Cataguases e sua progressiva polarização pelo Rio de Janeiro.

Por último, volto a lembrar o vínculo estreito do trabalho de Paulo Emílio com as circunstâncias do Cinema Brasileiro, a forma como ele procede pragmaticamente para superar a precariedade da situação de nossa memória cinematográfica, da dificuldade do acesso às cópias e demais documentos, parcos, relativos à atividade cinematográfica, configurando mesmo uma metodologia ajustada a suas condições de pesquisa, capaz de contribuir para a elaboração de uma história complexa do Cinema Brasileiro.

 

Historiografia clássica do cinema brasileiro: metodologia e pedagogia. de Jean-Claude Bernardet

(São Paulo, Annablume, 1995)

 

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Mas seria epistemologicamente legítimo nos voltarmos para uma História do Cinema Brasileiro? Essa visão histórica da atividade cinematográfica no Brasil, que configura com Paulo Emílio uma passagem qualitativa sintetizando o esforço dos pioneiros, seria efetivamente uma tradição saudável, capaz de armar nosso olhar para pensarmos sobre os filmes brasileiros? As perguntas se justificam, postas por Jean-Claude Bemardet em Historiografia clássica do cinema brasileiro.[9] A postura instigante do livro me permite, ao comentá-lo, retomar de forma mais pontual questões tratadas até aqui nessa comunicação, esclarecendo minhas posições e permitindo até que, através desses comentários, se vislumbre, por suas oposições, um pouco do ambiente cultural e ideológico da pesquisa, da crítica e da produção audiovisual hoje no país, vivido na universidade, na imprensa, nas editoras, como no meio cinematográfico e nas secretarias estatais voltadas para a produção audiovisual.

Bernardet vai colocar inicialmente em xeque a formulação dessa História do Cinema Brasileiro -exemplificada através de vários textos, entre eles Panorama do Cinema Brasileiro: 1896-1966, de Paulo Emílio, um panfleto militante mimeografado na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo -, pois ela teria sido escrita unicamente voltada para a produção de filmes, desconsiderando outros aspectos fundamentais da atividade, como a exibição de filmes do país. Por isso, é responsabilizado o corporativismo nos cineastas brasileiros.

Evoluindo, Bernardet afirma que o Cinema Brasileiro não seria um objeto de estudos per si, e defende a extinção da disciplina que estuda o Cinema Brasileiro na universidade, propondo simplesmente integrar seus temas e objetos na matéria abrangente sobre a História do Cinema. Comento, nos limites dessa comunicação, apenas esses pontos centrais do texto, e especulo sobre seus sintomas.

Por exemplo, quando o livro se ocupa, com sua visão ultra-vigilante, da celebração do "nascimento do Cinema Brasileiro" no dia da famosa filmagem de Afonso Segreto em 1898, no tombadilho do navio em frente ao Rio de Janeiro – atitude que considera ingênua e intelectualmente obsoleta -, mesmo aceita a veracidade documental do acontecimento, não satisfeito, o autor questiona: Havia película na máquina? Se havia, foi revelada? Estaria Afonso "treinado" em operar a câmera? Teriam sidos os dias entre dezembro de 1897 e maio de 1898 de sua estadia em Paris, suficientes para tal? E as diferenças climáticas teriam sido por ele consideradas? Foi o filme exibido? Vigilância à parte, me parece absolutamente corrente e admissível a escolha de uma data para lembrar a atividade cinematográfica no país, e a meu ver a escolha foi feliz, pois tanto o fato - um italiano empunhando uma câmera francesa polarizado pelo carisma do Rio de Janeiro -, como o homem - Afonso Segreto, realizador da maioria absoluta dos primeiros filmes aqui realizados nos primeiros quase dez anos -, são absolutamente representativos do início do Cinema no Brasil.

Referindo-se, como exemplo para demonstrar a inconsistência dessa história escrita por esses alguns, ao momento que ficou conhecido como a "bela época" do nosso cinema – quando, no Rio, entre 1907 e 1911, se produziram cerca de duzentos filmes por ano --, Bernardet duvida da ceitação desses filmes pelo público carioca da época, afirmada no texto de Paulo Emílio e no capítulo A Bela Época, de minha autoria,[10] alegando que não dispúnhamos de fontes que permitissem tal conclusão, que seria sustentada apenas por "posições nacionalistas ultrapassadas".

