SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 10 - Maio de 2012

VER COM OLHOS LIVRES

DOIS PERFUMES, DOIS FRASCOS E UMA REFLEXÃO SOBRE A BUSCA MALOGRADA PELO SENTIDO DE COMPLETUDE A PARTIR DAS TRAJETÓRIAS DE JEAN-BAPTISTE GRENOUILLE (NO ROMANCE E NO LONGA-METRAGEM) E SEUS ESTREITAMENTOS COM A CONTEMPORANEIDADE

Heder Junior dos Santos

 

Grenouille (Bem Whishaw) começa sua busca assassina pelo perfume perfeito. Cena de O perfume (2006), adaptação de Tom Tykwer do romance de Patrick Süsskind.

 

A sutileza inapreensível e, apesar disso real, do perfume, o assemelha simbolicamente a uma presença espiritual e à natureza da alma. A persistência do perfume de uma pessoa, depois da partida dela, evoca uma idéia de duração e de lembrança. O perfume simbolizaria assim a memória e talvez tenha sido esse um dos sentidos do seu emprego nos ritos funerários.

(CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain, 1991, p. 709)

 

Romance e longa-metragem: uma recriação propriamente dita ou no exercício da linguagem configura-se a morte da influêcia?

Ao nos depararmos com uma obra cinematográfica que toma por base um texto literário, múltiplas questões se apresentam nesse entrecruzamento de formas e conteúdos. A primeira vista, somos levados a considerar o caráter de fidedignidade empregado pelo cineasta em relação ao texto de origem, isto é, somos instigados a observar em que medida o filme se vale de certos elementos próprios da literatura e quais as mediações utilizadas/ necessárias para trazer às telas uma releitura peculiar da diegése literária, que por sua vez, se apresenta com códigos dispares de manifestação. Um exame de tal entrelaçamento já nos apresentaria pontos conflitantes, principalmente, pelo fato de nos colocarmos em face de duas obras confeccionadas em solos históricos distintos e autores municiados de sensibilidades, perspectivas e intenções particulares, ou seja, cada qual tem por objetivo “contar uma história”, mas é claro, “cada um a sua forma”. 

Estreitar as inclinações conteudísticas dos produtos literários naqueles cinematográficos foi o caminho percorrido até recentemente pela crítica especializada, quando se debruçou sobre a película que se propunha transcodificar uma obra literária. Municiada de juízos ansiosos por traçarem um paralelo sumarizante dos conteúdos conjugados entre livro e filme, deixou-se para o segundo plano o aspecto da especificidade dos meios, pelos quais, cada narrativa se realizou enquanto objeto artístico-cultural. Além de se esquecer que a narrativa audiovisual não apenas dialoga com seu texto-fonte, observa Ismail Xavier (2003) no ensaio “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”, que as mesmas travam conexões “com o seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo quando o objetivo é a identificação com os valores nele expressos” (p. 62). No caso do romance O perfume e sua releitura cinematográfica, os apontamentos do crítico (2003) comporiam, pois, os óculos mais fecundos para analisarmos duas ficções que pretendem revisitar a história da França oitocentista por meio da trajetória de um sóciopata, em crise com sua condição existencial e o meio circundante, diga-se de passagem, apto a conferir-lhe um estado de incompletude.

Em As formas do conteúdo, Umberto Eco (1974) assim se expressa sobre as disparidades estéticas atingidas quando da tentativa de se realizar uma releitura do mesmo conteúdo, a contradição do código e a inventividade de quem se propõe a retomar um conteúdo outrora trabalhado. Afirma o estudioso:

 

