SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 7 – Junho de 2006

VER COM OLHOS LIVRES

O DRAGÃO QUE MORA CONOSCO

Antonio Paiva Filho

"Dragões, você sabe, são animais mitológicos. Dragões não existem. Como escritores, músicos, pintores, filósofos, ou todas estas pessoas que – loucas – querem sentir num mundo em que é ridículo sentir. Você tem é que ganhar, conquistar poder e glória. Os dragões desprezam este paraíso. Têm asas, querem voar. Como os anjos."

 

 

Minha querida sobrevivente Daniela Duarte (1):

Tenho um dragão que mora comigo.

Não, isso não é verdade. E também não é bem isso que queria lhe dizer, antes de começar a falar sobre o que quero lhe falar, amiga. Quase como um personagem de Caio Fernando Abreu, estou me confundindo, me dispersando.

Não estou fazendo muita coisa aqui em Niterói, além de sobreviver (aliás, eu e a torcida da Seleção Brasileira – isto é, quase todo mundo...) e escrever, escrever, escrever...

Ah, sim, e também tentando editar uma revista eletrônica de cinema, ver filmes e ler muito. Ultimamente, inclusive, ando lendo nosso Caio Fernando Abreu. É, eu poderia dizer que isto é "culpa" sua, da Luciana, do Eduardo & Cia. Ltda (2). Mas há outros "culpados" que me levaram a ler (e reler) o Caio. Um deles foi o romance Onde andará Dulce Veiga?

Por falar em Dulce Veiga, você já teve notícias do filme que o Guilherme de Almeida Prado está fazendo em cima deste livro? Bem, cara amiga, tenho boas e más notícias.

As boas: finalmente, o filme será finalizado e talvez acabe estreando ainda este ano. E há uma grande expectativa (inclusive minha) de que pode sair um belo filme.

As más: tenho algum medo (olha só o paradoxo) do que pode sair deste filme. Não por causa do próprio Guilherme. Não sei se eu cheguei a te falar certa vez a respeito do diretor, mas devo ter comentado contigo que eu tinha um medo enorme do que Guilherme de Almeida Prado poderia fazer com Onde andará Dulce Veiga?, devido à sua tendência ao melodramático, ligeiramente mexicano, de seus últimos dois filmes, Perfume de gardênia (1992) e A hora mágica (1998). Pelo menos, esta foi a primeira impressão que tive, ao ver estes filmes pela primeira vez no cinema. Ainda bem que a primeira impressão não é a que fica: revi Perfume de gardênia e A hora mágica recentemente, e percebi que o melodrama é uma característica intrínseca de cada projeto. No primeiro, agasalha o seu entrecho trágico; do segundo, sublinha o seu caráter de artificialismo e, ao mesmo tempo, de magia.  A escolha do elenco também promete, a começar por Maitê Proença – atriz favorita do diretor desde A dama do cine Shangai (1987) –, que vai encarnar a misteriosamente desaparecida Dulce Veiga, e Carolina Dieckmann, que receberá em seu corpo a roqueira Márcia F.

O problema é outro: até que ponto a essência do livro será preservada?

O grande desafio das adaptações de romances, contos e mesmo poemas para o cinema (e – por que não dizê-lo? – para o teatro) é se manter fiel a essência da obra original e, ao mesmo tempo, ser interessante para o respeitável público não-bibliófilo, já que a forma literária é sempre modificada para se adaptar à forma da outra mídia. Nem é necessário dizer quais são as características das melhores e bem-sucedidas adaptações literárias. Vou ficar apenas nas que fracassam, e o fracasso pode ser de duas formas: ou o filme resultante não se torna interessante, ou a essência da obra vai para a proverbial cucuia.

