SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 3 – Abril de 2004

VER COM OLHOS LIVRES

MENSAGEM DE ZUZUANGEL@MARTIRES.ORG.BR PARA A FILHA HILDEGARDE

Antonio Paiva Filho

 

Zuzu Angel: além de uma estilista de grande criatividade e bom gosto, uma mulher de coragem. 

E nós jurávamos que a filha fosse igual a ela... Bem, a gente se engana... Fazer o quê?

 

Nem Allan Kardec escapou da informática. Pelo menos se levarmos a sério Joaquim Camarão, coordenador do Centro Espírita Casa de Von Braun. Médium kardecista de grande capacidade e técnico de informática apaixonado por computadores, Camarão acabou juntando um com o outro, ao anunciar a criação de um software especial, que cria contas de e-mail especiais para psicografar mensagens de pessoas mortas (ou segundo a terminologia kardecista, "desencarnadas") via internet.

O único problema deste software é que ele só funciona bem nas mãos de Joaquim Camarão e dos outros médiuns do Centro — o que gera uma grande desconfiança, tanto entre internautas e aficcionados por informática quanto por líderes kardecistas. As razões não são as mesmas, mas o mote é semelhante: onde já se viu misturar religião com tecnologia?

Nós não vamos nos meter nesta briga, digo, debate porque isto não nos interessa. O importante é que, desta fonte mais ou menos duvidosa vem uma mensagem interessante de alguém que precisava estar vivo para dar um puxão de orelha em um membro da prole que deixou aqui na terra.

O alguém, no caso, é Zuleika Angel Jones, conhecida para todo o sempre como Zuzu Angel. Antes de 1971, era apenas uma grande estilista de moda, conhecida internacionalmente e com clientes famosos; depois de 1971, passou a ser, como diria Chico Buarque, "uma mãe da Praça de Maio sozinha"[i]. Ou, como diriam alguns diletos oficiais de órgãos de segurança benevolentes, como o DOI-CODI, uma "chata de galocha". Tudo porque queria apenas saber onde foi parar seu filho, Stuart Angel Jones, desde que foi preso naquele ano. Ou — o que é mais provável — o seu corpo. Em 1976, Zuzu acabaria se juntando ao filho na Vida Eterna, morta num acidente de automóvel de circunstâncias duvidosas (a polícia jura que ela dormiu ao volante) até 1998, quando finalmente se confirmou o que se sabia: o carro da estilista foi abalroado por outro veículo e jogado contra a mureta. Possivelmente, pelos mesmos senhores do DOI-CODI ou outros órgãos de repressão, como o CISA, onde, possivelmente, ele foi morto. Coitados, deviam se sentir tãããão injustiçados pelas denúncias que Zuzu fazia no exterior a respeito do combate à subversão e algumas ninharias, como a tortura (que, como reza certo filósofo (SIC), não é crime hediondo...) — seja diretamente, por dossiês, denúncias e apelos a vários de seus amigos e clientes famosos no exterior (Joan Crawford, Kim Novak, Veruska, Liza Minelli, Jean Shrimpton, Margot Fonteyn, Henry Kissinger, o senador Edward Kennedy etc.), seja com o seu próprio trabalho — coleções de roupas com estampas atacando o regime militar: silhuetas bélicas, pássaros engaiolados e balas de canhão, anjos amordaçados, meninos aprisionados, sol atrás das grades, jipes, quepes. E não foi por falta de aviso, inclusive dela própria: "Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho".

