SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 5/6 – Novembro-Dezembro de 2005

LONG-SHOT: CINEMA E SEXUALIDADE(S), À LUZ DO MIX BRASIL 2005.

A HOMOSSEXUALIDADE EM O MENINO E O VENTO

Antonio Moreno

 

Ênio Gonçalves e Zeca de Paiva, em cena de O Menino e o Vento, de Carlos Hugo Christensen

 

1. A Estrutura Narrativa do Filme

O Menino e o Vento é um filme belíssimo e poético. O que mais encanta na sua narrativa é a forma como se estrutura em torno do debate sobre o homossexualismo, que é o seu tema central. Iniciando-se num tom realista e dramático a narrativa penetra num clima fantástico/surrealista, quando se deixa dominar pela a voz e a visão da personagem principal da história.  Com direção de Carlos Hugo Christensen, apoiado no conto de Aníbal Machado, “O Iniciado do Vento”, cuja obra literária está impregnada por este gênero literário, fantástico/surrealista, muito cultuado na América Latina por escritores como Borges, Cortazar e Garcia Marques. Tem diálogos de Millôr Fernandes e uma câmara precisa e iluminação eficiente de Antônio Gonçalves.

Seu elenco conta com poucos nomes conhecidos, como o de Enio Gonçalves, em início de carreira, que desempenha o papel do engenheiro José Roberto Nery, e Luiz Fernando Ianelli, o do menino Zeca de Paiva, o Zeca da Curva.

Filmado em preto e branco, foi lançado comercialmente em 1966, mesmo ano de sua produção, não despertando muita atenção pelo fato do cinema brasileiro estar atravessando a fase de efervescência do Cinema Novo, quando, a preocupação principal dos filmes era com os temas político-sociais, extremamente interligados. O Menino e o Vento debatia um tema social de uma maneira poético/fantástica: a questão do homossexualismo na visão da sociedade brasileira minimizada através do minicosmo comportamental de uma cidade do interior de Minas Gerais.

O estilo narrativo é direto e acessível, embora recorra constantemente ao recurso do flash-back, notadamente nas seqüências que são narradas pela personagem José Roberto Nery. Os atores utilizam uma interpretação natural nunca utilizando a impostação. Desta forma, Carlos Hugo Christensen consegue transmitir muito bem o dia-a-dia de uma cidadezinha brasileira do interior com seus tipos simples, mas que guardam em suas palavras e ações uma forte dose de atraso no arraigamento de certos conceitos comportamentais sociais. Dados fortemente presentes no texto de Aníbal Machado, que no filme se tonificam no encadeamento das seqüências denunciando as maneiras pelas quais as pessoas lançam mão para burlar, ou mesmo preservar estes preconceitos, quando objetivam mostrar poder, ou atingir um objetivo pessoal.

Através do julgamento do engenheiro José Roberto Nery, que envolve e comove toda a cidade, o filme narra a história do seu relacionamento com o menino Zeca da Curva, quando em férias na pequena cidade de Bela Vista, interior de Minas, onde está sendo acusado do assassinato e sumiço do corpo do menino.

Podemos dividir o filme em duas partes quanto à sua narrativa. A primeira seria a de um tom realista/dramático dado à história até antes do depoimento do engenheiro - quando o filme expõe a visão dos habitantes da cidade sobre o homossexualismo. A segunda, de um tom totalmente surreal, fantástico, a partir do depoimento do engenheiro, quando ele narra a sua visão do relacionamento que teve com o menino.

 

2. A História do Filme - Análise Denotativa da Primeira Parte da Narrativa do Filme

O filme se inicia com a chegada à cidade, de trem, do rapaz, o engenheiro José Roberto Nery. Nota-se que muitos curiosos se aproximam e seguem o trem a sua passagem, quando, de repente, alguém arremessa uma pedra que atravessa a vidraça do trem, quebrando-a e quase atingindo o rapaz. Logo em seguida o trem para. Uma multidão se aglomera na estação e nota-se que alguns estão armados com pedaços de pau. Um alto-falante da estação anuncia a chegada do engenheiro e pede calma aos populares para que se possa fazer justiça através de um julgamento legal. O delegado da cidade entra no trem, abrindo caminho entre a multidão, e vai até ao rapaz dizendo que veio protegê-lo. Sabemos então que ele está sendo julgado à revelia pelo assassinato de um menino que conheceu quando de sua estada, em férias, na cidade.

