SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 5/6 – Novembro-Dezembro de 2005

LONG-SHOT: CINEMA E SEXUALIDADE(S), À LUZ DO MIX BRASIL 2005.

 

CINEMA E GÊNERO (I)

Denilson Lopes

 

Romy Schneider e Lilli Palmer em Senhoritas de Uniforme (Mädchen in Uniform - Alemanha, 1958), de Géza von Radványi - segunda versão do filme homônimo (1931) de Leontine Sagan.

 

No fim do século XIX, a sexualidade, como nos ensina Michel Foucault (1985), passa se constituir cada vez mais como central na constituição do sujeito moderno, num processo de valorização da intimidade que já vinha se processando desde o Romantismo. A centralidade da sexualidade na construção do sujeito moderno levou à proliferação de saberes que tratam desta questão como a psicologia, a psicanálise e a sexologia. Paralelamente a publicização do falar de si, que assumirá proporções nunca vistas na cultura de massa, como observamos pela quantidade de programas de televisão e de rádio, sites na Internet centrados nos debates sobre sexualidade, não raramente levando a uma espetacularização do privado; a intimidade passa a ser politizada.

É neste sentido que devemos entender o surgimento dos movimentos feministas, gays, lésbicos e transgêneros politicamente organizados, com suas origens no Ocidente, no final do século XIX, e tendo seu momento de emergência no Brasil, na segunda metade dos anos 70, no século XX, no contexto da abertura política pós-ditadura. A chave destes grupos reside na palavra visibilidade pública para combater preconceitos e formas de exclusão, muitas vezes associados aos discursos médico, legal e religioso; bem como buscar a igualdade de direitos na sociedade marcada pela universalização dos valores do homem euro-norte-americano, adulto, heterossexual e branco.

Não é minha intenção fazer o histórico destes movimentos, mas apontar sua importância para a compreensão de como a questão da sexualidade vai ser tratada na cultura, na arte, especialmente no cinema, e aqui, enfatizando suas contribuições teórico-metodológicas e analíticas. Para compreender esta guinada rumo à constituição de uma área de estudos de gênero - termo que ressalta a construção cultural da sexualidade para além de qualquer visão naturalista, essencialista - é fundamental lembramos um momento histórico. É nos anos 60, no contexto da Contracultura, que os movimentos feministas, gays, lésbicos e trasngêneros passam de uma visão meramente integrativa em relação às democracias representativas ocidentais, para contestá-la num plano mais amplo, articulando-se a propostas comunistas, socialistas, anarquistas e libertárias. Num momento privilegiado de questionamento das relações entre saber e poder, entre universidade e sociedade, emerge um novo intelectual engajado, não só definido pelas questões de nação e classe, mas também de etnia e gênero. Politicamente, a questão é como sair de um lugar específico e dialogar com o conjunto da sociedade. Teoricamente, inserir os estudos gays, lésbicos e trasngêneros nos debates centrais desta virada de século, a partir da experiência intelectual de um país periférico.

Paralelamente aos movimentos políticos, é importante frisar, no espaço universitário no contexto dos estudos de gêneros como área interdisciplinar de estudos a partir dos anos 60, com o estabelecimento de disciplinas, programas e centros de pesquisa bem como realização de congressos, a tradição dos estudos feministas a partir de uma dupla matriz: uma francesa, que teve seu grande momento, nos anos 60 e 70, ao dialogar com a psicanálise e a filosofia, contado com nomes como Luce Irigaray e Julia Kristeva; e outra, norte-americana, mais marcada por uma política de identidades, fruto das esperanças dos movimentos libertários dos anos 60, fonte da explosão multiculturalista dos anos 80, que se firma hegemônica no contexto da análise da cultura, nos anos 80 e 90, como podemos ver por seu próprio impacto no Brasil (ver BUARQUE DE HOLLANDA, H.: 1994) e que passar por um sério debate no contexto de um pós-feminismo ou feminismo nômade, como nos esforços de Rose Braidotti, e no Brasil, de Tânia Navarro Swain, como uma reação à crescente institucionalização da agenda feminista tradicional e um esforço de fazer dialogar a questão da identidade com a da diferença e deriva, tão importante para autores como Jacques Derrida e Gilles Deleuze, do assim chamado pós-estruturalismo.