Mas vale ressaltar que Paulo estava familiarizado com a pesquisa sobre os primórdios do cinema carioca que Vicente de Paula Araújo realizava através da repercussão dos filmes nos jornais, depois publicada com o título de A Bela Época do Cinema Brasileiro,[11] e que quando escrevi meu texto já tinham sido publicados pela finada Embrafilme os dois capítulos do Guia de Filmes[12] que trazem informações absolutamente consistentes sobre o período, ambos citados nesse volume da História do cinema Brasileiro, organizado por Fernão Ramos.

Efetivamente aquele que foi chamado, anos depois, de Bela Época – Paulo Emílio fala de "harmoniosa situação" reunindo produtores e exibidores de um só lado – foi um momento extraordinário! Sem ir muito longe, para uma cidade que ainda não chegara a seu primeiro milhão de habitantes, é impossível recusar a importância e a repercussão popular, documentada pela imprensa, de tal produção; filmes produzidos pelos próprios donos das salas de exibição e imediatamente exibidos. Não, não eram filmes realizados por instituições culturais nem através de benefícios fiscais. Eram filmes gerados pelo mercado, que só eram feitos porque se pagavam. Assim, a repercussão popular é confirmada pela bilheteria que sustentou um movimento cinematográfico, na cidade, deste porte.

Por que tal interesse demolidor, tamanha má-vontade com alguns momentos exponenciais dessa modesta epopéia?

Bernardet observa que enquanto George Sadoul elege, para representar o "nascimento do Cinema", uma sessão pública e paga - o que me parece perfeito -, nós escolhemos uma filmagem como marco inaugural do Cinema Brasileiro, o que só pode ser compreendido - diz ele - como uma "profissão de fé". Desta vez concordo: se conceituamos como "Cinema Brasileiro" a produção de filmes no país, considerando as características históricas desse primeiro século de cinema, quando os filmes produzido nos Estados Unidos e por suas companhias se tornaram produtos hegemônicos no mercado cinematográfico internacional, ameaçando a existência das cinematografias nacionais -se impõe um apreço particular por essa cinematografia nacional, uma profissão de fé em favor desses filmes e dos que os realizaram, preservando junto às novas gerações a compreensão de sua importância e necessidade para o país. Um nacionalismo internacionalizante seria a minha posição, que se contrapõe hoje a uma mundialização regionalizada, mas isso é assunto para outra conversa.

Ingênuo seria desconsiderar a importância do cinema estrangeiro e, mais especificamente, do Cinema americano exibido aqui, e de seu impacto no público brasileiro. Mas uma coisa é falar do Cinema no Brasil e outra é se referir a Cinema Brasileiro, aos filmes feitos no país por nacionais ou estrangeiros sob nossas circunstâncias e à sua repercussão na nossa sociedade e nas demais. Para mim é claro que o conceito de Cinema Brasileiro se sustenta tanto, semanticamente (distinguindo-se, por exemplo, do nosso consumo de filmes estrangeiros), como epistemologica e politicamente. Epistemologicamente, porque o recorte geo-político de nação ainda tem vigência plena no planeta, e como identidade para um filme traz condicionantes e limites culturais e econômicos óbvios. E politicamente, já que face à presença hegemônica do filme americano no mercado internacional e particularmente no mercado brasileiro, imposta econômica, cultural e até militarmente, é legítimo reivindicar a realização e exibição de audiovisuais brasileiros em nossa sociedade, assim como considerar esses filmes como patrimônio de uma cultura nacional.

Parece-me vaga a proposta de Bernardet de, com a extinção do Cinema Brasileiro como objeto, criar "um vácuo, espaço aberto para os recortes que fará o historiador -e o professor -, abrindo nova área de responsabilidades e de decisão".[13] Quanto ao fim da disciplina História do Cinema Brasileiro nas universidades e escolas, defendida pelo autor, tal atitude se justificaria tanto porque a disciplina seria sustentada apenas por um paternalismo acadêmico que traria como resultado a guetificação dos nosso filmes, como porque, afirma, os estudantes não manifestam "interesse espontâneo" pelo Cinema Brasileiro. Ora, a pertinência do enfoque das cinematografias nacionais não implica a exclusão de outras perspectivas, não impede que se privilegiem, também, outros partidos que desconsiderem a nacionalidade, tomando os filmes a partir de temas, gêneros, aspectos narrativos, etc Quanto à taxa de I.E. dos alunos, me parece um critério inconsistente e perigoso, que se somando a outras afirmações como a que assevera que "os cineastas brasileiros estão sumindo aos olhos do público, que ignora até sua existência", vão tornando o interessante e combativo texto de Bernardet num livro até certo ponto surpreendente e decepcionante.