A primeira parte situa o espectador na questão principal que motiva o filme: o julgamento do rapaz por assassinato e o comportamento das demais personagens, habitantes da cidade e ocupantes de cargos ou posições chaves na trama que, em torno do rapaz, contribuirão para a sua acusação ou absolvição. Enfatizando através dos diálogos e embates os mecanismos de poder e atuação que tem estas pessoas no reverter do quadro de uma situação para um determinado lado dependendo do interesse dos envolvidos.

Por exemplo, o filme primeiro apresenta a reação do povão, da multidão, da plebe: justiça imediata pelas próprias mãos. Ela se arma de pedras e paus, rapazes dançam capoeira, outros observam escondidos o rapaz passar, intimidam soltando fogos na direção dele, e cantam um refrão assustador “Mata! Mata o passarão que vem de fora”.

Em seguida, o delegado o leva escoltado até o hotel de Laura, onde recebe a visita do advogado, que tenta convencê-lo a contar a verdade e que por dinheiro ele trabalhará “direitinho” na sua absolvição. Coage o rapaz revelando que a dona do hotel, Laura, é a principal testemunha, pois, além de ser a apaixonada do escrivão local ela, mulher já sem esperança, aos 43 anos, está apaixonada por ele. E que foi ela quem induziu que o interesse dele por um menino pobre e analfabeto só poderia ter sido sexual. O que deixa o engenheiro enfurecido e indignado.

A personagem seguinte de embate com o rapaz é Mário de Paiva, o primo rico do menino assassinado, que lhe envia uma carta marcando um encontro, fora do hotel, e dizendo que sabe onde Zeca da Curva está. Este talvez seja o momento mais explicativo da situação em que se encontra o engenheiro. Na conversa que desenvolve com o engenheiro, Mário se revela homossexual e que tinha “morado” na jogada dele. O que deixa o engenheiro atônito, revelando que a personagem não se sente homossexual. Mário prossegue dizendo que o entende perfeitamente bem, pois também faz parte da minoria e as minorias têm que se defender dos “normais”, da mesma forma como os judeus e os comunistas. Enfatiza que os “normais” jamais irão absolvê-lo. Sugere então que ele terá que ceder. Comenta que Laura gosta muito dele e que ele também gosta muito dele. Que poderá mudar seu depoimento, pois ele, Mário, tem que se defender dos “normais”, não pode dar chance nenhuma para que eles saibam ou suspeitem dele. E que, portanto, vai depor contra ele, caso ele não ceda mais uma vez. O engenheiro se indigna e os dois não chegam a um entendimento.

O embate de José Roberto com Laura é mostrado em cenas que demonstram a dubiedade de comportamento desta. Mostra-se carinhosa, atenciosa e amiga quando está com o rapaz e, em seguida, quando desce e conversa com o escrivão muda de tom o acusando de monstro, que deveria ficar enterrado na mesma terra que Zeca. O escrivão, por sua vez, diz que o que importa é o que ele escreve. Uma mudança de palavra para uma outra relativa pode levar à interpretação diferente.

Demonstrado assim o microcosmo do poder da cidadezinha, repleto de nuances reveladoras, o filme prossegue para o julgamento do rapaz.

Neste momento o filme já esculpiu as características da personalidade da personagem principal, o rapaz acusado: ingênuo, puro, não aceita compactuar com tramóias, pois acredita em sua inocência e que vai ser compreendido e absolvido. A questão do homossexualismo já está bem aflorada e mostrada a opinião da sociedade da pequena cidade: o rapaz é um monstro assassino.

O julgamento começa e o advogado relata ao juiz que o réu fará a sua própria defesa e que não pretende, para espanto do juiz, interrogar nenhuma das testemunhas convocadas a depor.

Os depoimentos se iniciam. Primeiro com a mãe do menino que revela que enquanto o engenheiro esteve na cidade o menino não parava mais em casa, não fazia mais carreto, mas, em compensação, trazia muito mais dinheiro para casa. Induzindo a opinião de que o engenheiro estava dando dinheiro ao menino.