Já os estudos gays, lésbicos e transgêneros são primordialmente um evento na academia norte-americana, encontrando grande desenvolvimento nos anos 80. Esta área sofre uma crítica nos anos 90 pela teoria/estudos queer, ao retomar uma radicalidade política na contraposição a uma visão integrativa e conservadora que o termo gay foi assumindo na sociedade norte-americana. O termo queer (ver LUGARINHO, M.: 2001, 33/40), no sentido comum um palavrão (bicha), é resgatado num sentido anterior, como diferente, estranho, para incluir simpatizantes heterossexuais, sendo paralelo como atitude política e teórica, ao interesse pelos transgêneros (incluindo aqui transformistas, travestis, transexuais e outras identidades entre o masculino e o feminino), pela bissexualidade e outros situações pós-identitárias como os pomosexual (fusão da palavra pós-modernidade com homossexualidade) e o pós-gay. O que me interessou nesta polêmica foi a complexificação da noção de identidade, na busca de posições mais fluidas mas não menos politizadas. Nos anos 90, a chegada destes estudos no Brasil, redimensiona nossa produção centralmente definida pelas ciências sociais e pela história, a partir dos anos 70.

Tanto os estudos feministas quanto os estudos gays, lésbicos e transgêneros têm um primeiro movimento de criticar representações sociais estereotipadas, os silêncios e as opressões. Esta abordagem sócio-histórica é fundamental parra quebrar núcleos da misoginia e da homofobia ao demonstrar que as diversas sociedades e os vários tempos históricos lidaram de forma bastante diversificada para além das dualidades masculino / feminino e heterossexualidade / homossexualidade. O preconceito se expressa na sociedade pelas violências físicas e simbólicas; na política, ao ser considerado um tema menor diante das transformações conduzidas pelos partidos e pelos sindicatos; bem como na universidade, ao não legitimar estes estudos em pé de igualdade com correntes de pensamento mais tradicionais.

Esta preocupação leva ao questionamento da cultura e da arte não como criadoras mas por ter um papel reafirmador ou crítico dos clichês das representações de gênero e de orientação sexual. Pelo seu impacto, o principal alvo passa a ser os filmes hollywoodianos e a televisão, pelo seu papel hegemônico na indústria cultural cada vez mais transnacional.

Num primeiro momento, como no caso de outros movimentos minoritários, foi e ainda é necessário mapear socio-historicamente as representações sociais das mulheres, homossexuais e transgêneros bem como desconstruir raciocínios simplificadores como o de que haveria um caminho progressivo e evolutivo da repressão à liberação. No clássico Celluloid Closet, história da homossexualidade no cinema, Vitor Russo identifica clichês como a da sissy, personagem masculino afeminado, normalmente em papéis pequenos em comédias, ou da possibilidade da apresentação de personagens lésbicas no auge da censura norte-americana, dos anos 30 a 50, mas apenas como vampiras ou presidiárias, na maior parte das vezes, como mulheres masculinizadas. No Brasil, este esforço pioneiro se encontra no trabalho de Antonio Moreno, A Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro, sendo ampliado mais recentemente por Wilton Garcia (2004). Lembrando que o estereótipo (ver DYER, R.: 1993; BHABHA, H.: 1998,) tem pelo menos um mérito em iniciar um diálogo que pode dissolver o próprio estereótipo pela dinâmica dos conflitos sociais.

A representação social possibilita uma política identitária de confronto e marcação das diferenças que, num primeiro momento, enfatiza uma luta política e teórica contra a repetição da imagens negativas em favor da necessidade de imagens positivas. Esta estratégia teve o papel de enfatizar a relação entre estereótipo, estigma e cultura mas nos conduziu a um outro extremo, ao criar novos estereótipos, desta vez idealizados e romantizados, com a dos personagens gays masculinos em recente comédias românticas como o novo herói romanesco. O que nos leva a defender hoje mais do que a necessidade de imagens positivas, ainda tão cara a vários militantes, a diversidade de narrativas.