A menos que Deus não tivesse consciência do fato e houvesse baixado o interdito exatamente para fazer nascer a ocorrência histórica. Ou ao menos que Deus não existisse e o interdito tivesse sido inventado por Adão e Eva justamente para introduzirem no código uma contradição e começarem a falar de modo inventivo. Ou ainda, que o código tivesse essa contradição desde as origens e o mito do interdito tivesse sido inventado pelos progenitores para explicarem um fato tão escandaloso. [...] Como se vê, todas essas investigações nos levam para fora do nosso campo de investigações, que se limita à criatividade da linguagem, ao seu uso poético, e à interação entre forma do mundo e formas significantes. É inútil dizer que a linguagem, assim livre da hipoteca da ordem e da univocidade, é entregue por Adão a seus descendentes como uma forma bastante mais rica, mas novamente com pretensões de completude e definitividade. Daí por que Caim e Abel, quando descobrem justamente através do exercício da linguagem, que existem outras ordens, matam Adão. Esta última particularidade nos afasta ainda mais da tradição exegética consueta e nos coloca a igual distância entre o mito de Saturno e o mito de Sigmund. Mas existe método nessa loucura, e Adão nos ensinou que, para reestruturarmos os códigos, é preciso, antes de mais nada, experimentarmos reescrever as mensagens. (p. 123).

 

DOIS FRASCOS E UMA ESSÊNCIA: NOTAS PRELIMINARES SOBRE AS REESCRITURAS DOS CONTEÚDOS NO ROMANCE E NO FILME

 

O perfume (2006) carrega consigo inúmeros resquícios de fidelidade à obra literária (1985) no que se refere ao plano conteudístico. A fábula romanesca aparece fartamente na película. Não ocorre nenhuma espécie de transgressão espaço-temporal, quer dizer, não há deslocamento do tempo diegético do romance (anacronismo ou atualização). O narrador cinematográfico nos coloca novamente no contexto histórico da França da metade do século XVIII (1738 – 1767). É importante destacar que esses são os anos que antecedem à revolução francesa (1789), um período marcado pelo espírito de apatia e massacre monárquico frente aos ideais burgueses de emancipação econômica, social e cultural. Como já é possível notar, o filme margeia as crises oriundas das mudanças político-estruturais da França, que iria do esfacelamento do regime nobiliárquico à pretensa consolidação de um pais regido pela democracia burguesa e moderna.  

Dessa forma, ao confrontarmos livro e filme, observamos também que os diálogos passam por um farto processo de aproveitamento. Nesse horizonte, as personagens e seus destinos são recorrentes do romance de Süskind. Guardadas as devidas proporções, no filme, suas vicissitudes condizem em inúmeros aspectos àquelas fomentadas pelo narrador romanesco. Além de receberem um tratamento tipificado, são figuras verificáveis (verossímeis) na realidade recortada pela economia da obra, salvo o protagonista, Jean-Baptiste Grenouille, carregado de profundidade psicológica em ambas as ficções. Em outras palavras, estamos em face daquilo que Doc Comparato (1996) em Da criação ao roteiro denominou uma “adaptação propriamente dita”, quando “não há alteração da história, nem de tempo, nem de localizações, nem de personagens. Os diálogos refletem apenas as emoções e os conflitos presentes no original” (p. 331).

Vale frisar ainda, que esse trabalho analisa o filme Perfume – a história de um assassino tomando por base a trajetória do anti-herói Jean-Baptiste Grenouille, um homem pobre, branco e citadino, e também as condições histórico-sociais emolduradas pelo narrador cinematográfico que propiciaram sua condição humana de sóciopata, todavia, nos atentando aos recados dados a contemporaneidade em que foi realizado.

 

A OBRA DE ARTE, SUA SINGULARIDADE E A BUSCA MALOGRADA PELO SENTIDO DA VIDA NO REDEMOINDO DE CAMINHOS MOVEDIÇOS

 