O depoimento seguinte, o do caipira Aparecido Teles, conduzido pelo advogado de acusação, incrimina ainda mais o engenheiro, pois ele viu os dois juntos no último dia que Zeca foi visto. Ele revela que estava com sua mula quando avistou os dois no alto da colina ante o vento forte que soprava e que o menino tirou toda a roupa, ficou nu e abraçou o engenheiro. E nada mais viu, pois teve que ir a busca de sua mula que se soltara na ventania. Os populares do tribunal ficam indignados. José Roberto não se defende e o advogado reafirma que ele não quer inquirir as testemunhas.

Mário de Paiva destila seu depoimento em função de acusar o engenheiro quando revela, principalmente, que o engenheiro tinha, através de Zeca, proposto alugar uma cabana vagabunda, que ele tinha num lugar ermo, por dois meses, dias antes de se ausentar da cidade.

No depoimento de “Espiga de Milho”, suposta namorada de Zeca, o advogado aproveita-se da ingenuidade da mocinha, explorando o fato do engenheiro ter ficado zangado quando viu Zeca abraçá-la. Enquanto a mocinha imagina que o engenheiro procurava protegê-la o advogado conduz que o mesmo sentira ciúmes.

O depoimento de Laura, a dona do hotel, é vigiado pelo escrivão. Uma série de flash-backs se sucede mostrando a visão da personagem. Revela de sua atração especial pelo acusado e, inquirida, diz que foi correspondida até certo ponto.

Pelo recurso do flash-back vemos que Laura costura um botão na camisa do rapaz que está a sua frente nu de cintura para cima. Quando entrega a camisa ajuda-o a vesti-la e então o beija na boca. É correspondida, mas alguém entra subitamente no quarto, os dois se afastam e Laura sai.

Ela bate à noite à sua porta, mas ele não abre. Pela manhã vem trazer-lhe o café e indaga se José Roberto gostou, referindo-se ao beijo da noite anterior. Ele diz que tem grandes problemas de consciência e que é difícil responder sem ofender.

Laura olha para a foto da noiva de José Roberto sobre a mesinha e, em seguida, pega um binóculo e observa através da janela. A câmara não mostra o que ela vê. No entanto, quando ela entrou no quarto ele estava de binóculo olhando na janela. Talvez aí ela tenha visto que ele observava o menino. Pois, mais adiante, no depoimento do rapaz, vemos que este, por diversas vezes utilizava o binóculo para procurar o menino.

Laura é a última testemunha da acusação. Encerra a primeira parte do filme, de narrativa realista, conforme nossa observação nesta análise.

 

3. Análise Denotativa da Segunda Parte da Narrativa do Filme

A segunda parte do filme, logo se percebe pela mudança de tom da narrativa. Ela se torna fantástica e altamente poética quando se iniciam as seqüências do depoimento de José Roberto, que vão até o seu final. A partir daí o filme toma a visão fantástica do rapaz. Mergulha neste tom e assume uma narrativa fantástica/surrealista se sobrepondo a uma explicação realista dos fatos, ou seja, de sentido lógico.

É importante que analisemos cada passo da história narrada pelo engenheiro, pois, como o filme é extremamente literário, falado, muitas das nuances estão nas palavras e outras também em cenas sem nenhuma presença de comentários ou diálogos. Daí termos que observar atentamente não somente a denotação, o que está explícito nas cenas ou nos diálogos, mas, sobretudo, a conotação delas, pois irão somando dados que contribuirão para o desenlace do filme e a compreensão do sentido de seu discurso.

Tracemos, portanto, o caminho que o filme percorre a partir do depoimento do rapaz, o engenheiro José Roberto.

O engenheiro inicia o seu depoimento dizendo ter passado 28 dias na cidade e que veio até ela em busca do vento. Pergunta como podem saber se foi ele a última pessoa a ver o menino. Diz que talvez possa explicar tudo contando a história tal como aconteceu. E o que aconteceu não se exprime por documentos. Quem o aponta como anormal sabe que ele não se sente como todos. Ele tem uma maneira própria de ver a vida.