Era de se esperar que o restante da prole aprendesse alguma coisa a respeito de dignidade, honradez e respeito com os exemplos trágicos de mãe e irmão. Infelizmente, alguém não aprendeu nada — ou se aprendeu, esqueceu tudo. O alguém é Hildegarde Angel, filha de Zuzu e irmã de Stuart. Depois de uma figuração em Todas as mulheres do mundo, de Domingos Oliveira[ii], a moça voltou-se para o jornalismo, mantendo uma coluna social por longos anos e vários jornais cariocas — O Globo, JB, O Dia etc. Bem, coluna social é, basicamente, a crônica da vida glamurosa da burguesia — e, dependendo do colunista, não é uma crônica necessariamente fútil ou ausente da realidade brasileira ou submissa a esta mesma burguesia. Só que, de uns tempos para cá, o colunismo social (e, sejamos honestos: a grande imprensa doida para sair do  vermelho) — salvo raras e honrosas exceções — adquiriu um feio hábito: prostituir-se pelos chamados "trocados por fora". Basta que alguém lhe dê algum troco além do salário que o jornal lhe paga como colunista para colocar uma notinha que lhe interesse, e pronto. O fato de que tal notinha seja verdadeira ou falsa passa a ser um mero detalhe. Quem paga pelas notinhas — sejam empresários querendo detonar  concorrentes, sejam governos querendo se promover ou detonar adversários — também. E, se alguém tiver a pachorra de ler atualmente a coluna de Hildezinha (e, convenhamos, estômago; favor tomar sal de frutas após a leitura), saberá de onde vem o grosso do "troco por fora" que a moça recebe atualmente. Oficialmente, se chama Centro Administrativo da Cidade do Rio de Janeiro; os cariocas o conhecem pelo terno apelido de Piranhão — ou porque, quando foi construído, a Vila Mimosa (zona de prostituição pobre) era ali perto, ou porque deveria ser uma singela homenagem (da irreverência tipicamente carioca, é claro) à chamada classe política. Pois ali fica o gabinete de trabalho de sua excelência, o prefeito do Rio de Janeiro.

Pelo menos, desconfia-se que veio dali a notinha publicada por Hildezinha em sua coluna — já em seus últimos dias de permanência em O Globo — de 4 de julho de 2003 (os grifos são meus):

 

(...) "Uma vez uma amiga apareceu arrasada. O noivo estava com um tumor inoperável, e não queria contar pra ninguém, nem pra família. Tiveram que desmarcar o casamento. A moça definhou, mantendo seu terrível segredo. Até que, um dia, uma amiga dela viu uma foto do safado, abraçadinho à noiva nova, no interior do país...

Mantidas as devidas proporções, um renomado cineasta paulista acabou de fazer o mesmo. Ele andou espalhando que estava à morte, com dois tumores no cérebro. Desolados, os amigos tentaram ajudar de todas as maneiras, inclusive financeiramente. De repente: tchan! Era brincadeirinha. Ameaçado de processo pela Riofilme, por ter gasto um financiamento em cositas outras, o cineasta queria criar um clima de constrangimento para não ser processado. Mas será...

 

Dizem inclusive que esse moço foi a causa principal do enfarte sofrido pelo ex-dirigente da empresa, embaixador Carrilho, que empenhou sua palavra em seu favor, e acabou descarrilhando. Não é a primeira que ele apronta: no tempo da Embrafilme pegou uma grana para filmar a biografia de um sambista e até hoje ninguém viu o filme!...

 

A charada é: Quem será o infrator? Dou pista: ele é casado com atriz famosíssima dos anos 60 e foi tido por muito tempo como o enfant-gaté da vanguarda tupiniquim..." (...)

 

Só quem esteve residindo em Marte por um longo tempo não identificou o sujeito oculto da notinha de Hildezinha. Para quem prestou mais atenção, foi claro como água: se referia a Rogério Sganzerla, que acabara de finalizar o que seria o seu último filme, O Signo do Caos. Não que o próprio Sganzerla quisesse assim (e certamente não o queria), mas o tal de Destino acabou determinando as coisas desta forma. Porque, depois que a atriz Helena Ignez, mulher do cineasta, mandou uma carta-resposta indignada, esculhambando a colunista (com razão) e deu entrada na justiça com um processo por difamação e calúnia, Rogério Sganzerla morreria aos 57 anos. Causa mortis: metástase decorrente de... tumor cerebral. Que, afinal, realmente existia. (Ou será que Hildezinha — como ela se autodenomina "carinhosamente" — quis usar o termo "brincadeirinha" como eufemismo para o tumor? Duvidamos e fazemos pouco: seria humor negro demais para o nosso gosto.)