Pois as primeiras matérias sobre o filme na gloriosa imprensa nos informam que a história tem como protagonista Márcia F., a personagem de Carolina Dieckmann. Até aí, nada de mais: a assessoria de imprensa deve estar jogando com uma atenção maior sobre a moça (afinal, trabalha na Globo!) para chamar a atenção para o filme. O problema é se, por questões mercadológicas, o roteiro resolva jogar com isso. E isso, se não for grave, é chato, -- um sinal de concessões que mudariam o foco e a essência do romance. (O misterioso jornalista sem nome, nascido no Passo da Guanxuma – cuja gênese, possivelmente, pode ter sido anterior em O destino desfolhou (3)), não estará só procurando uma cantora que desapareceu misteriosamente: também está em busca do real, em meio à dúvida urbana, existencial, afetiva – enfim, humana. (Se viajei demais na maionese, me dê um toque. Ou então se sinta no direito de imitar o célebre filósofo Dr. Pimpolho e mande eu me fo...pééém...) (4)

Mas isso são comentários meus, oriundos de neuras e, claro, dúvidas minhas: afinal, o filme ainda não saiu, portanto não posso pré-julgá-lo. Além disso, eu tenho o mesmo otimismo (ou condescendência?) que, às vezes, o Caio tinha a respeito do filme brasileiro – quase primo-irmão da literatura brasileira em termos de aceitação pela sociedade.

Outro dia, falando em cinema, eu dizia aqui mesmo que cada filme brasileiro representa uma vitória. Contra o baixo astral, a piração não-criativa, a dureza, esse terceiro-mundismo que nos enleia. Literatura, não menos. Escrever (e publicar) também é uma vitória. Às vezes, de Pirro. Porque não acontece nada, ou vêm os críticos – esta raça em extinção, cada vez mais dedicada ao culto da najice pela najice (mais vale uma frase mordaz que o possível talento de alguém) e descem a lenha, os coleguinhas de profissão arrastam seu nome na l(h)ama. Todos insatisfeitos, cobrando a produção de uma grande obra. Como ser possível, neste país onde, para (sobre)viver, o escritor precisa também ser jornalista, tradutor, bancário, roteirista, revisor, publicitário, e arrancar de míseros feriados, fins de semana e noites escassas algo "do porte", digamos, de Os Buddenbrooks ou Crime e castigo. Pode? (5)

Mas já estou novamente eu me confundindo, me dispersando... Onde é que eu estava mesmo?

Ah, sim.

A outra parcela de "culpa" por estar lendo o Caio foi de alguns filmes baseados em sua obra. Você já viu estes filmes? Eu vi alguns. Não foram muitos.

Uns eu não vi e gostaria de ver, como O dia em que Júpiter encontrou Saturno (1986, feito em Super-8), de Ana Beatriz Losquia, ou Pela passagem de uma grande dor (2005), de Bruno Polidoro, ambos baseados em contos do livro Morangos mofados.

Aliás, não sei se você percebeu, mas Morangos mofados deve ser o livro favorito do Caio entre os cineastas, porque a maioria dos filmes que vi também se baseia em outros de seus contos: o longa do Sérgio Amon, Aqueles Dois (1985 - aliás, o único da lista – por enquanto), e o curta do Tutti Gregianin, o Sargento Garcia (2000).. Ou seja, vão gostar de morangos – ainda que mofados – assim na horta...

A exceção é Dama da Noite (2000), curta-metragem de Mário Diamante sobre conto homônimo de Os dragões não conhecem o paraíso (1988). Ou melhor, sobre a versão teatral que Gilberto Gawronski criou, como ator e diretor. Sabe o que eu o achei interessante? É que as diferenças entre o conto, o espetáculo e o filme estão bem demarcadas – a solitária dama que vive na noite, perdida no meio da roda, envolvida com sexo, Aids e, claro, a solidão, ganha nome (Dana Avalon) e se torna personagem de uma performance em uma rave num armazém do cais do porto carioca. No entanto, tais diferenças parecem que não existem. A solitária roda persistem, como espadas em nossa cabeça. sim, porque Dama da Noite, no fundo, é a história de um solitário andar – de uma mulher (ou um gay, como na versão teatral) por entre as gentes que rodam na roda.

E, no fundo, no fundo, um dos aspectos da obra de Caio é esta: solitários andares por entre as gentes. Aqueles dois – tanto o conto quanto o filme – também tratam disso, de dois solitários andares que se encontram. Também é uma das poucas histórias de Caio onde há um final, digamos feliz – ou, pelo menos, um recomeço corajoso. E o filme é fidelíssimo (ma non troppo, graças a Deus, porque filme que simplesmente transcreve uma obra literária é uma merda... (6)) também ao modo meio sóbrio, meio poeticamente barroco, com que Caio fala d'aqueles dois. Está certo, para o meu gosto, o filme é sóbrio demais, em comparação com o conto, mas vale a pena.