Ele passa mal, mas diz ao juiz que prefere continuar. Ele revela, em seguida, que o menino realmente estava com ele quando desapareceu, mas que não se aproveitou da inocência dele. O que causa um grande tumulto no tribunal.

Em seguida se põe a falar de sua “filosofia” de vida e de sua rápida ascensão profissional, explicando estar numa posição aos 25 anos quando só se consegue aos 40, pelo fato de ter estudado e de ter atividades com parentes. Comenta sobre sua atitude frente à vida, por ter um modo prático de ser, longe das pessoas de sua família que eram poetas, artistas, sonhadores. Que preferiu ser prático, tornando-se quase um cético quanto à poesia e às coisas da natureza. Recusou o sonho, o abismo, até o dia em que viu Zeca rodopiando no vento.

A sua atitude de procurar a “cidade dos ventos” se deveu a uma certa estafa culminando com um dia pesado no plateau de trabalho quando três operários morreram soterrados.

O filme, daí em diante, alterna constantemente cenas do tribunal com cenas em flash-back.

Seu primeiro contato com Zeca se dá logo na estação, quando o menino leva a sua mala até o hotel. No caminho conversam sobre o vento e combinam de sair no dia seguinte, bem cedo, para irem ver o vento no alto dos morros.

No dia seguinte os dois cavalgam pelos morros e o menino chama o vento através de assobios. O vento começa a soprar forte. Os dois confabulam longamente sobre o vento.

A cena volta ao tribunal e José Roberto revela que entre ele e o menino nasceu uma paixão comum pelo vento. E esta paixão dele pelo vento cresceu tanto a ponto de hoje não poder viver sem o vento. Assim como alguém que não pode viver sem o mar, ou sem o sol. E Zeca era o próprio vento. Na vida comum ele era um vagabundo, mas ele, José Roberto, trocava com o menino a motivação poética.

Estas declarações do rapaz expressam, pela primeira vez no filme, numa análise conotativa, a sublimação, através da paixão pelo vento, da sua verdadeira paixão pelo menino. O sentimento pelo vento sublimando a sua paixão homossexual.

No próximo segmento, o filme volta ao flash-back. Os dois conversam sobre a velocidade dos ventos. Ao depoimento do rapaz, no tribunal, dizendo que só então descobriu que o menino era um iniciado do vento, se seguem imagens de Zeca correndo, rodopiando e rolando na relva sob o vento forte.

As cenas seguintes mostram Laura observando os dois saírem de cavalo. Os dois cavalgam pela cidade, Zeca mostra o primo rico que os observa, fala com “Espiga de Milho”, sua namorada secreta, fala de ventos frios e fortes, e conversam com a avó do menino que dá interpretações supersticiosas sobre o vento: soprado por deuses. O menino chama o rapaz para ver o vento chegando, mas este logo se vai. Aparece “Espiga de Milho” e José Roberto fica olhando Zeca correr com ela em volta de árvores sobre o vento. Começa a chover e ele volta molhado, sozinho para o hotel.

Durante dois dias o vento pára de soprar e por 48 horas Zeca não aparece. Ouve-se a narração do depoimento do rapaz dizendo que foi doloroso aquela espera pelo vento. Que começou a confundir o menino com o vento.

Mais uma vez a fala no filme tonifica a sublimação do sentimento pelo vento. Sendo que, aqui, ao que parece, a personagem fica no limiar da consciência; como se todo um processo inconsciente começasse a aflorar no consciente.

A mãe do menino aparece, nervosa, no hotel indagando do filho que não aparece a dois dias em casa. José Roberto diz que não sabe dele, pois também não tem aparecido no hotel. Nesse momento entra Laura, quase como uma cúmplice, interrompe a conversa e diz que há um telefonema da noiva para ele. José Roberto vai ao telefone e fala com a noiva. E esta cena é importante. Ouvimos apenas a sua voz. De repente ele começa a se apressar para desligar o telefone, pois nota que o vento começa a balançar lentamente as cortinas. Ele pressente que o menino está por perto. Desliga o telefone, apanha o binóculo e olha através da janela. Está chovendo e o que ele vislumbra é a figura de Zeca se banhando na chuva.