O fato é que, até agora, Hildezinha ainda não se dignou a uma retratação, mesmo na base da errata num canto de página em sua coluna. E as piranhas do Piranhão, por sua vez, salvo algumas possíveis palavras protocolares de luto de alguns de seus lacaios, também não se dignaram a consertar a porca manobra politiqueira. Aliás, é duvidoso que façam isso - ainda que seja para provar que esta cidade "mui leal e heróica" não é governada por desleais e covardes.[iii] [3] Mas Hildezinha tem duas boas razões para fazê-lo.

Primeira razão: textos escritos com, no mínimo, afoiteza — ou de expor o que pensa, ou de receber seu "troco por fora" — acabam queimando demais o filme de seus autores em seu meie profissional e"mesmo em outros — tanto pelo texto em si quanto por suas conseqüências, diretas ou não.

Amir Labaki que o diga. Não que ele tenha deixado de ser um dos mais respeitados críticos de cinema desta Ilha de Vera Cruz, bem como ainda mais respeitado criador e organizador de festival de documentários É Tudo Verdade. O problema é que, toda a vez que acontece um fato deste tipo, sempre o comparam com outro do início de sua carreira: a morte de cineasta Roberto Santos, em 1987, de um enfarte fulminante no aeroporto de Cumbica, logo após a volta à. Festival de Gramado e da fria recepção ao seu último filme Quincas Borba — e a uma crítica arrasadora na Folha de S. Paulo. Autor da crítica: um Amir Labaki jovem, ainda um tanto cagarregrense[iv] [4] e sem muitas papas na língua. Pelo menos, na crítica onde esculhambou Quincas Borba. É claro que criticas arrasadoras não matam cineastas por si só, do contrário a atual residência de boa parte dos cineastas brasileiros seria o cemitério. Mas até hoje muita gente trata Amir Labaki como "o assassino de Roberto Santos" .

Segunda razão: atitudes canalhas deste tipo decepcionam e, ao mesmo tempo, preocupam as pessoas mais próximas — seja deste, seja do outro mundo.

Pelo menos, é o que se depreende da mensagem de Zuzu Angel para a filha Hildegarde, através de zuzuangel@martires.org.br, que passamos a transcrever abaixo.

 

**************************************

 

Hilde, minha filha:

 

Enquanto estive aí embaixo, sempre fiz questão de duas coisas. A primeira: agir com retidão e honestidade. A segunda: fazer com que meus filhos também agissem da mesma forma em sua vida.

No que me diz respeito, isto acabou fazendo com que eu viesse para cá mais cedo. Mas isso não importa: quem tem medo da morte não é lá muito digno da vida.

Dai, meu espanto e decepção com sua "brincadeirinha". Espanto, porque não esperava que você fosse capaz disso. E decepção porque nunca pensei que você fosse cruel assim.

 

Soubemos que, antes de deixar o mundo ai embaixo, Rogério Sganzerla soube de sua notinha. Por isso, esperávamos que ele chegasse aqui em cima soltando fogo pelas ventas. Pelo menos, é o que se pensava, dado o histórico de confrontos em sua carreira (principalmente com Glauber Rocha e o pessoal do Cinema Novo).

Tanto que, no dia de sua chegada, todos os cineastas daqui suspenderam as filmagens de hoje, para ver o que ele iria dizer a respeito.

(céu de cineasta é assim: um lugar onde eles podem continuar a fazer seus filmes, sem se aporrinhar com dinheiro, distribuidores, censura etc. Melhor: eles podem fazer aqui os filmes que não puderam fazer aí embaixo. Alguns são maravilhosos. Pena que não vocês não podem assistir.)