A crítica literária e cinematográfica, assim como o julgamento de outros objetos artísticos, implica determinadas especificidades categoriais. De acordo com o teórico húngaro Georg Lukács (1978), em Introdução a uma estética marxista, a análise de obras de arte exige, segundo ele (1978), atenção especial voltada para a distinção essencial entre o pensamento científico e o estético. Nas palavras do autor (1978): “O reflexo científico transforma em algo para nós, com a máxima aproximação possível, o que é em si na realidade, na sua objetividade, na sua essência, nas suas leis” (p. 296). Visto sob esta perspectiva, o reflexo científico da realidade, sem que se façam notar as desarmonias entre as correntes teóricas, sempre ambiciona a representação “teórico-abstrata” dos processos sociais por trás dos fatos empíricos imediatos. Na leitura de Lukács (1978), no bojo da intelecção estética – uma música, uma escultura, um filme, uma obra literária, uma pintura, etc. –, a perspectiva a ser construída é outra, como bem frisou o autor (1978): “cria-se, por um lado, reproduções da realidade nas quais o ser em si da objetividade é transformado em um ser para nós do mundo representado na individualidade da obra de arte” (p. 296). Todavia nos lembra o estudioso (1978): “não separada de maneira hostil do mundo exterior” (p. 296, grifo nosso). Isso quer dizer que a atitude analítica deve necessariamente ser modificada quando estamos colocados defronte a uma obra de arte, pois o objeto não se explica necessariamente, como no discurso científico, pela manifestação da essência refreada no poder universal de leis gerais. De forma particular, a obra de arte, para o autor (1978), se resolve pela sua potencial particularidade, quer dizer, livre dos filtros e mediações próprias da ciência, resume em si a representação de um momento histórico particular, não, a priori, desbravador da essência do real, mas em hipótese alguma descolado da realidade, já que toda obra é, segundo Lukács (1978), um produto social e humano.

Grosso modo, podemos considerar que a Modernidade tem nas diversas formas de intelecção artística sua manifestação por excelência. Com o despedaçamento de uma mentalidade feudal e o advento de uma ideologia burguesa imperante, resultada de uma profunda mudança na trajetória da humanidade, a obra de arte materializa a luta (no campo estético) da cultura burguesa contra a cultura medieval; em outras palavras, os produtos artísticos encarnam a expressão da consciência e consolidação de um modo de ser e estar burguês. Então, decorreria daí a necessidade de se atentar às contradições do desenvolvimento da sociedade capitalista para notarmos como o romance e o filme O perfume (1985; 2006) se arranjam, nos planos da forma e do conteúdo, ainda mais que produzidos em seu período avançado.

Na interpretação de Fredric Jameson (2000), em Pós-Modernismo, no momento em que são confeccionadas as narrativas em análise neste trabalho, ainda subsistem algumas zonas residuais da “natureza”, ou do “ser”, do velho, do mais velho, do arcaico; a cultura ainda pode fazer alguma coisa com tal natureza e trabalhar para reformar esse “referente". O pós-modernismo, na leitura de Jameson (2000 ) é o que se tem quando o processo de modernização está completo e a natureza se foi para sempre. É um mundo mais completamente humano que o anterior, mas é um mundo no qual a “cultura” se tornou uma verdadeira “segunda natureza”. De fato, o que aconteceu com a cultura pode muito bem ser uma das pistas mais importantes para se detectar o pós-moderno: uma dilatação imensa de sua esfera (a da mercadoria), uma aculturação do real imensa e historicamente original; dito de outra maneira: um salto quântico no que Benjamim ainda denominava a “estetização” da realidade – e isso porque acreditava que isso dava no fascismo; mas nós sabemos que é apenas divertido: uma prodigiosa alegria diante da nova ordem, uma corrida às compras:  nossas “representações” tendendo a gerar um entusiasmo e uma mudança de humor não necessariamente inspirados pelos próprios objetos representados. Assim, na cultura pós-moderna, a própria “cultura” se tornou um produto, o mercado tornou-se seu próprio substituto, um produto exatamente igual a qualquer um dos itens que o constituem: o modernismo era, ainda que minimamente e de forma tendencial, uma crítica à mercadoria e um esforço de forçá-la a se auto transcender, caso o termos seja permitido. O pós-modernismo é o consumo da própria produção de mercadorias como processo. O “estilo de vida” da superpotência tem, então, com o “fetichismo” da mercadoria de Marx, a mesma relação que os mais adiantados monoteísmos têm com os animismos primitivos ou com as formas mais rudimentares de idolatria. 