Se a noção de representação, claramente se justifica na história, nas ciências sociais, nos estudos de comunicação social, muitas vezes, acaba por transformar a obra de arte em ilustração de problemáticas da realidade sem considerá-las como estruturantes. É fruto desta preocupação que nos anos 70, emerge a questão de gênero ser considerado como algo mais interno às obras artísticas e práticas culturais, e não meramente um tema . O trabalho de Laura Mulvey em seu clássico ensaio “Narrativa e Prazer Visual”, publicado no início dos anos 70, abre todo um leque de possibilidade ao associar a necessidade de abandonar a narrativa e o prazer visual cultivado pelo cinema hollywoodiano em favor de um cinema experimental, ainda mais próximo de um distanciamento brechtiano tão caro a vários cinemas novos. Este artigo influente produzirá um intenso debate e à medida que muito da produção das décadas seguintes buscará conciliar qualidade, mercado e público, arte e diversão, se produzirá quase uma inversão, como veremos no trabalho influente de Richard Dyer (1992) e, mais recentemente, de Steven Shaviro (2000), marcadamente influenciado pelo pensamento de Deleuze e Guattari.

Voltando um pouco ainda para os anos 70, é neste momento que emergem categorias como olhar feminino e homotextualidade (ver STOCKINGER, J.: 1978). Respostas formalistas tanto em relação ao Estruturalismo como ao New Criticism, com o risco de se enrijecerem se usadas de forma muito classificatória, mas que tiveram o mérito de ir além de apenas marcar o gesto identificatório do autor como criador engajado a partir das questões de gênero. A grande arte moderna privilegiou a linguagem sobre qualquer explicação biografizante. O autor foi apagado diante do texto, da obra, esta sim é que interessava. Se por um lado, falar em arte de mulheres e arte gay aparecia como um esforço militante de fazer falar na história do cinema e na atualidade sujeitos silenciados , o que foi logo articulado a um processo de segmentação do mercado, na criação de festivais e mostras pelo mundo a fora, mas que adotará estratégias mais recentes de politizar mesmo as relações entre identidade e consumo. Por outro lado, o interesse pelo espectador irá realizar uma desconstrução primeira do paradigma hollywoodiano do olhar masculino /objeto feminino. Ou seja, com exceção do melodrama, os gêneros cinematográficos eram feitos em grande medida para um público masculino ou para quem se colocava na sua posição. A glamourização da personagem feminina a prendia sempre como um objeto de desejo e de contemplação. Este processo exemplarmente estudado por E. Ann Kaplan (1998) em A Mulher e o Cinema , abre a porta para uma desconstrução do cinema comercial por cineastas como Chantal Ackerman em sua extensa obra, para não citarmos autoras fundamentais do cinema moderno como Maya Deren e Marguerite Duras, e, entre nós, Ana Carolina, que, desde sua trilogia composta por “Mar de Rosas” (1979), “Das Tripas Coração” (1982) e “Sonho de Valsa” (1987) até “Amélia” (1999/2000), realiza vigorosa reflexão sobre a condição feminina no Brasil, numa perspectiva de quebra de fronteiras nacionais, bem como por respostas narrativas mais tradicionais, mas não menos estimulantes como as de Jane Campion, que firma seu nome a partir do retrato da escritora neo-zelandesa Janet Frame em “Um Anjo em Minha Mesa” (1990) e Claire Denis que, desde sua revelação em “Chocolat” (1988), vem produzindo uma obra consistente na reflexão sobre gênero e etnia. Apesar do desenvolvimento dos estudos feministas no Brasil, não conhecemos um trabalho panorâmico sobre a questão da mulher no cinema.

