SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 2 - Março de 2004

LONG-SHOT - CINEMA E SEXUALIDADES

AS FALAS DA SEXUALIDADE: Aspectos sobre a representação do lesbianismo no Cinema

Monica Palazzo

 

Neste presente ensaio pretendo fazer uma investigação sobre a imagem do lesbianismo presente em alguns filmes. Instigada pela possibilidade de explorar certos aspectos sob o tema "as falas da sexualidade", resolvi me aproximar de filmes e textos que abordassem homossexualidade e o homoerotismo femininos.

 

Um conhecimento que vem sendo experimentado nas raias da vida cotidiana agora se inicia na teoria. Usei para, o presente, base teórica promovida por textos que direta ou indiretamente ofereceram subsídios para a minha reflexão sobre o assunto.

Se a história não fala das relações físicas e emocionais entre mulheres é como se não tivessem existido, pois é através da linguagem que as representações sociais são formadas, e isso não somente aplicado à questão da(s) (diversas) sexualidade(s), mas para todo assunto/fenômeno social.

"Tentar observar como uma certa prática sexual se insere nas relações sociais, maneiras de sentir, de perceber o mundo e a si próprias" (Navarro-Swain, 2000, p.11) e aplicar essa observação através do cinema, um meio de comunicação e expressão artística muito evidente e atuante na formação da subjetividade e do imaginário social. Como as mulheres que desejam mulheres são vistas e colocadas nas telas, como aparecem e que leitura(s) o espectador pode ter.

Durante muitos anos nem havia um termo próprio para as mulheres homossexuais, o que dificultava ainda mais colocar a existência delas na ordem do discurso histórico. Mas apenas falar sobre um assunto sem ter a atenção de como se fala sobre esse assunto pode ser tão grave quanto ignorá-lo; representações equivocadas ajudam a criar uma imagem errônea e muito distante da realidade.

 

 

Um breve apoio histórico

O ser humano sempre foi caracterizado pelo parâmetro do homem branco heterossexual e, a partir dessa acepção, todas as outras manifestações sócio-culturais são vistas. "A mulher existe na cultura patriarcal como o significante do outro masculino, presa por uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões através do comando lingüístico, impondo-as sobre a imagem silenciosa da mulher, ainda presa a seu lugar como portadora de significado e não produtora de significado." (Mulvey, 1991, p.438)

Neste presente ensaio, vou explorar, pelo menos em parte, uma questão que vai de encontro ao parâmetro do homem heterossexual, a da mulher homossexual como portadora de significado (aqui deixo um pouco de lado a questão da raça ou da nacionalidade para me concentrar na da orientação sexual).

O real vivido é interpretado de diferentes formas através dos anos e do movimento da História; não há verdades absolutas, mas pontos de vista sobre determinado assunto, e a maneira como eles são representados ajudam a construir imagens e conceitos mais ou menos abrangentes dentro de uma sociedade. O repertório pessoal de cada um, bem como o contexto no qual o indivíduo está inserido, ajuda a construir a visão sobre qualquer assunto.

Ao longo dos tempos, sobretudo na sociedade cristã ocidental, institui-se como normalidade a heterossexualidade, fundamentada na relação entre os seres humanos com base na reprodução e, conseqüentemente, no sexo biológico (baseado na genital), portanto, o que é natural. E o que foge a essa norma reprodutiva é anormal, ou até mesmo patológico (por muitos anos a psiquiatria considerou a homossexualidade como doença passível de tratamento.) 2

Um dos primeiros estudos sobre a lésbica na história é o da filósofa francesa Simone de Beauvoir, cujo livro "O Segundo Sexo" dedica um capítulo ao assunto. Ela o escreveu em 1949, e hoje pode ser muito criticado, pois Beauvoir faz afirmações duvidosas, como o fato de as mulheres procurarem outras por serem "mal amadas" pelos homens; e as lésbicas são chamadas de "invertidas", pois caracterizam uma ordem transtornada (a heterossexualidade). Mas este estudo pioneiro é importante como apoio para a visão que existia na época sobre o assunto, e a própria filósofa manteve relações com uma mulher. Vale ressaltar que a célebre frase presente no livro "não se nasce mulher, torna-se" denuncia a construção social dos papéis de gênero.