O pós-moderno como crise da historicidade, surdez histórica. A teoria do pós-modernismo é uma dessas tentativas: o esforço de medir a temperatura de uma época sem os instrumentos e em uma situação em que nem mesmo estamos mesmo certos de que exista algo como a coerência de uma “época”, ou Zeitgeist. Apesar do delírio de alguns de seus celebrantes e apologistas (cuja euforia é em si mesma um interessante sintoma histórico), uma cultura verdadeiramente nova somente poderia surgir através da luta coletiva para se criar um novo sistema social. A impureza constitutiva de toda teoria do pós-modernismo (assim como o capital, ela tem que manter uma certa distância interna de si mesma, tem que incluir o corpo estranho de um conteúdo alheio) confirma, então, um dos achados da periodização que precisa ser sempre reiterado: o pós-modernismo não é a dominante cultural de uma ordem social totalmente nova (sob o nome de sociedade pós-industrial), mas é apenas reflexo e aspecto concomitante de mais uma modificação sistêmica do próprio capitalismo. Não é de espantar, então, que vestígios e velhos avatares – tanto do modernismo como até do próprio realismo – continuem vivos, prontos para serem (re)embalados com os enfeites luxuosos de seu suposto sucessor. O delírio de apelar para qualquer elemento virtual do presente com o intuito de provar que este é um tempo singular, radicalmente distinto de todos os momentos anteriores do tempo humano, parece-nos por vezes, abrigar uma patologia distintamente auto-referencial, como se nosso completo esquecimento do passado se exaurisse na contemplação vazia, mas hipnótica, de um presente esquizofrênico, incomparável por definição. Entretanto, como se demonstrará mais adiante, decidir se o que se encontra diante de nós é uma ruptura ou uma continuidade – se o presente deve ser visto como historicamente original ou como repetição do mesmo em nova embalagem  - não é algo que possa ser justificado empiricamente, ou defendido em termos filosóficos, uma vez que essa decisão é, em si mesma, um ato narrativo inaugural que embasa a percepção e a interpretação dos eventos a serem narrados.

 

O(S) PERFUME(S): NARRATIVAS POLICIAIS OU A NECESSIDADE DA BUSCA POR UMA IDENTIDADE PESSOAL SE RECOLOCA NA CONTEMPORÂNEIDADE

  

Desde o início do filme Perfume – a história de um assassino, somos informados de importantes elementos que efetuam sua costura discursiva. Já na cena inicial, somos colocados em face de um sujeito (que o narrador ainda não informou, mas que logo o leitor da sentença nos deixará claro ser Jean-Baptiste Grenouille, um aprendiz de perfumista) que é achatado pela câmera numa parede rugosa e escura, colocando-o numa posição de oprimido. Ainda como expectadores, não sabemos os reais motivos que levaram aquele indivíduo ao julgamento do tribunal, enquanto somos  avisados da brutalidade com que será morto em alguns dias. Esse acontecimento pertence ao desfecho da narrativa, e ao ser colocado já na abertura do filme, nos faz ficar curiosos acerca dos episódios que levaram Jean-Baptiste àquela situação. Isso é bastante recorrente em narrativas de suspense, já que toma o leitor pela bisbilhotice. Não obstante, nos perguntamos qual seria a trajetória degradante desse sujeito? Como é possível entrever, o enredo fílmico se apresenta in ultima res, ou seja: o discurso narrativo se inicia com a apresentação de um acontecimento que pertence ao desfecho da diegése.

Em meio a acalorados gritos da comunidade em êxtase, a câmera vai se aproximando do protagonista até adentrar no nariz do mesmo e dissolver o plano em preto e os letreiros em branco deixarem claro que conheceremos a história de um assassino, como nos títulos do livro e do próprio filme em questão. Cinematograficamente, é comum que essa sobreposição do branco no preto anuncie que não teremos uma narrativa pacífica, mas sim marcada por crises e conflitos, ou melhor, que algo de ruim está para acontecer. Assim, o percurso da câmera até o nariz de Jean-Baptiste Grenouille pode ser interpretado como se o narrador fílmico já antecipasse que será através dessa qualidade sensível (olfato) que o protagonista captou e assimilou o mundo circundante e os dilemas de lá provindos e aparentemente de onde o narrador construirá seu relato.

