SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 1 - Dezembro de 2003

LONG-SHOT - ABRAM ALAS PARA O CINEMA

LE BONHEUR, DE AGNÈS VARDA

Antonio Serra

 

Cartaz de Cleo de 5 à 7 (1961), de Agnes Varda; Corinne Marchand (Cleo), em cena do filme.

 

 

I

 

 

A circunstância de Agnes Varda ter exercido a fotografia durante um bom tempo antes de se tornar figura de destaque da Nouvelle Vague permite-nos uma aproximação que espero não seja casual entre Le Bonheur e dois grandes movimentos da cultura francesa: o Impressionismo e a Fenomenologia.

 

Invocamos esta convergência por conta do primado que a experiência visual assume, tanto no filme como nestas tendências, uma da arte, outra da filosofia. Primado enraizado no pictórico, isto é, em uma captação que emerge do interior de um quadro, mas também um pictórico que pretende desconhecer ou superar a narratividade típica seja da pintura romântica ou naturalista, seja da filosofia moderna, seja do cinema clássico americano.

 

Nestas formas de narrativa tradicionais o “quadro” ou a “cena”, além de seu valor estético intrínseco, nutriam significado de uma cadeia histórico-narrativa na qual se inseriam como episódio. É como se este quadro de inspiração histórica, mitológica ou do quotidiano tivesse seu início “fora da tela”, em acontecimentos ou símbolos que lhe conferiam sentido, continuando, além-quadro, no desdobrar de seqüências conhecidas.

 

Assim, o espectador, ainda que ignorando a “história”, precisava dominar os códigos do seu desenrolar, isto é, o que Aristóteles chama de “peripécia”: “a mutação dos sucessos ao contrário (de modo) verossímil e necessariamente”, distinta da mutação em decorrência da “fortuna”. Além desta, Aristóteles indica outro elemento, o “reconhecimento”, “a passagem do ignorar ao conhecer”, devendo ambos, peripécia e reconhecimento, surgirem “da própria estrutura interna do mito, de sorte que venham a resultar dos sucessos antecedentes ou necessária ou verossimilmente”. Isto porque, diz ele, “é muito diferente acontecer uma coisa por causa de outra ou meramente acontecer depois de outra”.

 

Isto que Aristóteles formula para a tragédia, tornou-se referência para as artes em geral, literárias, pictóricas e mesmo, em certos casos, para a música.

 

Por outro lado, para que esta espécie de narrativa possa ser compreendida e apreciada, é preciso que haja uma comunhão entre “o que ela conta” e o que o público dispõe como referência não só de informação como de valores. Ou seja, para que se dê o reconhecimento impõe-se um conhecimento prévio, graças ao qual as peripécias, por mais inesperadas e rocambolescas que sejam, recuperam a ordenação causal necessária e verossímil  dos acontecimentos.

 

Com isto, a unidade da narrativa repousa num sujeito  que a contempla, pois é em sua identidade já existente que será possível tornar a obra compreensível: este sujeito, portanto, deve possuir  as chaves de sua interpretação e a obra, por sua vez, pressupõe tal sujeito para que se faça.

 

Sujeito, no entanto, que é somente pressuposto, ou seja, que deve estar ausente  da narrativa, cuja unidade e significado, então, apoiam-se num elemento extra-quadro, assim como na perspectiva o “olhar” centralizado e único colocava-se aquém do plano pictórico.

 

Ora, o que este sujeito contempla? Se a cadeia de significados que dá sentido à obra está nele depositada fora da obra, o que afinal é a obra para este sujeito? Esta seria constituída, então, de representações, isto é, de signos que fazem as vezes dos objetos do mundo, reais ou imaginários e, tal como no teatro, re-apresentam personagens, acontecimentos ou objetos para o espectador.

 

Este foi, curiosamente, o mesmo esquema que acabou prevalecendo na história da filosofia moderna a partir de Descartes. De um lado, o mundo  do qual tomamos conhecimento através das impressões sensórias fortemente desordenadas e caóticas que dele nos chegam pelos sentidos, as quais, na mente, transformam-se em idéias ou representações. A “validade” destas, quer dizer, a correspondência “veraz” entre estas e o que representam, é motivo de intermináveis dúvidas e inspiram soluções variadas no âmbito da filosofia. De qualquer modo, entretanto, cristaliza-se uma ruptura, um fosso, um abismo mesmo entre a “consciência”  e o “mundo”, tornando-se este algo opaco do qual recebemos “representações”, mas cuja “essência”  — o mundo “em si mesmo” —  não temos certeza ou até mesmo renunciamos a alcançar.

 

Lembremos, só para ilustrar, que a era moderna, com suas vigorosas revoluções democráticas, foi quem criou os sistemas de governo “representativos”, aqueles compostos por “delegações” do “povo”, e das quais exigia-se, como requisito de sua própria natureza e finalidade, que “correspondessem” verdadeiramente aos anseios e interesses dos representados. Equação até hoje mal resolvida ... Pois bem, foi também nesta conjuntura que alguns puseram em dúvida a eficácia e naturalidade da representação, preferindo, como Rousseau e em nome da verdade da vontade social, a “democracia direta”, na qual é o povo todo quem diretamente delibera.