O comportamento social-sexual de uma mulher é visto como deve ser, como a "natureza" indica."As meninas eram vigiadas em suas preferências, em suas atitudes, na busca constante de sintomas de normalidade ou desvio: fúteis, frágeis, passivas, diáfanas, superficiais, ignorantes, felizes de sê-lo, são as ´verdadeiras mulheres´. Qualquer manifestação quanto ao intelecto, à leitura, a atividades impróprias podia ser um signo de anomalia, de lesbianismo, de ´querer tomar o lugar do homem`." (Navarro-Swain, 2000, p.56)

A própria mulher foi apagada da história pelo papel secundário que a ela foi relegado durante muitos anos. É interessante ter em mente que há apenas 50 anos a mulher vem conseguindo certo poder de imagem, representação e discurso em algumas sociedades (por exemplo, as "recentes" conquistas promovidas pela revolução sexual, o anticoncepcional, o movimento feminista pelos direitos da mulher)3. "O discurso da homossexualidade feminina está sempre entremeado com pelo menos três outros: o discurso da feminilidade, o discurso da sexualidade e o discurso amoroso". (Portinari, 1989, p.28)

 

A ausência de material sobre o lesbianismo está intimamente ligada à ausência da participação feminina no processo histórico e na produção cultural da humanidade. A linguagem se moldou nos termos de um universo que é percebido como dominado pelos signos da masculinidade. E por conseqüência o próprio discurso sobre o lesbianismo, que acaba tratando a subjetividade lésbica dentro da construção heterossexual da sexualidade. A heterossexualidade define e cria nossa sexualidade, seja ela qual for. "A sexualidade não é apenas definida mas também reforçada como heterossexualidade, mesmo na forma homossexual" (Bad Object Choices, 1991, p.23)

Outro aspecto muito importante ao se tratar desse assunto é que o padrão heterossexual de análise leva em consideração a presença do falo na relação sexual. No senso comum4 só há sexo se houver penetração, e a penetração "necessita" do órgão masculino, e ao mesmo tempo da mulher como não portadora do órgão, portanto, castrada. Como estou falando sobre sexualidade (a prática), além do erotismo (o desejo), percebo a necessidade de tecer alguns comentários sobre o ato sexual. O principal erro nesse pensamento é considerar a penetração como a única forma possível de se fazer sexo; partindo-se deste princípio deixa-se de lado o desejo, o envolvimento que gera tesão, e o apetite sexual5. Essa visão encara a transa como algo mecânico e ignora a participação do nosso cérebro como também responsável pelo desejo. "Tudo existe e a sexualidade é vivida na singularidade individual, com maior ou menor sujeição às representações sociais comuns." (Navarro-Swain, 2000, p.86). A representação do lesbianismo heterossexualmente concebida é também heterossexista - "sexo real" só acontece entre homens e mulheres e entre homens gays.6

Hoje existem estudos sobre a questão feminista (da mulher na sociedade) e a questão lésbica (da orientação sexual da mulher), mas ainda estamos longe de visibilidade e sobretudo, respeito generalizado. Este ensaio é também uma forma de criar uma coerência no meu pensamento sobre o assunto.

 

Questões do cinema, da mulher e do lesbianismo

A pesquisadora norte-americana Teresa de Lauretis inicia sua discussão sobre a visibilidade das relações lésbica em filmes; ao longo do texto "Film and the Visible"7 ela analisa o filme "She must be seeing things" (Sheila McLaughlin, EUA, 1987). Tomarei tal análise como ponto de apoio para analisar outros filmes que, de uma forma ou de outra, colocam no plano do visível, representações de relações físicas e emocionais em que o sujeito e o objeto são os mesmos, mulheres.

As questões principais estão inseridas nas perguntas: como eu vejo - você, eu mesma; como eu apareço, como eu sou vista? Como eu olho para você - para ela, para o filme, para mim mesma? Quais são as possibilidades e modos da minha visão? Aliado a elas, o que é específico do cinema enquanto forma de representação, a visão subjetiva e a visibilidade social, o que pode ser visto e erotizado8.