Importa comentar que a “questão dupla do narrador” também é colocada pelo filme, isso se dá pelo recurso da voz over que nos faz conhecer mais detalhes do que aqueles fomentados pelas imagens. Em certos sentidos, essa voz olímpica tem uma função pedagógica dentro da trama, de ir tecendo e amarrando os sentidos do filme. Importa destacar que chamamos de “questão dupla do narrador” o fato de haverem duas instâncias narradoras já conhecidas daqueles que se debruçam sobre a sétima arte. Tanto a voz sobreposta às imagens, que ordena o que vai contar, quanto a própria câmera, que vai nos mostrando esse “cosmos possível” à luz de suas vontades.

Há um corte e somos levados para um mercado de peixes, local onde Jean-Baptiste nasce. Esse inicio já demonstra certa autonomia do enredo fílmico em relação ao literário. No romance de Patrick Süskind, a história de Jean-Baptiste é arranjada em chave causal, ou seja, respeitando a linearidade da cadeia ab ovo, isto é quando não há anacronias no desenvolvimento do enredo: os fatos são apresentados a partir da lógica cartesiana de causa e efeito; assim, a fábula é narrada com início, meio e fim, nessa ordem.   

Podemos considerar que o filme tráz à baila uma França decadente, pobre, suja e bastante propícia para o aflorar de uma subjetividade em crise. Não temos uma “glamourização” do espaço, pelo contrário, o filme utiliza-se do modo de representação realista como fio condutor. Somos colocados em contato com a plebe, não com a monarquia do período. Nesse sentido, há um aproveitamento da perspectiva proposta pelo romance, que logo nas primeiras páginas nos expressa:

 

Na época em que falamos, reinava nas cidades um fedor dificilmente concebível por nós, hoje. As ruas fediam a merda, os pátios fediam a mijo, as escadarias fediam a madeira podre e bosta de rato; as cozinhas, a couve estragada e gordura de ovelha; sem ventilação, salas fediam a poeira, mofo; os quartos, a lençóis sebosos, a úmidos colchões de pena, impregnados do odor azedo dos penicos. Das chaminés fedia enxofre; dos curtumes, as lixívias corrosivas; dos matadouros fedia sangue coagulado. Os homens fediam a suor e roupa não lavadas; da boca eles fediam a dentes estragados, dos estômagos fediam a cebola e, nos corpos, quando já não eram bem novos, a queijo velho, a leite azedo e as doenças infecciosas. Fediam os rios, fediam as praças, fediam as igrejas, fedia sobre as pontes e dentro dos palácios. Fediam os camponeses e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a nobreza toda, até o rei fedia como um animal de rapina, e a rainha como uma cabra velha, tanto no verão quanto no inverno. Pois à ação desagregadora das bactérias, no século XVIII, não havia sido ainda colocado nenhum limite e, assim, não havia atividade humana, construtiva e destrutiva, manifestação de alguma vida, a vicejar ou a fenecar, que não fosse acompanhada de fedor. (SÜSKIND, 1985, p. 5-6).

 

Como podemos entrever, o caráter degradante do odor é utilizado para marcar o espírito decadente que perpassa os espaços privados e públicos. Plebe, clero e monarquia estão na mesma condição. As relações humanas são marcadas por uma pobreza exacerbante. Evidentemente, romance e filme buscam um efeito sinestésico ao provocarem a aglutinação de diferentes sentidos, mas ao nosso ver, o fedor abre espaço para falar de uma outra condição decadente que transcende aos limites de classes sociais; segundo o trecho transcrito; todas as entidades padeciam de um mesmo mal: o espírito decadente e desnorteador de seu tempo,  corporificadas ao cheiro ruim que pairava pelas cidades francesas, em especial, por Paris, a mais populosa cidade da Europa no período enquadrado pela diegése fílmica. Assim, o odor é utilizado alegoricamente como sintoma sutil de um tempo em crise, e que logo fomentaria a luta burguesa por sua emancipação.