Laura irrompe quarto adentro perguntando se ele conseguiu telefonar. Ele mal responde e sai da janela.

As cenas seguintes mostram o reencontro do rapaz com o menino. O rapaz fica espreitando a saída dele da igreja. Parece ansioso. O reencontro se dá e os dois se mostram contentes. Zeca diz que sumiu por dois dias porque não resistiu à conversa que tiveram sobre o mar e pegou uma carona num trem e foi ver o mar. José Roberto conta que vai embora no dia seguinte. O menino se entristece, olha para ele nos olhos e diz: “Puxa, e eu não arranjei “ventão”...Tem que ir mesmo? Puxa, agora eu quero vento e mar.” E os dois caminham. O rapaz coloca o braço sobre seu ombro, mas logo em seguida retira.

No hotel, Laura arruma sua mala e comenta sobre a ida repentina dele, da noiva. E por fim, como que apelando para ele permanecer, diz que o menino vai sentir saudades. Os dois se entreolham demoradamente.

O menino arremessa uma bola pela janela do quarto do hotel. O rapaz vai até a janela. O menino diz que hoje vai ter “ventão”. Assobia e o vento sopra um papel para perto dele. O menino sorri. O rapaz pergunta se ele é mágico. O menino sorri e diz que o vento é para a tarde.

Na seqüência vemos o rapaz subindo o morro sobre forte ventania. Ele narra que o vento o empurrava. A câmara neste momento se move em círculo diante do rosto do ator Enio Gonçalves, passando uma atmosfera de insegurança ou desequilíbrio. Ele procura pelo menino e ele não está ali.

Ele está em casa ante a vigília da mãe e da avó. Closes sucessivos fecham até os olhos do ator Luiz Fernando Ianelli. E num plano médio ele sai correndo para a rua ante os protestos da mãe.

Ele vai para o local onde está José Roberto. Este sorri quando o vê. Os dois ficam como quê em êxtase sentindo o forte vento no corpo. Close-up de cada um, de olhos fechados, em êxtase ao vento se sucedem. Zeca diz que aquele é o seu vento e tira a camisa a soltando no vento. Esta se engancha num arbusto. Em seguida ele tira toda a roupa e fica nu ao vento. Diz que com aquele ele se vai. Vai até o rapaz. Os dois se abraçam e Zeca sai correndo pelos morros e desaparece no cume de um deles. Planos de nuvens se sucedem e a câmara começa a girar em velocidade cada vez maior. O vento sopra a camisa do menino e para de repente. O engenheiro agarrado a uma árvore olha atônito para tudo.

A cena volta ao tribunal e o rapaz finaliza seu depoimento dizendo que no dia seguinte foi embora pensando que o menino voltara para casa. Que já estaria integrado à cidade. Só muito depois veio a saber, por carta anônima, que o estavam acusando de assassinato. Pede perdão ao juiz e diz estar contando uma verdade que parece conter coisas inverossímeis.

O vento começa a soprar forte as janelas do tribunal. O rapaz prossegue dizendo que essa é a verdade como aconteceu ou sua memória guardou de maneira intensa. Que participou com o menino de uma experiência rara. Que é público que após a morte de Zeca o vento parou de soprar na cidade. Que ele não é um criminoso. Porque não se mata a natureza.

Aqui, neste momento do depoimento, novamente a dubiedade, “não se mata a natureza”, o vento, o menino, a natureza de sua paixão ou a natureza de um ser homossexual.

Seu depoimento prossegue perguntando a todos os presentes, que começam a perceber a fúria do vento soprando lá fora: “Por que não admitir que ele está voltando com esse vento e subindo pelas escadas?”.

E as cenas que são mostradas a seguir entram numa atmosfera fantástica. Percebe-se nas cenas uma aparência de produção B hollywoodiana da década de 50, acentuada pelo fato do filme ser preto e branco, denotando os poucos recursos que Carlos Hugo Christensen dispôs para a produção de seu filme que pede alguns efeitos especiais obrigando-o, pelo fato de não contar com eles, a recorrer à sua criatividade nos movimentos e enquadramentos de câmara.