Curiosamente, nos estudos gays e lésbicos, a questão de uma homotextualidade ficou mais presente na literatura (ver BARCELLOS, J. C.: 2002) do que no cinema. Se pela homotextualidade estava presente a preocupação não com o autor mas com o texto, que dissolvia a dualidade, tão cara aos marxistas, entre arte e sociedade e suspendia o problema das mediações em favor de consideração de qualquer prática ou produto como texto, ela possibilita estar atenta a traços e marcas sutis na produção anterior a Stonewall, marco da explosão do movimento gay dos anos 60, da política de afirmação pública da homossexualidade e da formação de uma cultura gay de consumo (ver NUNAN, A.: 2003) ou homocultura transnacional. Talvez mais fortemente do que nos estudos feministas, a determinação de um olhar gay desconstrói o par olhar masculino / objeto feminino ao ressignificar filmes que não foram feitos para um público gay, ao construir todo um jogo de identificações com as stars, sobretudo femininas, como personagens excepcionais que impõem ao seu mundo a sua diferença (ver Dyer, R.: 1987). O próprio melodrama, único gênero cinematográfico pensado para um publico feminino, é desconstruído pelo olhar gay, como observamos na obra de Fassbinder, do cruel “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant” (1972) ao quase hollywoodiano “Lili Marlene” (1981); em Almodóvar, sintetizado na sua obra-prima “A Lei do Desejo” (1986) e “Longe do Paraíso” de Todd Haynes (2002), o mais bem-sucedido realizador egresso do New Queer Cinema norte-americano. Se o melodrama é a forma permitida da entrada da mulher e do feminino no cinema, ele é transformado pela audiência e por criadores gays, demonstrando a importância dos estudos de recepção nesta área.

Podemos voltar a falar em uma estética, sem dúvida localizada e engajada num tempo e numa sociedade, ao invés de abstrata e universal, que emerge do embate com as obras mas procura confrontá-las, compará-las, estabelecer séries, linhagens, a partir de problemas, conceitos, categorias. Uma estética interessada, parcial e empenhada, sem que implique uma submissão a interesses de partidos políticos, classes e/ou grupos socais. Uma estética pop, indissociável de uma cultura de consumo, que não tem medo do fácil, da redundância informativa, do descartável, do afetivo e coloca no mesmo lugar o que antes chamávamos de popular e erudito. Uma estética híbrida, intertextual, transemiótica, multimidiática, ao invés de da busca de especificidade de uma linguagem cinematográfica (ver LOPES, D.: 2004). É a partir desta compreensão que a estética se encontra mais até do que com a homossexualidade mas com o transgênero através do camp.

O termo camp aponta para uma sensibilidade e a uma estética marcadas pelo artifício, pelo exagero, presente no interesse por ópera, melodramas e canções românticas. O camp se situa no campo semântico de ruptura entre alta cultura e baixa cultura, como o kitsch, o trash e o brega. Como comportamento, a palavra remete a fechação, ao homossexual espalhafatoso e afetado, ao transformista que dubla cantores conhecidos, tão presente em boates e programas de auditório, não só como clichê criticado por vários ativistas e recusado no próprio meio gay, quando se deseja firmar talvez um novo estereótipo ou pelo menos uma imagem mais masculinizada de homens gays, mas como uma base para pensar um política sustentada na alegria e no humor, como alternativa ao ódio e ao ressentimento. Através do humor, trata-se de uma estratégia do diálogo e de fluidez, não do isolamento e da marcação de identidades rígidas e bem definidas

Como categoria estética, o camp (ver LOPES, D.: 2002, 89/120) se insere e a experiência do transgênero numa longa tradição centrada no artifício, do Barroco ao Neo-Barroco, passando pelo Decadentismo, da metáfora do teatro do mundo às simulações tecnológicas. Esta oscilação entre o Barroco e o camp pode ser especialmente percebida desde Max Ophuls, Kenneth Anger à obra de Derek Jarman, como em “Caravaggio” (1986), seu filme mais conhecido, bem como no trajeto de Djalma Limongi Batista até seu trabalho mais forte, “Bocage , Triunfo do Amor” (1994/1997). Quanto à importância do Decadentismo de fim do século XIX, é importante lembrar como o dândi que teve em Oscar Wilde sua mais popular encarnação é redimensionado pela cultura pop em filmes como “Velvet Goldmine” (1998) do já mencionado Todd Haynes e “Hedwig” (2000) de John Cameron Mitchell., na sua valorização da androginia