Essas questões relativas à visibilidade e às formas de representação das relações entre mulheres são colocadas partindo-se do princípio de que nós temos como parâmetro a relação heterossexual. "A magia do estilo de Hollywood, em seus melhores exemplos (e de todo o cinema que se fez dentro de sua esfera de influência) resultou, não exclusivamente, mas num aspecto importante, da manipulação habilidosa e satisfatória do prazer visual. Incontestado, o cinema dominante codificou o erótico dentro da linguagem da ordem patriarcal dominante." (Mulvey, 1991, p.440) e "Enquanto sistema de representação avançado, o cinema coloca questões a respeito dos modos pelos quais o inconsciente (formado pela ordem dominante) estrutura as formas de ver e o prazer do olhar." (Mulvey, 1991, p.439)

 

O cinema constrói o imaginário das pessoas e, de certa forma, é por ele construído. Na narrativa cinematográfica, o prazer e a identificação do espectador caminham juntos, e tratar de um assunto pouco falado no dia-a-dia e também pouco representado no cinema é uma forma de aproximar-se dele, colocando-o em evidência para que novas idéias possam surgir. Afinal, as representações de mulheres que desejam mulheres não existem como aspectos dominantes na nossa cultura.

O voyeurismo e a escopofilia (o ato de olhar como fonte de prazer) são assuntos relacionados à fruição cinematográfica e, com eles, à relação do espectador com a subjetividade, o desejo e a imaginação, e "as condições de projeção e as convenções narrativas dão ao espectador a ilusão de um rápido espionar num mundo privado." (Mulvey, 1991, p.441) Por isso, vejo a necessidade de uma visão crítica em relação às condições da visibilidade lésbica presentes em alguns filmes. O que se fala, como se fala, e como nós enquanto espectadores, os vemos.

No texto de Laura Mulvey sobre psicanálise e cinema (já usado em citações anteriores), há um subtítulo "a mulher como imagem, o homem como dono do olhar", onde a pesquisadora afirma que "num mundo governado por um desequilíbrio sexual, o prazer no olhar foi dividido entre ativo/masculino e passivo/feminino. O olhar masculino determinante projeta sua fantasia na figura feminina, estilizada de acordo com essa fantasia." (Mulvey, 1991, p.440). A identificação instigada de maneira dominante no cinema narrativo coloca a mulher como objeto de desejo, e o homem como sujeito desse desejo; ele possui o poder ativo do olhar erótico sobre a figura feminina.

 

Por outro lado, a cinematografia com narrativa sobre lésbicas9 pode ser uma alternativa nessa visão exclusiva da mulher como objeto de desejo para o homem10. As dicotomias homem/mulher - sujeito/objeto são passíveis de ganhar outras interpretações. A identificação dos espectadores (homens ou mulheres) pode ocorrer num nível diferente do apresentado pela pesquisadora.

 

Filmes Analisados

Para este estudo resolvi trabalhar com filmes em que as lésbicas são apresentadas de forma evidente na narrativa fílmica. Mas é impossível não esquecer que por muito tempo na História do Cinema não havia muitas situações cinematográficas explícitas de relações homossexuais (gay ou lésbica), e a visibilidade era mais uma invisibilidade, na qual essa temática encontrava-se subentendida: "momentos que, captados por um `segundo olhar`, ficaram eternizados entre os espectadores homossexuais das décadas passadas como sendo portadores deste `algo indefinível`, mas que certamente relacionava-se profundamente com suas vidas." (Cunha, 1999, p.240) Tais "momentos" poderiam ser lidos através de códigos próprios de como gays e lésbicas percebem o mundo, no contexto espacial, temporal e cultural, portanto, dentro da evidência de personagens lésbicas aplicarei alguns comentários evidenciando aspectos sobre essas sexualidades, levando em consideração minha formação enquanto jovem estudante lésbica no início do século XXI.