Voltando à vaca fria: todos discutiam qual seria a reação de Sganzerla. A maioria pensava que ele chegaria furioso e exigindo de São Pedro que ele mandasse um raio bem na sua cabeça - coisa que ele não pode fazer, salvo em casos especiais. O Jairo Ferreira, que conheceu Sganzerla e chegou aqui recentemente, tinha certeza disso. Só Humberto Mauro - sábio como poucos (e que também conheceu Sganzerla) - é que disse que ele chegaria aqui calmo e sem ligar para o assunto.

Dito e feito: quando Sganzerla chegou, a primeira pessoa a quem abraçou foi justamente Mauro. Depois ficou falando com os outros cineastas daqui sobre o que eles estavam fazendo. Demorou-se, principalmente, com Orson Welles, que o recebeu com uma blague: "Chegou o meu melhor agente de publicidade in Brazil". Os dois caíram na gargalhada.

O Jairo ficou surpreso com a calma do Sganzerla e não se conteve: perguntou a ele se não iria fazer nada sobre "a canalhice" --isto é, sobre a sua notinha. Pois olha o que Sganzerla respondeu ao Jairo:

- Jairo, o destino de cada pessoa lá embaixo é definido assim: cerca de 50% se define aqui em cima, mas os outros 50% são feitos pela pessoa, por sua própria conta. Assim, se esta tal Hildezinha escolheu este caminho, o problema é dela - ou melhor, a forca onde ela vai se enforcar é ela mesma quem vai fazer. De mais a mais, agora que estou livre de minha casca de carne, nada mais pode me atingir -nem as doenças, nem a raiva alheia. E ainda deixei várias pessoas que gostam de mim lá embaixo indignadas, pê da vida mesmo, o suficiente para guerrear por minha memória e lutar contra a "canalhice" -a começar por Helena. que entrou com processo na justiça. Então por que vou me remoer com um problema que deixei lá embaixo? Por que Vou me entregar ao ódio fundamento, sem perdão?

Depois disso, saiu em direção à ala dos compositores populares, à procura de Noel Rosa, para conversar com ele sobre o longa-metragem que queria fazer sobre ele, e sobre os filmes que fez lá embaixo sobre ele: um curta-metragem (Noel por Noel, 1981) e um média-metragem (Isto é Noel Rosa, 1991) - este último é o tal "filme sobre o sambista", financiado pela Embrafilme, do qual mandaram você acusá-lo de ter pego a grana e não ter feito. E se ninguém viu o filme até hoje, foi porque, depois da penada que o filho do Arnon de Mello (este menino mimado, que quando era moço dava uma de manequim para puxar o saco de dona Yolanda Costa e Silva) assinou em seu curto período em que brincou de presidente da República, não havia cinema que passasse este filme. De onde me pergunto: por que é que nós aqui em cima prestamos mais ate4nção nestas coisas e vocês aí embaixo não?

É isso, filha. O homem que você acusou de forjar o tumor cerebral que ele realmente tinha (e que o mandou pra cá) está tranqüilo aqui entre nós. Já você, aí embaixo, nem tanto. E é isto que eu quero conversar com você.

Eu sei que os tempos aí embaixo são bicudos, todos precisam sobreviver. Também sei que há ocasiões em que as pessoas são obrigadas a fazer coisas que não gostam e a prestar favores. Sei disso por experiência própria, pois passei por dois períodos bicudos em minha vida. O primeiro foi o período em que tive de me firmar como estilista no mundo da moda. O segundo, quando parti em busca de seu irmão Stuart, depois que os gorilas da ditadura o prenderam e sumiram com ele.

Agora, nem as dificuldades nem as obrigações justificam atitudes canalhas como acusar pessoas sem provas - e, pior, em tom de deboche. Pra quê isso? O Millôr Fernandes (que, segundo os registros daqui, ainda vai demorar muito para vir pra cá) escreveu certa vez que "quem se curva aos opressores acaba mostrando o rabo para os oprimidos". E eu acrescento, ainda que de modo um tanto grosseiro: ai do capachildo que estiver com o rabo sujo.