Por falar em coragem, estava eu lendo uma crônica de Caio que eu não conhecia – aquela de onde tirei o trecho que você leu antes, sobre o cinema brasileiro. Bem, amiguinha, lá vem mais dois. Um, sobre o escritor:

Não, escritor brasileiro não existe. Ele é um personagem inventado por si próprio, ao qual, fora ele mesmo, e ainda assim nem sempre, pouca gente dá crédito. (7)

O outro, sobre dragões – os do conto que dá nome ao livro:

Dragões, você sabe, são animais mitológicos. Dragões não existem. Como escritores, músicos, pintores, filósofos, ou todas estas pessoas que – loucas – querem sentir num mundo em que é ridículo sentir. Você tem é que ganhar, conquistar poder e glória. Os dragões desprezam este paraíso. Têm asas, querem voar. Como os anjos. (8)

Claro que a não-existência de escritores, músicos, pintores, filósofos (e acrescentando por conta própria: cineastas) é uma ironia. Mas se não for?

No meu tempo de criança, índice Bovespa era – como diria um papagaio fanho (e com perdão do termo chulo, pois o bichinho só aprende safadeza, como reza a lenda) – ú fú da firúa. (9) Atualmente, nestes tempos bicudos, parece que o índice Bovespa virou o centro do universo.

E se o que for ironia estiver se tornando real? E se, de repente, percebemos que tudo se encaminha para que todos os esforços de todos os que lidam com o espelho do real (pois, no fundo, a arte é – não só isso, mas também é – um espelho – côncavo, convexo ou torto, tanto faz – do real) acabem se tornando inúteis diante de uma multidão indiferente ao que não seja ú fú da firúa, digo, o índice Bovespa, pelo simples fato de que não existimos para esta multidão?

Então, duas opções nos sobram para nos definir.

Primeira opção: não somos nada, e portanto não podemos ser ou querer nada. Pior: à parte disto, nem temos direito a ter todos os sonhos do mundo. E aí mesmo, minha flor, é que nenhum dragão virá morar conosco.

Segunda opção: NÓS é que somos os dragões, e por isso estamos fora de toda esta mediocridade que nos rodeia, que para alguns é o paraíso – protocolo, caviar, champanhe, carros do ano, mulheres saradas (ou meninos sarados) à tiracolo (mais para ostentar do que para estar, por gostar ou mesmo desejar), e tome gravata! – porque queremos (ou melhor dizendo: precisamos) estar. Se quisermos voar.

A verdade é que períodos em que desvalorizam ou tentam submeter a arte (qualquer arte) – ou seja, períodos em que querem roubar ou quebrar as asas dos dragões (ou de nós, quem sabe?) – sempre foram comuns na história desta rocha redonda chamada Terra, cheia de gente doida de pedra e seus embates – de um lado os doidos obcecados pela "ordem", qualquer tipo de ordem que seja, e que, em inúmeras ocasiões, querem tomar as nossas asas; de outro, os doidos mais anárquicos, que querem voar como os dragões – isto é, de certa forma, nós. E o que eu sei de história é que, a cada período de predomínio dos doidos da "ordem" e da desvalorização da arte, sempre sucedem períodos onde os dragões escrevem novas e verdadeiras histórias, ainda que usando as mais completas "mentiras" – a tal da ficção, a tal da arte dramática, onde a "mentira" sai do papel e entra qual órgãos estranhos nos corpos de doidos chamados atores. (Pensando bem, deveria citar este exemplo? Você sabe muito bem o que estou dizendo, e posso estar chovendo no molhado. Bom, agora é tarde, já foi.)

Claro que, até lá, temos que nos coçar, porque se ficarmos cuidando de nosso jardim enquanto as coisas não mudam, aí mesmo é que elas não mudam mesmo. (O Barão de Itararé (10) que o diga: "De onde menos se espera, daí mesmo é que não sai nada"), mas a arte ainda vai dar um passa-pé na tal de barbárie. Desde que saibamos qual a forma que a barbárie toma, para melhor enfrentá-la.

Agora dorme, cara amiga sobrevivente. Só existe o sonho. Que seja doce.