Logo em seguida à pergunta do rapaz, vemos uma câmara subjetiva do vento subindo rápida pelas escadas. O vento remexe com todas as janelas e objetos do tribunal assustando as pessoas que começam a sair dali em busca de proteção. Correm pelas ruas enquanto o vento derruba tudo a sua frente.

O rapaz fica sozinho no tribunal enquanto que o vento violento sacode cortinas e janelas e leva com ele todas as páginas do processo. O rapaz olha para baixo e vê a camisa de Zeca que vem até as suas pernas. Ele a apanha. Fica com ela entre as mãos numa atitude de querer acariciá-la e ao mesmo tempo não. Assim como alguém que de repente descobre algo muito intenso sobre si mesmo. Um rápido zoom vai até ele seguindo-se um escurecimento e a entrada do letreiro de fim.

 

4. Análise Conotativa do Filme

O filme termina assim. À primeira vista parece que de modo muito repentino. Mas não: a cena final revela, já no tom assumidamente fantástico, a conscientização do rapaz com o fato de que é homossexual. Além de indicar ao público que ele não matou o menino. Voltou com o vento, através da camisa, em busca do rapaz. Como todo o relato está em estilo fantástico, é necessário que tracemos um pequeno mapa dele, para atingir essa conclusão.

O importante, para a análise, é, sobretudo, a conotação do filme. Principalmente numa história fantástica como esta, que abre janelas para uma interpretação mais profunda sobre o homossexualismo.

Pelo encadeamento da narrativa, organizemos alguns tópicos que podem levar a uma melhor compreensão.

1. O rapaz vai em busca do vento. Sente-se cansado de seu ceticismo e está estafado.

2. Ele encontra um menino que faz o vento soprar. Ele se afasta de seu ceticismo, da sua fuga do sonho. Volta a sonhar.

3. Ele se apaixona pelo vento a ponto de não poder viver mais sem o vento. Começa a confundir o menino com o próprio vento. Fica angustiado quando não venta, pois o menino desaparece. Quando não vê o menino, procura incessantemente o soprar do vento.

4. Ele vai até a colina onde está acontecendo o “ventão”: o menino não está lá e ele fica confuso, (a câmara faz círculos por seu rosto). O menino chega e os dois ficam em êxtase no vento. O menino fica completamente nu, abraça-o numa despedida e some no vento. A sublimação se completa como se fosse um ato sexual. Mas ainda não está a nível consciente no rapaz.

5. Ele vai embora tendo a certeza de que o menino vai voltar. Mas quem volta é ele, acusado da morte do menino que desapareceu. Ele volta em busca de explicação do sentimento de ausência que lhe causa o não retorno do menino.

6. Em seu depoimento ele procura fazer entender a todos que sua história é verdadeira: que o menino virou vento. E é neste momento que - fantasticamente - o vento volta à cidade. E com esse vento, ele se percebe conscientemente homossexual quando, no final do filme, o vento lhe traz a camisa do menino, que ele segura como se quisesse abraçá-la e ao mesmo tempo não. Como alguém espantado com o que acaba de descobrir sobre si mesmo. Como se visse na camisa o vento e o menino. A materialização da natureza que não se pode matar: sua paixão homossexual. O vento que ele amou e se tornou menino, que é agora somente uma sensação, não existe mais. Mas este mesmo vento trouxe até ele a camisa que foi do menino. Para lembrá-lo de que esta sensação que sente pelo vento/menino é agora um sentimento que faz parte dele, faz parte da sua natureza.

Uma outra discussão sobre o homossexualismo é aberta por este filme: é como se o homossexualismo estivesse sendo julgado pela sociedade, no filme representada pelas pessoas da pequena cidade do interior. No julgamento de todas as pessoas é ponto comum condenar a relação do rapaz com o menino como algo altamente ilícito. Vejamos:

1) o rapaz seduziu o menino, o que já nega a possibilidade de amor entre eles. Deu mais dinheiro para o menino, conforme depoimento de sua mãe, em soma muito maior do que ele conseguia quando fazia carreto, ou seja “trabalhando honestamente”. O que já explicita, evidencia a perversão da sedução pelo poder do dinheiro ou das classes dominantes.