Aliás, eu notei que, antes e depois da "brincadeirinha", saíram diversas notas em sua coluna, exaltando o atual alcaide, sua "coragem" e sua "grande capacidade administrativa", entre outros que tais. Vejo tais notas e fico pensando qual a sua motivação para escrevê-las: ou é uma admiração fanática' pelo alcaide (o que, no fundo, não acredito, pois sei que você sempre foi muito inteligente, salvo engano)... ou é uma admiração fanática pelo dinheiro vindo do erário municipal.

Bem, filha, eu tenho novidades. A fama de "grande capacidade administrativa" do atual alcaide vem de seu primeiro mandato... e de um grupo de técnicos competentes, que realmente elaboraram e executaram as iniciativas de seu governo. Ambos se deram muito bem (aliás, é incrível como economistas e tecnocratas se dão muito em entre si... e muito mal com o resto da humanidade, a qual a vêem como números a ser acrescentados ou -como quase sempre acontece - cortados... mas isto e outra história)... até que se deu a seguinte melódia: ainda que o alcaide, por formação, estivesse próximo da racionalidade dos técnicos, estes perceberam que o tempo, o relativo sucesso e a "mosca azul" do poder o fizeram megalomaníaco. Esta faceta já estava um pouco presente, supostamente por cálculos po1íticos -- os chamados "factóides". Mas agora a sua megalomania subiu a níveis insuportáveis. Os i1ustres técnicos bem que quiseram se livrar de tal personagem -- à frente um deles, Luiz Paulo Conde, sucessor do alcaide na prefeitura -- pois perceberam que, com tal megalomania, o trabalhe que eles fizeram iria por água abaixo. Não conseguiram, pois ainda que megalomaníaco (ou por isso mesmo, o alcaide é um mestre nos factóides (aliás, que grande eufemismo para "golpe sujo" este termo "factóide"...): usou e abusou deles que acabou voltando à prefeitura, e colocando os ilustres técnicos para fora dela. (Hoje, coitados, pagam por seus pecados vagando perdidos pelas bravatas, pela incompetência e pela mosca azul de um casal ,proto-peronista, manipulado por outro incompetente que levou uma cidade vizinha ao rio de Janeiro à falência quando foi prefeito, mas os nomes deles não vem ao caso...) E, tal como temiam, passou a desmontar o que eles fizeram, entrando em acordo com o grupo de um ex-deputado que o eleitorado mandou para casa. na última eleição geral (o qual fica difícil de levar a sério: onde já se viu um político com o apelido de "Bundinha"?). Pior: adotando a política deste grupo, baseada mais nas aparências --ou melhor, no marketing b0mbástico e pontual -- e menos em atitudes concretas.

Até ai, nada que se possa fazer: cada político escolhe o caminho que bem lhe aprouver. Mas a história ensina que, quem escolhe o caminho das aparências e dos "factóides" pode subir o mais alto que puder, e rápido, mas descobrirá que a base de seu trono ou poleiro está sobre areia movediça --e vai descobrir isso do modo mais duro, isto é, na hora de seu tombo, seja qual for a altura.

Voltando aos cineastas que estão comigo aqui em cima, eles também estão preocupados com as estripulias que seu alcaide está fazendo no Cinema carioca - o factóide da Cinemateca Carioca, as lambanças na Riofilme, à revelia do embaixador que a presidia, e que premiaram com um enfarte; (não o tumor de Sganzerla, que, como você já viu, era tudo verdade),etc. Mas não estão furiosos como o pessoal ai embaixo, muito pelo contrario: eles já passaram por coisas parecidas quando estiveram por aí. Mais do que isso, eles também acham que o alcaide e sua curriola vão levar este tombo logo, logo. Pelo menos, ficaram assim depois que Abraham Lincoln saiu lá da ala dos estadistas para fazer uma visitinha na dos cineastas. (Aliás é engraçado como os estadistas que vieram pra cá antes do final do século XIX adoram visitar os cineastas. Mas eu entendo: como partiram antes do Cinema, ficam curiosos com esta máquina esquisita de fazer mover imagens. Curiosos... e preocupados com o uso manipulatório das imagens em movimento – algo impensável em seu(s) tempo(s). Ainda assim, Lincoln foi taxativo quanto a um de seus mais caros conceitos: "Com ou sem imagens em movimento, ninguém pode enganar todos o tempo todo".