Dentro da representação social e no caso cinematográfica para mulheres cujo objeto de desejo sexual são outras mulheres, existe uma tipologia do lesbianismo, ancorada no imaginário social, com algumas variações espaço-temporais". 11 Nos filmes por mim escolhidos essa tipologia é evidenciada, e usei-me dela para apoiar minha reflexão.

 

Gina Gershon e Jennifer Tilly em cena de Ligadas pelo desejo (Bound)

 

O casal formado pelas personagens Corky (Gina Gershon) e Violet (Jennifer Tilly) no filme Ligadas pelo Desejo (Bound, Larry e Andy Wachowsky, EUA, 1996) são a representação no modelo heterossexual para um casal de mulheres. "Uma lésbica do tipo masculino está mais apta a assumir o papel ativo, mas é freqüentemente a do tipo feminino quem toma a iniciativa desde o começo da excitação sexual." (Caprio, 1970, pp.31-2 em Portinari, 1989, p.57)12. Ao mesmo tempo em que essa polarização bela-fera ou femme-butch torna o lesbianismo inteligível ao senso comum, paradoxalmente o distancia, pois afirma a ininteligibilidade do assunto dentro da mesma linguagem.

Na seqüência da primeira abordagem efetiva entre as duas, Violet inicia o jogo de sedução sobre Corky, que se mantém em uma posição neutra até ser incitada a tocar os seios de Violet. Desde o início do filme as personagens são representadas claramente, através do visual, do andar e da impostação da personagem como sendo do tipo masculino (Corky) e feminino (Violet). A personagem feminilizada, desde o começo se oferece como um símbolo sexual extremamente atraente para todos os gostos, já a personagem masculinizada, apesar de todos as características visuais de uma "mulher-macho", é representada por uma atriz extremamente bonita, com o rosto e o corpo atraentes, e camisetas agarradas.

 

A estereotipização é dúbia, para agradar os espectadores homens e mulheres, heterossexuais ou não. A cena das duas na cama é muito bem construída filmicamente, uma panorâmica aproximando o espectador à cama, que explora as curvas bem formadas das atrizes e, ao mesmo tempo, com alto grau de realismo, onde a personagem feminilizada (Violet) está "por cima", num papel ativo na transa, uma inversão do papel ativo/masculino e passivo/feminino.

A relação entre elas não é parte central do filme, pois este trata da história de um golpe em uma gangue de mafiosos. Ao longo da narrativa há diversas alusões a dedos e a mãos, seja de forma imagética ou através da fala dos personagens. A ênfase nas mãos femininas em oposição à amputação de dedos masculinos, a forma usada pelos mafiosos de torturar um traidor da gangue.

 

 

Chloe Sevigny e MIchelle Williams, as namoradas do episódio "1972" de Desejo Proibido (If these walls could talk #2)

 

Já no episódio "1972" do filme Desejo Proibido (If these walls could talk #2, Martha Coolidge e Anne Heche, EUA, 2000), as personagens são colocadas de forma diferente, com diversas alusões enfatizando o aspecto masculino da personagem interpretada pela atriz Chloé Sevigny, sendo este o tema central da trama, em que um grupo de feministas lésbicas assume uma posição de preconceito exacerbado em relação a nova amante da amiga, pois esta tem vestes e modos masculinos. "Os relacionamentos butch-femme, tal como eu os vivi, eram declarações eróticas complexas, e não falsas réplicas da heterossexualidade. Eles estavam cheios de uma linguagem profundamente lésbica, feita de posturas, trajes, gestual, amor e autonomia. Nenhuma das mulheres butch com quem eu estive jamais se apresentou a mim como homem: o que elas faziam eram se anunciar como mulheres que estavam dispostas a identificar publicamente a sua paixão por outras mulheres, assumindo uma aparência que simbolizava essa tomada de responsabilidade." (Nestle, 1987, p.100 em Portinari, 1989, p.103)13

Por diversas vezes ao longo do episódio, o casal butch-femme que se formou discute a possível relação entre seus papéis com uma réplica de um casal heterossexual, sobretudo por influência das amigas feministas feminilizadas. A personagem butch deste episódio se coloca como uma mulher que se sente identificada com aquele tipo de roupa e com uma atitude masculinizada, mas que de forma alguma pretende se passar por homem.