É nesse solo-histórico que nasce Jean-Baptiste Grenouille no filme. Rejeitado pela mãe como acontecera com seus outros cinco irmãos, o protagonista morreria, se não fosse dotado de uma capacidade “única e fenomenal”, para utilizar os termos do narrador; de captar o mundo fétido que o cercava desde então. No campo expressivo, a câmera torna-se subjetiva à Grenouille; por meio do campo-contra-campo, vai nos descortinando a podridão do mercado, seus sujeitos e seus produtos. É curioso que ele nasça num mercado, o espaço do capital por excelência, pois como buscaremos evidenciar, há um processo de coisificação do protagonista, ele será marcado por um contexto de exploração por quase toda a película, é mais um acessório das coisas inertes. Isso é até verossímil para a economia da obra, pois resulta no nó-gordio da mesma: um sujeito que buscará sentido para sua existência, que consegue pensar sua própria condição de explorado, de se ver como mais um produto na prateleira mercantilista. Importa lembrar que para o pensamento burguês, “a mercadoria é uma coisa natural, sólida, cuja causa é relativamente sem importância, secundária: sua relação com tal objeto é de puro consumo” (JAMESON, 1985, p. 147). Assim sendo, somente por meio do conflito entre homem e destino, natureza ou realidade empírica, o mundo “pode ser narrado através de categorias puramente humanas e sociais” (JAMESON, 1985, p. 149).  

Nesse tempo do “salve-se quem puder”, Jean-Baptiste toma consciência de que a sociedade o tornou um homem abstrato, sem qualquer particularidade social, e será utilizando de sua potencialidade olfativa, que Grenouille marcará seu lugar no mundo, pois como nos fala o narrador fílmico, Jean-Baptiste se levantou como um dos mais “talentosos e conhecidos personagens de seu tempo [...] e se o nome dele foi hoje esquecido é apenas porque toda sua ambição se restringia a um domínio que não deixa vestígios na história. O fugaz domínio do aroma”. É importante destacarmos que não tomamos a personagem como existente no tempo conformado pela obra em análise; mas que entendemos a reiteração proposta acima pelo narrador como uma forma de legitimar o discurso que narra, isto é, de elaborar um anti-herói verossímil, em consonância com os fatos ficcionais.

Ao ser enviado para o orfanato da Sra. Gaillard, Jean-Baptiste torna-se, “uma fonte de renda como os outros”, como nos dá a conhecer o narrador. Não é tratado como um indivíduo munido de particularidade, mas como mais um número a acrescentar benefícios nas rendas de Gaillard. Não tem regalias, nem atenção devida quando recém-nascido. É nesse espaço cheio de crianças fragilizadas, regidas pela lógica da agressão física como forma punitiva para qualquer deslize às normas pessoais da mantenedora, que o protagonista passa sua infância. Nessa microestrutura social em que se vigia e se pune, os direitos básicos são deixados de lado, as cenas de violência são constantes; carinho e afeto são vocábulos inexistentes. Dessa forma, o filme nos faz perceber que essa ordenação social forma um indivíduo frio e calculista, desapegado a sentimentalismos, por nunca os ter tido. Portanto, Jean-Baptiste reflete quando adulto, muito dessa (de) formação.    

Seu desenvolvimento é peculiar. Aos cinco anos, apenas balbuciava palavras, por outro lado, se acentua o olfato como fonte de informações acerca da realidade circundante e de si mesmo, isto é, as qualidades olfativas como instrumento de intelecção do real. O narrador mostra-se bastante apegado à Grenouille, ele não desautoriza essa forma peculiar de leitura de mundo, não confere um olhar estranhado a essa situação, como acontece com as crianças do orfanato, que se inquietam com sua presença, agredindo, menosprezando e colocando de lado; pelo contrário o narrador mostra-se bastante empenhado em transcrever em imagens aquilo que só é captável por Grenouille; para o protagonista, não havia uma correspondência exata entre a linguagem e a essência das coisas, questão bastante perseguida pelos filósofos ao longo da trajetória humana, principalmente os nominalistas do período medieval. A título de exemplificação, podemos evocar a cena em que o pequeno Jean-Baptiste está deitado de olhos fechados, tentando nomear os elementos do real.