 

(1) Formada pela Escola de Arte Dramática (EAD) da USP, Daniela Duarte é atriz da Cia. Teatro dos Sobreviventes e integrante do Núcleo Experimental de Teatro (N.Ex.T). Ela foi uma das pessoas mais importantes que este escriba conheceu na Paulicéia Desvairada enquanto esteve lá. Daí, esta carta ser destinada a ela – até pela paixão pela literatura de Caio Fernando Abreu que temos em comum.

 (2) Luciana Paes de Barros e Eduardo Gomes, também formados pela EAD e atores da Cia. Teatro dos Sobreviventes.

 (3) Conto do livro Os dragões não conhecem o paraíso (1a. edição: São Paulo, Cia. das Letras, 1988).

 (4) O Dr. Pimpolho – um arrogante filho mimado da burguesia paulistana, cujo... digamos assim... bordão característico é um xingamento propositalmente mal censurado ("Ora, vá se fo...pééém!"), é um personagem do grupo Chuchu Beleza (nada a ver com candidato tucano a presidente da República, por favor...), raro exemplo do humor radiofônico (SIC) paulistano, que apresenta seus esquetes durante a programação da rádio Mix FM (São Paulo – SP).

 (5) Venha ver os dragões, Crônica de Caio Fernando Abreu publicada em O Estado de S. Paulo 25 de março de 1988. In Caio 3D – O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro, Agir 2004.

 (6) Paulo Thiago – o maior estraga-obras-literárias-para-o-cinema – que o diga; haja vista os casos de Sagarana – o duelo (assassinato de um dos contos de Sagarana, de Guimarães Rosa) e Policarpo Quaresma, Herói do Brasil, (massacre do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto – O caso do vestido etc.).

 (7) Venha ver os dragões, op. cit.

 (8) Venha ver os dragões, op. cit.

 (9) Citação de crônica de Aldir Blanc, do livro Rua dos artistas e arredores. (O que Aldir Blanc tem a ver com Caio Fernando Abreu – além do fato de que, agora, os dois são escritores – não posso lhe explicar. Talvez Freud, mas duvido...)

 (10) Título de nobreza auto-outorgado pelo humorista Aparício Torelly (1897-1971) por sua bravura na batalha de Itararé, que ocorreu durante a Revolução de 30. Ou melhor, que não ocorreu: Itararé ficou conhecida como "a batalha que não houve". Deboche pouco é bobagem...

Filmografia

AQUELES DOIS

de Sérgio Amon

(longa-metragem, 35mm, 1985, 72 minutos).

A partir de conto homônimo do livro Morangos Mofados.

 

O DIA EM QUE JÚPITER ENCONTROU SATURNO

de Ana Beatriz Losquia

(curta-metragem, Super-8, 1986, 5 minutos).

A partir de conto homônimo do livro Morangos Mofados.

 

DAMA DA NOITE

de Mário Diamante

(curta-metragem, 35mm, 2000, 15  minutos).

A partir de conto homônimo do livro Os dragões não conhecem o paraíso e de sua adaptação para o teatro.

O ator Gilberto Gawronski repete no cinema o mesmo personagem que fez com grande sucesso no teatro: Dana Avalon, típica criatura da noite do universo de Caio Fernando Abreu, envolvida com sexo, solidão e Aids.

 

SARGENTO GARCIA

de Tutti Gregianin

(curta-metragem, 35mm, 2000).

Com Marcos Breda.

Adolescente tímido tem sua primeira experiência sexual com um sargento.

A partir de conto homônimo do livro Morangos Mofados.

 

PELA PASSAGEM DE UMA GRANDE DOR

de Bruno Polidoro

(curta-metragem, vídeo, 2005).

Casal tem conversa por telefone que revela uma relação marcada pelo vazio e pela incomunicabilidade.

A partir de conto homônimo do livro Morangos Mofados.

 

ONDE ANDARÁ DULCE VEIGA?

de Guilherme de Almeida Prado

(longa-metragem, 35mm, 2007?).

Com Carmo Dalla Vecchia, Maitê Proença e Carolina Dieckmann.

A partir do romance homônimo.

 

ANTONIO PAIVA FILHO é editor de SOMBRAS ELÉTRICAS.

 

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