SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 4 – Outubro de 2004

VER COM OLHOS LIVRES

COM CULPA OU NÃO, A TV É A QUESTÃO

Hermano Penna

 

A página de Opinião - pág. 3 do primeiro caderno - da Folha de S.Paulo,  em tese, estaria aberta a todas as opiniões. Na prática, por conta da questão ANCINAV, esteve aberta ao artigo de João Roberto Marinho a respeito do projeto da ANCINAV. Pensou-se que estaria aberta à réplica de Hermano Penna. Ledo Ivo engano: já se percebe que texto sobre o assunto que não seja... digamos... "anarquista" - do tipo "Hay gobierno" (ou regulação do governo) "soy contra"... - não passa.

Paciência. Aqui passa.

Nesta página, dias atrás, o Sr. João Roberto Marinho disse bem - Em 1969, Roberto Marinho inaugurava a televisão em rede no Brasil. Ele só esqueceu de dizer é como isso se tornou viável e quem continua a pagar a conta.

O primeiro sistema de teletransmissão do país, construído pelo governo militar, a EMBRATEL e as centenas de torres de microondas cruzando todo Brasil, uma mirando a outra, aliás uma tecnologia totalmente superada já na época de sua implantação, e a posterior, e quase imediata, construção do sistema de torres isotrópicas foi o que possibilitou o surgimento da rede nacional do Dr. Roberto. E todos sabem, não custou um centavo a TV Globo. Ao contrário, a TV do Dr. Roberto tinha custo de transmissão subsidiado. O lucro com o espaço publicitário de escala nacional foi privatizado, e o custo da base física da rede ficou para o povo pagar. A lucratividade espetacular com o anúncio em rede nacional permitiu a Rede Globo investir em qualidade, o que lhe garante até hoje o quase monopólio na preferência popular.

Construída a imensa muralha chinesa de torres e a EMBRATEL, a TV Globo fornecendo o conteúdo, como fazer chegar a mensagem, o anúncio, a programação a um público em sua maioria de baixo poder aquisitivo? Os mais jovens não fazem idéia do preço de um aparelho de TV, na época em que só existia na casa do amigo rico. De novo o estado assume a conta. E mais uma vez a burra internacional se abre em pronto atendimento. Dizia-se serem os fáceis petrodolares. É mesmo? O fato é que jorrou dinheiro para subsidiar a fabricação de milhões de televisores. Da noite para o dia, o mais pobre dos pobres podia ter seu televisor. Alguns aparelhos, no crediário, tinham prestação que não ultrapassava o custo de duas entradas de cinema.

A parte feliz e basbaque do país via tudo acontecer como a evolução natural do progresso. A modernidade chega quando é sua hora. Ë isso mesmo? Ou, há outra resposta? As coisas chegam quando se decide. Quando há uma escolha e dela nasce um projeto de governo. E só acontecem quando forças de apoio, internas e externas, trabalham com o sentido de concretiza-las. A implantação do sistema de teletransmissão se dá exatamente quando os militares assumem totalmente o aparelho de estado através do AI-5, dezembro de 1968. Ë necessário integrar o país num amplo e único projeto político ideológico. Estamos no auge da guerra fria. Os americanos correm para desfazer a idéia da supremacia tecnológica russa, firmada desde o lançamento do Sputnik. Preparam o mundo para o grande espetáculo da chegada de um norte-americano na lua. Ë necessário que o mundo assista o feito espetacular. A rapidez com que é montado o sistema de teletransmissão via satélite no Brasil, tem muito haver com essa história.

Não é por acaso que a EMBRATEL no dia de sua inauguração, 28 de fevereiro de 1969, levaria ao ar a primeira imagem em rede nacional via satélite, pela TV Globo. E qual seria a primeira imagem ? O lançamento da Apolo 9, missão preparatória para o grande vôo da Apolo 11. A missão não aconteceu no dia ,pelo mal tempo, e foi ao ar a fala do Papa aos brasileiros. Um mês antes da estréia do Jornal Nacional, no dia 20 de julho de 1969, acontece a grande transmissão coast to coast para o todo Brasil: a Apolo 11 e seus três tripulantes pousam na lua.

Não quero dizer, nem sugerir, com isso que a Rede Globo nasceu da diabólica decisão de militares e americanos. Ou, foi porta voz passiva da ditadura. Afirmo que houve uma confluência de interesses econômicos, operacionais, políticos e ideológicos.

Não faço parte do coro dos histéricos que ficam a gritar - contra o monopólio, destrua-se a Globo. Basta olhar o panorama televisivo brasileiro e ver uma rede de televisão vivendo da contribuição de fanáticos religiosos, outra do jogo dos baús, é de arrepiar a possibilidade de dificultar a vida da única televisão que vive realmente do público e do mercado. Além do mais, só a desonestidade intelectual pode deixar de assinalar o alto padrão técnico e artístico atingido pela Rede Globo, em matéria de televisão. Junte-se a isso meu profundo respeito pelos técnicos e artistas, muitos meus amigos, que fazem a Rede Globo.

O caso não é atacar a Globo. É falar do Brasil e de como as coisas foram feitas. É inadmissível continuar escutando e lendo analises que encobrem a imensa participação do estado brasileiro para o sucesso da televisão em nosso país, especialmente o da Rede Globo. Pior ainda quando esse sucesso é contraposto ao alardeado fracasso industrial do cinema nacional. O sucesso da TV nasce de uma opção clara de governo, como espero as pessoas já tenham compreendido. Nasce da política do governo militar que privilegiou, em seu projeto, a televisão, em detrimento da outra face do audiovisual: o cinema brasileiro.

Só um louco negaria as conseqüências da televisão em relação ao mercado cinematográfico. Citaria apenas o fechamento brusco de quase toda rede exibidora de filmes no Brasil. E o que os militares deram em troca à tanta devastação? Com Geisel, a compensação foi a EMBRAFILME, um guichê único para todo cinema brasileiro, com capacidade de produzir de quinze a vinte filmes ano e com dinheiro gerado na própria atividade. Arco e flecha num mundo de mísseis eletrônicos. Uma mixórdia em comparação ao fabuloso investimento na televisão.

No momento em que o governo propõe uma política de equilíbrio entre esses dois segmentos do audiovisual, através do projeto da ANCINAV, as forças do status quo e da mesmice, e são muitas, desde os leais e naturais inimigos aos falsos amigos, em nome de algum erro, que forçosamente deve haver no projeto, tentam impedir que venha a luz do dia o que eles sempre desejaram deixar nas sombras: a participação do estado numa política que privilegiou a televisão em detrimento do cinema. As políticas compensatórias, oferecidas em troca da manutenção de regras unilateralmente estabelecidas e pétreas, jamais permitiram o cinema brasileiro concorrer com um mínimo de possibilidade no seu mercado e andar nas próprias pernas.

Por último, só quero lembrar de que hoje a família Marinho deve saber o quanto custa a implantação física de uma rede. A rede subterrânea para os seus canais a cabo, ínfima parte do que foi investido pelo país na rede de TV aberta, consta que não é bem uma história de sucesso. Fica difícil quando se tem de pagar a conta completa.

 

HERMANO PENNA é cineasta, diretor, entre outros filmes , de Sargento Getúlio (1983), baseado no romance de João Ubaldo Ribeiro.

 

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