A câmera se deleita no percurso estabelecido pela curiosidade de Grenouille e ao chegar numa rã, não consegue inteligir sobre o que seriam os girinos que a acompanham. Essa falta de identificação objetiva esconde pistas interessantes acerca da condição existencial de Jean-Baptiste. Municiado de um meio peculiar de compreensão do real, bastante potente, o anti-herói corporifica um sujeito em metamorfose, assim, ele recebe da narrativa uma ornamentação em chave de grotesco; sua característica destoante ao meio em que está alocado imputa no mesmo uma posição de vantagem frente ao mundo, mas sua condição social o rebaixa. Uma interpretação sobre esse caráter fantástico seria interessante, mas a nosso ver, o filme dá uma forma sintética a um sujeito sensível que assimila as crises de seu tempo histórico (1738 – 1767), ou melhor, desprovido de pai e mãe, Jean-Baptiste é filho de seu tempo e semente de seu terreno social. O fato de “Grenouille” significar girino, em francês, identifica-o a essa condição de homem em processo de transformação. É chamado pela voz over de “bactéria resistente”, aquela que se adapta às situações de seu meio, com a finalidade de se manter viva, para então corporificar um novo indivíduo. Se a revolução burguesa provoca uma mudança sócio estrutural, Jean-Baptiste anuncia nos anos antecedentes, um sujeito que não se enquadra às mudanças, ou seja, que não as compreende racionalmente. Mais do que propor uma metamorfose particular, o narrador fílmico parece mostrar sensivelmente que a transformação se deu de forma problemática para a classe dos mais desfavorecidos. Em outras palavras, estamos em face de uma personagem desnorteada, que não consegue se enquadrar em seu solo-histórico, que por sua vez, se apresenta predatório e pretensamente unificador, que lhe furta a individualidade e o coloca na condição de mercadoria. Daí podermos inferir que é a sagacidade desse homem formado longe dos modelos clássicos que vai garantir e permitir que o mesmo busque compreensão de si num mundo caótico.

Os outros dois contextos em que o protagonista é explorado recaem na sua adolescência e na fase adulta. Se o estado pagou à Sra. Gaillard para mantê-lo num orfanato, a mesma se vê no direito de vendê-lo ao curtumeiro Grimal por sete francos. Nessa sua nova vida, o protagonista trabalha “duro quinze, dezesseis horas por dia, no verão e no inverno”, informa o narrador. Estamos em face de um contexto de exploração e alienação por meio do trabalho escravo, já que o mesmo não parece receber nenhuma forma de recompensa que não seja comida e moradia. A outra forma de exploração se estabelece com uma segunda compra de Jean-Baptiste, dessa vez pelo perfumista falido Baldini, esse vê no protagonista a possibilidade de fazer fortuna utilizando de suas capacidades olfativas. Como se nota, na cidade a opressão se materializa por meio da utilização exacerbada das capacidades elaborativas de Grenouille com as fragrâncias, isto é, sua inventividade é furtada em nome da busca por rendimentos para Baldini e sua satisfação moral em ser conhecido e respeitado.    

É a partir desse momento que se intensificam as crises de Jean-Baptiste. Primeiramente, ele intenta captar e reproduzir os aromas do mundo. Com Baldini, aprende a lógica racional de formulação de perfumes, com seu método dos treze elementos e acordes. Isso se refletirá na morte das treze mulheres, que terão suas fragrâncias apreendidas e preservadas com a finalidade de elaborar um perfume catártico. É imperioso mencionar que a existência de tal possibilidade é fomentada no filme através uma lenda egípcia que o mesmo Baldini conta à Jean-Baptiste. Portanto, o caráter verossímil do plano do protagonista se dá em duas linhas que se entrelaçam, a científica e a lendária. Tudo isso pautado pelo hedonismo característico do sóciopata, tendo em vista que o mesmo acredita que com tal formulação seria lembrado no mundo, ou então, não passaria despercebido, como sempre aconteceu. Ao que parece, temos uma personagem em crise de identidade buscando solucioná-la. Isso se torna mais palpável através da cena em que Jean-Baptiste vai para Grasse. Ao adentrar numa caverna, no alto de uma montanha, percebe que é o único elemento orgânico carente de fragrância. Nesse momento, é nítido o caráter sagrado da montanha, enquanto símbolo de revelação. Como verbaliza a voz over, “pela primeira vez na vida, ele percebeu não ter odor próprio. E que a vida toda ele havia sido insignificante para todos. O que ele sentia agora era o medo do próprio esquecimento. Era como se ele não existisse”.  