 

Esta digressão pela história política, além de sua função didática pela analogia, serve também para demonstrar como este modelo  — calcado num sujeito ideal e num sistema de representações  —  desempenhou papel muito mais amplo do que as especulações filosóficas ou as práticas artísticas sozinhas fariam supor.

 

II

 

 

 

É verdade que as dúvidas sobre a validade das representações resultavam de uma desconfiança antiga em relação aos sentidos. O potencial de engano, de erro e de mascaramento dos sentidos foi diagnosticado desde a antigüidade, motivo pelo que o sujeito teria que dispor de outras dimensões para não só precaver-se diante dos sentidos como para inclusive chegar a alguma certeza: eis um dos papéis da “razão”.

 

As ciências, por sua vez, embora fiadas nos sentidos e desconfiadas das peripécias metafísicas da razão, tomaram o caminho prudente de multiplicar e aguçar a capacidade sensorial humana por meio de instrumentos, isto é, de lentes, termômetros, balanças, medidores em geral que, ao mesmo tempo que objetivavam  as sensações,

domesticando-as no dispositivo técnico-instrumental, permitiam novo grau de objetividade com a mensuração. Assim, esperava-se, já não era simplesmente o sujeito humano “natural” e ... sujeito às artimanhas do sentido que observava o mundo, mas um sujeito que observava os efeitos da intervenção de instrumentos  nos fenômenos. E, por fim, que desta observação colhia dados quantitativos, a serem processados por sua razão calculadora.

 

No entanto, deve-se ressaltar, a bem da justiça, que a ciência, em suas conclusões, não ocultava estes expedientes instrumentais, ao contrário: sua menção e, mais que isso, sua existência concreta eram elementos intrínsecos das teorias, de tal  modo que as “leis” que elas proclamavam explicitamente estavam referenciadas às circunstâncias experimentais  das quais haviam resultado. Os cientistas se criticam mutuamente a partir não só das “idéias” propostas mas sobretudo dos procedimentos instrumentais que levaram às idéias.

 

Ou seja, enquanto no modelo representacional clássico, tanto o sujeito espectador e de conhecimento, quanto as condições de produção e de pensamento estão ocultos, nas ciências impôs-se sua evidenciarão como parte constituinte das “verdades”  propostas.

 

É neste contexto que o impressionismo se oferece como novidade. Ele rompe, primeiro, com uma discusividade prévia que detenha os segredos de uma história  — pois renuncia a “contar uma história”: o que ali vai se mostrar é estritamente o que ali se mostra. Ele ultrapassa, além disso, a representação dos objetos, tão dúbia como dissemos, em favor de um empirismo do olhar radical, como recomendava Monet: “Quando você sai para pintar, tente esquecer os objetos que estão à sua frente, uma árvore, uma casa, um campo, o que quer que seja. Simplesmente pense: aqui está um pequeno quadrado azul, aqui um retângulo  rosa, ali uma lista amarela”.

 

A luz, não esqueçamos, era um dos temas favoritos das ciências da época e desde Newton discutia-se sua natureza, de partícula ou onda, e nela se via uma expressão fundamental da constituição da natureza, além de ser ela o “grande mensageiro” da realidade, microscópica ou macroscópica. A luz, portadora do real e, num certo sentido, dotada de mais consistência que os “objetos” que vemos, pois estes, afinal, tal como se nos apresentam, resultam de fenômenos luminosos complexos e combinados: são mais como que uma espuma do mundo do que o mundo mesmo.

 

Ao abandonar os códigos prévios de identificação representacional  e se disporem a “simplesmente” deixarem-se tocar e inundar pela luz, os impressionistas criaram uma arte que faz do mundo uma superfície de emulsões e reflexos: aquém desta superfície, não mais um “sujeito consciente”, mas outra superfície  — os olhos — a captarem ou capturarem a luminosidade e seus contrastes sombrios; para além daquela superfície, o que há?

 

O “quadro” passa a ser, assim, um recorte, um flagrante de um momento singular e único de luminosidade. O fluxo do tempo ali se detém, se congela, mas sem que haja uma continuidade explicativa  ou causal entre estes momentos. Cada quadro resume o mundo, pois naquele momento do olhar isto é o mundo. Mesmo quando Monet retratou a catedral de Rouen em seus vários estágios de luminosidade ao longo do dia ou Cézanne sua montanha preferida e obsessiva, não há uma história a contar nem a documentar: são emergências, realidades imanentes que ali se manifestam, isoladas e auto-suficientes.

 

 

III

 

 

Do mesmo modo e não por acaso, este grande movimento filosófico do século XX que foi a fenomenologia partiu de um certo cansaço diante da hegemonia representacional e propôs, como disse seu fundador, Husserl, “uma volta às próprias coisas”.