O que me preocupa é que, quando alguém no poder cai (seja lá de que altura for), arrasta todos os que seguem junto. Espacialmente os seguidores que são mais realistas do que próprio rei... ou alcaide.

Só este "realismo-maior-do-que-o-rei" pode explicar sua subserviência a este tipo. Mas, por mais força que eu faça, não me explica nem a notinha irresponsável, mas também o deboche que ela foi inventada – um deboche que, para mim, é impensável num membro de nossa família, principalmente depois de tudo o que passamos por causa de seu irmão Stuart. Ou, pelo visto, era.

Sabe, filha, o seu irmão Stuart me contou, em detalhes como foi que morreu nas mãos dos gorilas da ditadura militar. A esta altura, os guerrilheiros que sobreviveram e testemunharam seu assassinato podem lhe contar melhor do que eu. (Se estas testemunhas mentem ou não, isto é problema dos ternumista[v]s militantes e juramentados. O brigadeiro que comandava este circo de horrores está lá no inferno, incomunicável por ordem do próprio Diabo, que ficou horrorizado com as suas estripulias...) Basta lhe dizer que o detalhe mais terrível de sua história (e de outros guerrilheiros mortos que conheci por aqui) não foi nenhum choque elétrico ou um pau-de-arara qualquer... mas o deboche com que os torturadores os tratavam enquanto faziam o seu... digamos assim... "serviço" - deboche das mais variadas formas, de insinuações a respeito de sua sexualidade ao bordel imaginário onde eu e outras mães estaríamos trabalhando, só para citar as piadas mais comuns e sórdidas.

Pois eu cruzo estas "piadas" com o deboche de sua "brincadeirinha" e me pergunto: será você realmente minha filha? Ou melhor dizendo: será que, depois que vim para cá, você se aproximou, moral e afetivamente, destes gorilas e dos que os sustentaram para defender seus privilégios e esqueceu tudo o que lhe ensinei e o exemplo que lhe deixei?

Francamente, não sei a resposta. E lhe confesso: tenho medo de procurá-la, pois ela pode, ao invés de me tirar as preocupações, me magoar profundamente. Seria melhor se, confirmando ou desmentindo a esta pergunta, você me respondesse.

 

Um beijo e desejos para que tenha juízo.

-

De sua mãe,

ZUZU ANGEL.

 


 

 

ANTONIO PAIVA FILHO é editor de SOMBRAS ELÉTRICAS   

 

© 2004 – Antonio Paiva Filho

© 2004 – SOMBRAS ELÉTRICAS



[i] De depoimento do compositor a ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos. Rio de Janeiro, Relume-Dumará (Coleção Perfis do Rio), 1999.

[ii] Confira no vídeo (Globo Filmes): ela é uma das moças que dançam na festa-orgia de Julio Fuentes (Paulo Gracindo), onde também está Paulo Martins (Jardel Filho).

[iii] Para quem fugiu da aula de História: D. Pedro I concedeu por meio de Carta Imperial o título de "Mui leal e heróica cidade" ao Rio de Janeiro, por volta de 1823.

[iv] Segundo introdução de WOLFF, Fausto. ABC do Fausto Wolff (Porto Alegre, L&PM, 1988), "Natural de Caga-Regra, barrão natal de todos 315 jovens críticos pós-modernos da Folha de S. Paulo". Por tabela, qualificam-se assim todos os metidos a dominar determinado(s) assunto(s) e achar que, por isso, são mais do que os outros. Os arrogantes, para ser mais exato.

[v] Membro do Ternuma, sigla de Terrorismo Nunca Mais, grupo de extrema-direita formado por militares reformados – alguns deles, ex-integrantes de órgãos de repressão da ditadura militar.