É nesse contexto que Grenouille deflagra seu plano, mata treze mulheres típicas, como a camponesa, a prostituta, as gêmeas e a freira. Ele capta suas essências. Para ele, “o perfume é a alma das pessoas”, informa a diegése fílmica. É preso e levado à condenação. Realiza-se a costura discursiva, já que voltamos à primeira cena do filme, mas agora já conhecedores da trajetória de Jean-Baptiste.

 

PISTAS FINAIS

 

O que o filme Perfume – a história de um assassino propõe é revisitarmos a história oficial da França seguindo os passos de Grenouille, tomando por base uma pretensa fidelidade conteudística com o romance homônimo de Patrick Süskind. Em ambas as ficções, fica clara a intenção em narrar uma história num viés diferente daquele que conhecemos nos livros. Há uma espécie de questionamento sobre a veracidade de tais relatos, ou ao menos, uma proposta de reconfiguração da mesma levando em consideração a perspectiva de uma personagem marginalizada em seu meio, e fartamente, explorada. Num percurso marcado por violência nas relações humanas, Grenouille corporifica e reflete as crises, tensões e angustias do tempo em que está conformado. É filho de seu tempo, como demarcamos em nossa análise. Guardadas as devidas proporções, é como se o mesmo representasse o espírito desnorteador de seu tempo, e sua busca hedonista por um perfume catártico se relacionasse à falta de sentido do mundo moderno, fomentados por uma França em transição, de uma estrutura sócio-política baseada na monarquia à luta pela emancipação da burguesia. Ao que tudo indica, o fato de Jean-Baptiste ser carente de aroma (logo, de uma existência substancial) indica, em chave crítica, o lugar da plebe no redemoinho do processo de democratização francesa.    

 

Referências bibliográficas:

 

BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 4. ed. Trad. Vera da Costa e Silva [et alli.]. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.

COMPARATO, D. Da criação ao roteiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.      

ECO, U. As formas do conteúdo. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo: EDUSP, 1974.

FREIRE, R.; SILVA, M. V.B. Sobre uma sociologia da adaptação fílmica: um ensaio de método. Crítica cultural, v. 2, nº 2, 2007. 

JAMESON, F. Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século XX. Trad. Iumna Maria Simon [et alli.]. São Paulo: Editora Hucitec, 1985. 

______. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 2000.

LUKÁCS, G. Introdução a uma estética marxista. Trad. Carlos Nelson Coutinho & Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

SÜSKIND, P. O perfume. Rio de Janeiro: Record/ Altaya, 1985. (Coleção Mestres da literatura contemporânea). 

XAVIER, I. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”. In: PELLEGRINI, T. (org.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac. São Paulo: Instituto Cultural, 2003.

 

Filmografia:

 

Perfume: the story of a murderer. Alemanha, França e Espanha. 2006 (Título no Brasil: Perfume - a história de um assassino). Direção: Tom Tykwer. Produção: Bernd Eichinger. Elenco: Ben Whishaw, Dustin Hoffman, Alan Rickman, Rachel Hurd-Wood, Andrés Herrera, Simon Chandler, David Calder, Richard Felix, John Hurt e outros.  Roteiro: Andrew Birkin, Bernd Eichinger, Tom Tykwer. Fotografia: Frank Griebe. Trilha Sonora: Reinhold Heil, Johnny Klimek, Tom Tykwer. 2006 (147 min), son., color.

 

HÉDER JUNIOR DOS SANTOS é Mestrando em Letras na FCL da UNESP/ Assis, Bolsista do CNPq e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Cinema e Literatura na FFC da UNESP/ Marília. heder_eu@hotmail.com)

 

 

© 2012 – Heder Junior dos Santos.

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