A preocupação com este termo surgiu do interesse em considerar o transgênero não só como uma minoria dentro de uma minoria, um grupo social excluído, a prostituta ou o bufão tornado exótico na televisão, mas pensar o travestimento que atravessa a nós todos, dentro uma longa história de troca constante de fronteiras entre o masculino e feminino, incluindo desde os xamãs aos ciborgues, das amazonas aos eunucos, das dames aos onnagata, dos castratti às divas da ópera, do cinema e da música; do andrógino original a deuses hermafroditas, do anjo ao adolescente, dos homens ultra-musculosos às drag queens e drag kings. O travestimento tão presente em várias tradições culturais e na história do teatro contribui para problematizar não só visões bem delimitadas do masculino e do feminino, como também da polaridade estabelecida no século XIX entre heterossexualidade e homossexualidade. Para além dos inúmeros exemplos em comédias desde a antológica “Quanto mais Quente Melhor” (1959) de Billy Wilder à “Priscila, a Rainha do Deserto” (1994) de Stephan Elliot, gostaria de mencionar “Traídos pelo Desejo” (1992) de Neil Jordan e, no Brasil, “A Casa Assassinada” (1972) de Paulo César Saraceni (1971) e “Vera” (1986) de Sérgio Toledo.

Outro alternativa, tanto política quanto estética, no horizonte mesmo do boom multiculturalista está em defender cada vez a necessidade de articular gênero, orientação sexual com as questões de classe, nacionalidade, condição periférica ou metropolitana, etnia para evitar simplificações identitárias (ver LOPES, D.: 2002, 187/191), traduzido no interesse por personagens marginais no espaço urbano, dos filmes de Andy Warhol, Paul Morrissey, “Perdidos na Noite” (1969) de John Schlesinger a “Anjos da Noite” (1986) de Wilson de Barros, em “Garotos de Programa” de Gus van Sant ou em filmes de Gregg Araki, em que é visível a releitura da tradição dos road movies . Se Stephen Frears bem traduziu estas tensões em “Sammy e Rosie” (1987), há um filme brasileiro recente que parece fazer uma síntese perfeita entre o camp e o multiculturalismo.

“Madame Satã” (2003) de Karim Aïnouz é um filme certo num momento certo. Ao retratar o famoso malandro da Lapa, cruel e rebelde, humilhado e terno, nunca vítima, temos uma emocionante e emocionada contribuição para uma história outra do Brasil pelas suas margens e pelos seus excluídos. Alinhado com o New Queer Cinema, que procurou nos EUA, politizar a homossexualidade incorporando questões de classe, etnia, condição periférica, sem aderir a narrativas hollywoodianas, Karim Aïnouz realiza um filme sem didatismo piegas, nem bom mocismo politicamente correto. Enfocando o período antes do protagonista assumir o nome de Madame Satã, o filme realiza um cruzamento rico sobre o que é ser negro, pobre e homossexual, no Brasil, no filão em que O Bom Crioulo de Adolfo Caminha tem um papel precursor, sem contudo reeditar os cacoetes cientificistas do Naturalismo do século XIX.

Também não há a visão nostálgica da Lapa, tradicional bairro boêmio do Rio de Janeiro, como em Lábios que Beijei de Aguinaldo Silva. Diferente de filmes históricos tradicionais, não temos uma reconstituição de época grandiosa que talvez retirasse a atenção e atualidade do drama e das emoções vividas. O filme tem um tom menor, íntimo. Predominam os espaços fechados: a casa e o bar. A noite e a fotografia de penumbras fazem da rua um espaço mais fechado, acolhedor e perigoso, onde prostitutas, pequenos marginais, pessoas comuns circulam em busca de prazer, vivendo suas vidas em que sobreviver já é uma vitória. Em meio ao desamparo, uma possibilidade mesma de uma outra família, a prostituta com sua filha, Satã e seu amante, a empregada.

A crueldade de Madame Satã não é fascínio pela humilhação como em Genet, traduzido belamente no último filme de Fassbinder, “Querelle” (1982), mas estratégia de sobrevivência, sem glamourização da opressão, nem estetização da violência. O poder circula pelos espaços e pelos personagens. Não há vilões nem bandidos, há aqueles que conseguem sobreviver um pouco mais, um pouco menos. A coragem da sobrevivência com o orgulho de ser o que se é.

A força do protagonista está na resistência pela alegria, de querer ser outro, livre, homem, mulher, Madame e Satã. Assumir o nome num desfile de Carnaval, no fim do filme, é um gesto de afirmação de uma identidade, pela máscara, pelo jogo constante na vida e no palco, longe da folclorização e ridicularização de que foram e são vítimas, homossexuais e travestis nos programas de auditório pela TV, mas sem temer a afetação, a desmunhecação, como formas mesmas de resistência a um padrão bem comportado de gay de classe média, integrado na sociedade conservadora de consumo em que vivemos.