2) o rapaz seduziu o menino, teve relações ilícitas com ele e o matou. Aqui, conforme os diversos depoimentos, além de condenarem o homossexualismo como algo afeito a monstros, há o fator social: o rapaz é engenheiro, mora no Rio de Janeiro (muito embora o sotaque do ator Enio Gonçalves seja incorrigivelmente paulista misturado com o de gaúcho); em suma, pertence à outra classe social que tem dinheiro, e portanto poder. Esta é a grande ameaça: comprar as pessoas por dinheiro e fazer o que se quiser com elas.

3) o filme mostra que as pessoas que ocupam os cargos estratégicos da cidade se utilizam destes mecanismos, além da hipocrisia, como a do primo de Zeca da Curva, em conversa com o Rapaz, e do escrivão conversando com a Dona do Hotel, para se imporem. Elas vêem, naquele momento de condenação do rapaz, condenação do homossexualismo, um meio de se mostrarem como baluartes da moral da cidade e assim afirmarem e solidificarem as posições de poder que ocupam naquela comunidade ou sociedade. No fundo, a moral não existe, é só um jogo de aparências no sentido de perpetuar a hipocrisia e a ignorância, pois assim os tentáculos de sua dominação serão mais duradouros.

 

5. Análise da Linguagem Gestual

Os elementos fixos encontrados na linguagem gestual empregada nas personagens:

Tipo de Gestualidade: Não-Estereotipada (Natural).

Sub-Gestualidade: nenhuma.

Características: as personagens, em momento nenhum, têm trejeitos efeminados ou que indiquem serem homossexuais, apenas certos olhares e momentos solos indicam uma certa ansiedade.

6. Conclusão: O Retrato Fílmico

Teor do discurso: Não Pejorativo (Humanista).

Resultante Encontrada: O discurso Não Pejorativo do filme, tanto na narrativa quanto no gestual contribui para revelar o sentido do discurso que abre perspectivas mais profundas para uma discussão humanística sobre o homossexualismo.

Retrato Fílmico: O Menino e o Vento debate um tema social, a questão do homossexualismo, de maneira poética e fantástica, claramente dividido em duas partes. A primeira, na visão da sociedade brasileira minimizada através do minicosmo comportamental de uma cidade do interior de Minas Gerais. E a segunda, na visão do rapaz, uma viagem mais profunda nos sentimentos do homossexual. É, com certeza, um dos melhores filmes brasileiros sobre o assunto. Sua história rica e diferente enfoca o tema com um tratamento humanístico ajudando e ampliando os debates na sociedade para sua melhor compreensão e aceitação no convívio social.

O Menino e o Vento, baseado no brilhante texto literário de Aníbal Machado, merece estar entre as melhores produções brasileiras já realizadas. É um filme que precisa ser revisto e estudado, pois debate um tema da antropologia social num momento e tempo determinado da nossa história.

 

O presente artigo, é um texto revisto e ampliado da análise de O Menino e o Vento, uma dos dez filmes analisados na minha dissertação de mestrado A Personagem Homossexual No Cinema Brasileiro [Publicada em livro pela Eduff/Funarte, RJ, 2001 (1a. edição), 2002 (2a. edição), 312 p.].

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Sinopse e Ficha Técnica Oficial do Filme

Título: O Menino e o Vento, 1966, Carlos Hugo Christensen (1h40m).

Sinopse:

Um jovem engenheiro vai passar férias numa cidade do interior, uma região fustigada pelos ventos. Lá, conhece um menino que vive de pequenos biscates, no qual o engenheiro, fascinado, descobre um verdadeiro feiticeiro do vento. Surge uma ligação cada vez mais intensa entre eles. A população da pequena cidade começa a dar interpretações maliciosas àquela amizade. Quando um dia, o menino desaparece, o engenheiro é acusado de sua morte, agravado pela suspeita de relações ilícitas. No seu julgamento, o verdadeiro juiz será o vento.

Ficha Técnica:

Direção/produção/roteiro: Carlos Hugo Christensen. Inspirado. no conto de Aníbal Machado, "O Iniciado do Vento". Adaptação e diálogos: Millôr Fernandes. Fotografia: Antônio Gonçalves. Música: Lyrio Panicalli. RJ, 1966, p&b, 100 min. (Cia. Produtora: C H Christensen Produções Cinematográficas. Em vídeo: 1988, Warner Home Vídeo Brazil - disponível na Internet).