 

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Complementando essa visão de atualidades, trazendo as tensões no pensamento contemporâneo para o ambiente das relações entre Cinema e História em nosso universo intelectual e artístico, proponho três pontos cruciais no desenvolvimento da História do Cinema Brasileiro para o próximo milênio. O primeiro, é a necessidade de superação de uma história sagrada (mestres e obras-primas) de nosso cinema por uma visão abrangente da nossa produção cinematográfica, já que a dificuldade de acesso a cópias e a documentos tem feito os pesquisadores incidirem excessivamente sobre determinados momentos, movimentos, cineastas, filmes, que a consagração preservou. Me parece, inclusive, que alguns desses temas foram excessivamente acionados, o que provocou um congestionamento de esforços e um certo esgotamento das análises. Essa questão transcende as possibilidades do pesquisador isolado, mas não o exime, sendo da responsabilidade maior do setor, da classe, das instituições, da universidade, do estado. Precisamos criar condições para a realização de estudos sistemáticos de um corpus largo das cinematografias regionais e nacional e para a sua disponibilização para a sociedade. Além do mais, o país não pode abrir mão desse tesouro cultural que corre o risco de desaparecer, e, se aguardarmos muito, pode ser desastroso.

O segundo ponto crucial é a exigência de uma maior consciência e consistência teórico-metodológica em nossos estudos cinematográficos, como resultado não só da absorção das múltiplas contribuições do pensamento moderno, mas, mais especificamente, do estudo e da reflexão sobre o trabalho dos nossos criticos e pesquisadores que se defrontaram com as condições concretas do cinema nacional.

E o terceiro, a necessidade de adensar a interlocução desses estudos cinematográficos com a produção de novos filmes e com a massa de espectadores no país, tanto através das publicações universitárias como, particularmente, através da renovação da critica cinematográfica em nossos jornais diários, permitindo que sejam decodificados e democratizados os termos desse debate pela sociedade brasileira.

Afinal, o progresso das idéias se dá através da contribuição milionária de todos e nada se joga fora, uma vez percebido o quanto e o que representa cada nova ou antiga contribuição. É nesse confronto que se definem os temas pertinentes a serem estudados, as prioridades de uma política cultural, as escolhas individuais e coletivas que fazem a diferença nos encontros e confrontos em cada nova encruzilhada.

 

Quero agradecer a meus amigos e colegas Mateus Araújo Silva e Ronaldo Reis, com quem troquei figurinhas na elaboração dessa comunicação.

 

 


 

ROBERTO MOURA é escritor, cineasta e professor do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense. Este artigo é uma comunicação originalmente apresentada no encontro organizado pela Socine – Sociedade Brasileira de Estudos Cinematográficos, em outubro de 1997, em São Paulo, e publicada em Cinemais número 10 – março/abril de 1998. Rio de Janeiro, Editorial Cinemais, 1998.

 

© 1998 – Roberto Moura

© 1998 1ª publicação – Editorial Cinemais.

© 2004 – SOMBRAS ELÉTRICAS

Permitida a reprodução, desde que citada a fonte.

 



[1] Confesso meu desconforto com o termo "ciências sociais", e só o utilizei na comunicação para facilitar a compreensão.

 
 

[2] Núcleo de Estudos Grande Othelo da Cultura e do Cinema Fluminense.

 
 

[3] GOMES, Paulo Emílio Salles, Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo, Editora Perspectiva, 1974.

 
 

[4] Argüição a Paulo Emílio, in: BOSI, Alfredo. Céu. inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. Editora Ática, SP. 1988.

 
 

[5] Paulo Emílio: a Crítica como Perícia, in SOUZA, Gilda Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo, Editora Duas Cidades, 1980.

 
 

[6] Idem.

 
 

[7] Idem.

 
 

[8] BOSI, idem.

 
 

[9] BERNARDET, Jean-Claude. Historiografia clássica do cinema brasileiro: metodologia e pedagogia. São Paulo, Annablume, 1995.

 
 

[10] MOURA, Roberto. A Bela Época, in: História do Cinema Brasileiro. São Paulo, Art Editora, 1987.

 
 

[11] ARAÚJO, Vicente de Paula. A bela época do cinema brasileiro. São Paulo, Editora Perspectiva, 1976.

 
 

[12] BERNARDET, Jean-Claude. Série Filmografia Brasileira, volume 1 (1897-1910), volume 2 (1911-1920). (N. do A.)

Donde nos perguntamos: o que faz um crítico e pesquisador cuja carreira se fez justamente em torno deste tal de Cinema brasileiro, querer renegar esta história? Sedução pelas "delícias" da tal de "globalização"? (N. do E.)

 
 

[13] BERNARDET, idem.