 

De fato, aquela cisão que apontamos, entre consciência e mundo, entre sujeito e objeto, entre interior e exterior parecia haver chegado a um ponto de esgotamento, uma vez que desembocava em reiteradas impossibilidades. Ora um reducionismo do mundo à representação ideativa na mente do sujeito  — e o mundo se transformava em fantasmagoria —, ora um reducionismo do sujeito à mesma condição de “fato” ou “objeto” com que se pretendia evitar o idealismo.

 

Husserl afirmará que “toda consciência é consciência de alguma coisa”, ou seja, que o ato da consciência já a implica no mundo, inseparavelmente: consciência intencional, quer dizer, toda consciência existe num movimento em direção a algo, e jamais em si ou por si mesma.

 

Faz-se então uma unidade da consciência com o mundo, alargada pela interação social das consciências, imersas no Lebenswelt, o mundo da vida. As essências não são, para ele, entidades transcendentais ou ocultas por trás dos objetos sensíveis, mas ali estão, disponíveis para uma consideração de um sujeito que “suspenda” seus discursos prévios, seus preconceitos e o que supõe já saber. É para esta consciência, que “põe entre parênteses” sua própria identidade cristalizada e segura, que o mundo se abre e se oferece em seus significados mais fundamentais.

 

Merleau-Ponty, o seu grande discípulo, irá além do mestre, motivado pela recuperação do que a filosofia e o saber teriam perdido no cipoal dos dualismos clássicos. É preciso, diz ele, lembrar que, antes de mais nada, o olho olha, a fala fala e o pensamento pensa, cada um restituído ao que lhe é próprio e livre de impostações.

 

Mais que isso, é preciso recuar a um mundo pré-reflexivo, “selvagem e   bruto”, semelhante à floresta em que Dante se perdeu, mundo essencialmente sensível cuja aisthesis  possui dinamismo e simbolismo próprios e que são, em suma, a verdadeira fonte da vida: eis seu existencialismo.

 

Rompendo, por sua vez, com a concepção de uma “interioridade” que se refugia do mundo, dele só acatando “representações, Merleau-Ponty aponta uma ontologia selvagem na qual o corpo ocupa lugar privilegiado graças ao caráter absolutamente originário  de sua experiências: o corpo é um visível que se vê, um tocado que se toca, um sentido que se  sente. Somente a partir desta experiência primordial é que podemos partir para a experiência dos seres e do mundo. Enfim, nossa relação com o mundo é “estesiológica”, estética no rigor da palavra.

“Ora, a arte, e notadamente a pintura, nutrem-se nesse lençol de sentido bruto do qual o ativismo nada quer saber. Elas são mesmo as únicas a fazê-lo com toda inocência. Aos escritor, ao filósofo, pede-se conselho ou opinião; não se admite que mantenham o mundo em suspenso; quer-se que tomem posição, e eles não podem declinar as responsabilidades do homem que fala. A música, inversamente, está por demais aquém do mundo e do designável, para figurar outra coisa a não ser épuras do Ser, seu fluxo e refluxo, seu crescimento, suas explosões, seus turbilhões. O pintor é o único que tem direito de olhar para todas as coisas sem nenhum dever de apreciação. Dir-se-ia que, diante dele, as palavras de ordem do conhecimento e da ação perdem sua virtude. Os regimes que invectivam contra a pintura “degenerada” raramente destroem os quadros: escondem-nos, e há nisso um “nunca se sabe” que é quase um reconhecimento: a censura de evasão raramente é dirigida ao pintor. Não se quer mal a Cézanne por Ter vivido oculto no Estaque durante a guerra de 1870; toda gente cita com respeito o seu “é espantosa a vida”, quando o mais reles estudante, desde  Nietzsche, repudiaria redondamente a filosofia se fora dito que ela não nos ensina a sermos grandes viventes. Como se houvesse na ocupação do pintor uma urgência que excede qualquer outra urgência. Ele aí está, forte ou fraco na vida, porém soberano incontestável na sua ruminação do mundo, sem outra “técnica” a não ser a que seus olhos e suas mãos se dão, à força de ver, à força de pintar, obstinado em tirar, desse mundo onde soam os escândalos e as glórias da História, telas  que quase nada acrescentarão às cóleras nem às esperanças dos homens, e ninguém murmura. Que ciência secreta é, pois, este que ele tem ou procura? Essa dimensão segundo a qual Van Gogh quer ir “mais longe”? Esse fundamental da pintura, e quiçá de toda a cultura?” (Merleau-Ponty, O Olho e o Espírito, trad de Marilena Chauí, in Merleau-Ponty, col Os Pensadores, ed Abril, 1980)

 

ANTONIO AMARAL SERRA é professor do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF e atual diretor do Instituto de Arte e Comunicação Social. O texto foi escrito para o curso Cinema Francês e  Nouvelle Vague, promovido pelo Curso de Cinema da UFF e a Casa França-Brasil no Rio de Janeiro e coordenado pelo Prof. João Luiz Vieira, do Departamento de Cinema & Vídeo da UFF no segundo semestre de 2000.

 

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