 

Rachel Crawford e Pascale Bussières em Quando a Noite Cai (When Night is Falling), de Patricia Rozema.

 

Ao contrário dessa estereotipização do modelo heterossexual para um casal de lésbicas, no filme Quando a noite cai (When night is falling, Patrícia Rozema, Canadá, 1994), as personagens Camille e Petra são extremamente femininas (e mulheres muito atraentes), e cuja questão principal está no desvio da personagem Camille em relação aos valores morais e religiosos da sociedade na qual está inserida. A pouco tempo do seu casamento com um noivo de longa data, e da admissão como Capelã da universidade cristã onde ministra aulas de mitologia, Camille conhece uma artista de circo, por quem depois de relutar acaba se admitindo apaixonada.

 

O filme nos oferece pinceladas sobre a visão da religião em relação à homossexualidade, bem como um diálogo entre Camille e seu noivo sobre o silêncio: Martin (o noivo) depois de ver as duas juntas, insiste que tem coisas que não precisam ser ditas por ela, assim podem ser apenas esquecidas.

 

Este aspecto está intimamente relacionado à história da fala da homossexualidade feminina (que vem sendo mudado a partir do fim do século XX, com publicações e filmes sobre o assunto), que ganhou a voz do silêncio por muito tempo, e assim passa a não existir enquanto discurso, e silencia também o próprio sujeito, sua subjetividade e desejo. "A homossexualidade feminina, como toda sexualidade feminina, não se diz, não possui a sua linguagem. Essa linguagem específica e diferente que exprime a singularidade de um desejo autônomo é também uma linguagem ausente, onde nada circula a não ser o eco sombrio da voz do mestre." (Nobili e Zha, 1979, p. 154 em Portinari, 1989, p. 154)14

 

No episódio 2000 de Desejo Proibido (If these walls could talk #2, Martha Coolidge e Anne Heche, EUA, 2000), um casal interpretado pelas atrizes Ellen Degeneres (lésbica assumida na vida real) e Sharon Stone quer ter um filho, e acaba optando pela inseminação artificial. É um episódio muito bem humorado, que mostra alguns clichês da representação da homossexualidade feminina de forma sutil, mas evidente para um olho mais apurado. Ellen está caracterizada de forma mais masculina em relação a Sharon no visual e na atitude. É Sharon quem vai engravidar, e em uma discussão Ellen se diz chateada por não poder engravidá-la. Nessa mesma conversa Sharon diz que "desde que se apaixonou por ela não quer saber mais de homem em sua cama". Essa fala representa o fato de muitas mulheres terem tido relacionamento com homens (aqui não trato de bissexuais) antes de se descobrirem emocionalmente atraídas por mulheres, talvez por não saber ser isso possível em sua vida, talvez pelo medo de sofrer preconceito social.

Apesar da recusa do homem como objeto de desejo sexual e emocional, elas precisam dele (ou de uma parte dele) biologicamente para que seu filho nasça. A história acontece em 2000, e características do episódio são evidentes em relação à "aceitação" de um casal de mulheres na sociedade, como o fato de elas irem a uma clínica e conseguirem a inseminação artificial sem problemas, tratando com bastante naturalidade a legitimização de um casal de lésbicas. Não se pode afirmar que isso acontece na maioria dos casos, mas é uma forma de evidenciar o interesse e a possibilidade de um casal homossexual constituir normalmente uma família.

Nos quatro filmes por mim escolhidos, há cenas de sexo entre as personagens, e suas representações não seguem nenhum padrão, ou estereotipização. Como qualquer cena de sexo no cinema, é certo que instiga o voyeurismo do espectador, mas sua construção fílmica tem aspecto realista, o que ajuda a colocar o ato sexual num patamar de naturalidade.