Também estamos bem distantes dos papéis servis que os negros vem desempenhando com tanta freqüência em nossa dramaturgia, o que é confirmado por recentes trabalhos sobre suas representações no cinema e na televisão. Sem cair em classificações estanques, guetos, nem apagar todos os sinais e marcas da dor e da injustiça social, “Madame Satã”, o filme, faz da raiva uma abertura para a alegria, nunca para o mero ressentimento. A transgressão não está em discursos inflamados, mas no próprio corpo do protagonista. Sua afronta não precisa de palavras. Basta sua vida a que somos lançados pela abundância de closes e planos fechados, na fotografia de Walter Carvalho assumidamente inspirada em trabalhos de Arthur Omar. Somos jogados na sua intimidade, na sua presença, numa espécie de sedução sem escapatória. Não podemos desviar o olhar, não podemos fingir que não vemos. Tudo está lá direto, na nossa cara: o preconceito e a alegria. Não há conciliação com o público, nem com a sociedade. Os incomodados que saiam do cinema, pois esta Madame veio para retomar o seu lugar, sem pedir licença. Ela é nosso assombro e nossa cara, queiramos ou não, gostemos ou não.

Depois destas observações sobre “Madame Satã”, creio que fica mais claro aceitar que a identidade, no seu melhor, não seria uma classificação, mas uma experiência. Ainda que seja imediata na percepção, a experiência traz uma estória, uma verdade, não a verdade, que é sempre mediada por discursos sociais (SCOTT, J.: 1999, 42). A partir do cruzamento entre os estudos culturais e dos estudos de gênero, a experiência não só se insere num solo sócio-histórico, mas se constitui como a encarnação, a narrativização de identidades, transita por elas. Identidade que deve ser vista não só como questão lógica, formal, filosófica, mas sobretudo, histórica, social e política. A experiência, lembrando Joan Scott, não é origem de explicação, evidência autorizada, mas o que buscamos explicar, sobre o qual se produz conhecimento (idem, 27), que nos diz que é importante refletir sobre quem fala (idem, 31).

Esta ênfase levou ao resgate das narrativas de testemunho, autobiografias, diários, não só como alternativa a uma estética do artifício, mas a uma politização da experiência privada dos sujeitos excluídos da sociedade e das formas tradicionais do conhecimento científico. Talvez neste último questionamento tenhamos uma grande contribuição ao colocar o desafio da crítica não só como análise, mas texto, escritura. O sujeito da pesquisa se expõe não como ato narcisista, mas para contextualizar o lugar de fala, torná-lo mais concreto, estabelecer seus limites e alcance. Se nos anos 60, a linguagem era enfatizada em detrimento do autor, este retorna até mesmo nos discursos teóricos, traduzido em diversas estratégias analíticas como a autoetnografia, a crítica autobiográfica, o uso da narrativa, sem falar na proliferação em filmes e vídeos em primeira pessoa.

O mote a volta do autor não deve ser visto como mero retorno ingênuo ao biografismo, mas busca de um adensamento e sofisticação. Primeiro, enfocar um cinema de mulheres e uma escrita feminina implica dizer que o corpo deixava de ser objeto do voyeurismo masculino e assume uma concretude, uma história. Se as falas no mundo da ciência, do trabalho e da política eram hegemonicamente masculinas, os espaços da intimidade, da casa, do corpo deixam de ser apenas lugares de opressão e de uma fala única. Se o mundo exterior, das viagens era dos homens [2] ; a intimidade deixa de ser prisão para emergir como possibilidade de resistência, de demarcação da diferença. Se não se trata mais de falar da história dos grandes fatos e acontecimentos, mas também do cotidiano; uma linhagem feminina se constrói onde aparentemente só havia silêncio e opressão. Por um lado isto levou a um trabalho de arquivos, de resgate, mas levou também a apontar as possibilidades estratégicas de uma estética feminina.

(Continua...)

 

[1]  Para uma sofisticada leitura da mulher viajante no cinema ver BRUNO, G.: 2002.

[2] Este mesmo sentido foi representado na adaptação desta peça para Broadway com a utilização de uma casa em miniatura no centro do palco, onde o cenário era outra casa em tamanho normal.