Elenco:

Enio Gonçalves (José Roberto Nery - o engenheiro), Luiz Fernando Ianelli (Zé da Curva - o menino), Wilma Henriques (Laura), Odilon Azevedo, Oscar Felipe, Germano filho e Palmira Barbosa.

Sobre Carlos Hugo Christensen, (15/12/1914, Santiago del Estero, AR – 30/11/1999, Rio de Janeiro, BR) – Cineasta, argentino naturalizado brasileiro, mais conhecido pelo filme A Intrusa (1979), grande vencedor do Festival de Gramado, inicia sua carreira em 1939, na Argentina, com El Buque embotellado,  (1939) e  El Inglés de los güesos (1940), onde desenvolve extensa filmografia até 1954. Muda-se para o Brasil e aqui inicia sua filmografia brasileira com filmes que tem a cidade do Rio de Janeiro como fundo, em Matemática Zero, Amor Dez (1958), Meus Amores no Rio (1959), Esse Rio Que Eu Amo (1960), Crônica da Cidade Amada (1964), Bossa Nova (1964). Além de filmes como O Menino e o Vento, 1967, baseado em Aníbal Machado, tem filmes baseados na literatura Argentina (A Intrusa, 1979) e brasileira (Viagem aos Seios de Duília, 1964). Seu último filme foi A Casa de Açúcar (1996).

Sobre Aníbal Machado, (09/12/1894, Sabará MG – 20/01/1964, Rio de Janeiro RJ) - Considerado um dos maiores contistas brasileiros e um dos introdutores do surrealismo na literatura brasileira, Autor de A Morte da Porta Estandarte, O Iniciado do Vento, Tati - a garota, O Piano, entre outros. Formou-se em Direito em 1917. Em Belo Horizonte, no início da década de 1920, ligou-se ao grupo modernista do Diário de Minas e conviveu com Carlos Drummond de Andrade e João Alphonsus, entre outros. Seus primeiros trabalhos foram publicados na revista Vida de Minas, sob o pseudônimo de Antônio Verde. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1923 e sua casa na rua Visconde de Pirajá foi um dos pontos de efervescência da vida literária brasileira entre as décadas de 1940 e 1960. Presidente da Associação Brasileira de Escritores, em janeiro de 1945 organizou junto com Sérgio Milliet o Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, em São Paulo, ainda durante o Estado Novo. Em 1959 recebeu da Academia Brasileira de Letras o prêmio Cláudio de Sousa pela peça teatral O Piano, adaptada da novela de mesmo nome. Autor do famoso João Ternura (1965), destacou-se principalmente como o contista das histórias reunidas em Vila Feliz (1944).

Nas palavras de M. Cavalcanti Proença, "a narrativa de Aníbal Machado se desenvolve em terreno fronteiriço, ora pisando chão de realidade, ora pairando nas nuvens do imaginário, entre sonho e vigília, entre espírito e matéria, verdade e mentira, relatório e ficção”.(Proença, M. Cavalcanti. Introdução - Os Balões Cativos. In: MACHADO, Aníbal M. A morte da porta-estandarte e Tati, a Garota e outras histórias, 10.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980).

Se interessou também pelo cinema (em 1941 profere no RJ a conferência O Cinema e Sua Influência na Vida Moderna), artes plásticas, música e teatro. Foi um dos fundadores de O Tablado, junto com a filha Maria Clara Machado.

Informações sobre Aníbal Machado coletadas em:

– Vídeo: Aníbal Machado, O Iniciado do Vento, 1994, de Eliane Terra, Karla Holanda, 21 min., RJ, com depoimentos de Maria Clara Machado, Josué Montello, Ivan Junqueira e Anna Letycia. https://www.curtaagora.com

– Página na web sobre Aníbal Machado:

https://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/poesia/index.cfm?fuseaction=Detalhe&CD_Verbete=5678

 

 

ANTÔNIO MORENO é cineasta e professor do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF.

 

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