 


Algumas Conclusões

"O discurso da homossexualidade feminina pode ser visto ao mesmo tempo como reacionário - se assim entendermos todo discurso que tende para a cristalização e reprodução das formas de significação que se apresentam como verdades atemporais - e revolucionário - se entendermos como tal todo discurso que promove a desestabilização e a inquietação frente aos signos." (Portinari, 1989, p.97). Neste presente ensaio procurei explorar aspectos para uma reflexão sobre a questão do lesbianismo inserido nas relações sociais, e exemplos de como ele é apresentado através da representação por alguns filmes. Com essa pesquisa pude evidenciar a dificuldade existente em colocar questão na ordem da linguagem, fazendo assim com que ela seja efetivamente um enunciado social.

 

Ao mesmo tempo, nos grandes centros como São Paulo ou Rio de Janeiro, encontramos bares15 e regiões onde é evidente a presença de casais de mulheres, que demonstram seu afeto publicamente, bem como mulheres que anunciam sua orientação sexual na mídia, sobretudo no campo das artes. Há também a Parada do Orgulho Gay, e o Festival Mix Brasil de Cinema e Vídeo, organizados por entidades que se formaram para a discussão, informação e luta contra a discriminação dos homossexuais e transsexuais.

 

De um modo nacionalmente mais abrangente, as novelas globais, vez por outra, tentam colocar em sua trama personagens homossexuais, de forma pouco alardeada quando não são caricatos ou quando pendem à bizarrice, e cujo destino depende da audiência da trama novelesca. Em cidades mais afastadas dos grandes centros urbanos, o preconceito é maior e declarado, enfatizando a falta de espaço e diálogo das questões homossexuais; "quanto mais amplo e variado for o acesso do indivíduo a uma variedade de discurso (e de sujeitos) maior será sua mobilidade e sua capacidade de apoderar-se da palavra." (Portinari, 1989, p.104)

As diversidades sexuais sempre existiram e, desde o final do século passado caminham para um reconhecimento da igualdade com o padrão da heterossexualidade das relações sociais, derrubando barreiras impostas por tantos anos pela sociedade. Talvez seja uma visão um tanto quanto otimista, mas levo em consideração que o assunto tem conseguido maior notoriedade através de revistas (especializadas ou não), filmes, discussões televisivas (sobretudo pela MTV) e publicações de livros e trabalhos acadêmicos.

É importante encarar a multiplicidade de aspectos que formam o mundo (não só sexuais), e que só aparecem de fato se forem ditos. A subjetividade de cada um é produzida através da existência de um discurso, e a identidade homossexual é uma trajetória do indivíduo durante sua vida e, por muito tempo, teve que se enquadrar no discurso preestabelecido, hoje tornando-se produtor dele.


Bibliografia


CUNHA, Wilson H. da. Uma poética do desejo : o cinema de Pedro Almodóvar na transição espanhola (dissertação de mestrado apresentada em fevereiro de 1999, ECA/USP)

DE LAURETIS, TERESA. Film and the Visible in How do I Look - queer film an video, editado por Bad Object Choices, Bay Press, Seattle, 1991

MULVEY, Laura. "Prazer visual e cinema narrativo", in Xavier, Ismail (org) A Experiência do cinema, Graal, SP, 1991

 

NAVARRO-SWAIN, Tânia O que é lesbianismo, Brasiliense, SP, 2000

PORTINARI, Denise O discurso da homossexualidade feminina, Brasiliense, SP, 1989


Filmografia


DESEJO PROIBIDO (If these walls could talk #2) - episódios "1972" e "2000", Martha Coolidge e Anne Heche, EUA, 2000

LIGADAS PELO DESEJO (Bound), Larry e Andy Wachowski, EUA, 1999

QUANDO A NOITE CAI (When night is falling), Patricia Rozema, Canadá, 1994

 

MÔNICA PALAZZO é Bacharel em Comunicação Audiovisual pela Universidade Federal de São Carlos e diretora de arte. O texto foi publicado originalmente no site WEZINE (https://http//www.wezen.com.br/wezine/lesbicasnocine.htm)

 

© texto original - 2002 – Monica Palazzo

© 1a. publicação - 2002 – WEZINE

2004 - SOMBRAS ELÉTRICAS