SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 4 – Outubro de 2004

VER COM OLHOS LIVRES

A TV NÃO É O PROBLEMA

José Roberto Marinho

 

 

Parece que o projeto Ancinav continua dando panos para a manga. E, evidentemente, a grande mídia continua tendo suas ressalvas.

Eu disse ressalvas? Bondade minha. Continua a ser contra toda e qualquer forma de regulação mesmo - isto é, continua achando ótima esta zona em que a mídia está.

Pelo menos, é o que se depreende do artigo de João Roberto Marinho, vice-presidente das Organizações Globo, para a Folha de S. Paulo de 2 de setembro de 2004.

Um pouco de paciência, que o texto é longo, e o dr. João fala mais do que papagaio na areia quente...

 

Há momentos em que todos os que detêm uma posição de liderança devem assumir responsabilidades. E de tal modo que ninguém confunda serenidade com falta de firmeza e disposição de ouvir com ausência de convicções consolidadas. O momento é de reafirmar valores que têm levado a televisão brasileira -a parte mais visível da indústria do audiovisual - a trilhar uma história de sucesso.

Em 1969, Roberto Marinho inaugurava a televisão em rede no Brasil. Foi um passo decisivo, pois integrou um país de contornos continentais. Até ali, programas de televisão, capítulos de novelas, imagens de notícias tinham de viajar de avião, com muitas escalas, para que os diversos pontos do Brasil, com muito atraso, pudessem conhecê-los.

A visão de empresário e o perfeito entendimento que Roberto Marinho tinha de nosso país fizeram com que a construção dessa rede logo fosse calcada nas emissoras locais, num criativo sistema de afiliação. Assim, ao mesmo tempo em que todos se beneficiavam de ganhos de escala, as diferenças regionais, de que os brasileiros se orgulham, estariam respeitadas. Seria a união na diversidade.

Foi no jornalismo que isso ficou mais evidente. A montagem de estruturas jornalísticas próprias em todos os Estados seria um ônus que empresa nenhuma poderia suportar. E um ônus perverso se a estrutura fosse de mão única, voltada apenas para um telejornal nacional. Optou-se, então, por incentivar as afiliadas a montarem estruturas jornalísticas, com critérios técnicos bem definidos, que abastecessem telejornais locais com reportagens de qualidade e, simultaneamente, fornecessem material para telejornais nacionais. Graças a isso, todos os Estados têm hoje um robusto noticiário local, que soma duas horas diárias de transmissão ao vivo. E é assim também que, nacionalmente, os brasileiros podem saber, em tempo real, o que acontece em qualquer lugar do Brasil. Não há nenhum jornal impresso, nenhuma cadeia de rádio ou site de internet que cumpra essa missão.

Na teledramaturgia, o respeito pelo que é brasileiro e, dentro dessa perspectiva, pelo que é regional manteve-se o mesmo. A TV Globo tem um índice de produção e exibição de produtos nacionais que só se encontra nas TVs americanas: 95% do que é exibido em horário nobre é feito por brasileiros e para brasileiros, sem os chamados enlatados que até 20 anos atrás inundavam nossas telas. E que, ainda hoje, inundam telas francesas, canadenses, coreanas e australianas. Em nossas novelas, a primeira missão que nos impusemos foi acabar com tramas escritas fora de nosso país e botar no ar escritores brasileiros de qualidade.

A outra missão foi retratar todos os Brasis. Embora com cenas de estúdio filmadas no Rio de Janeiro, nossas novelas sempre abordaram temas regionais, de todas as partes, com todos os sotaques, com cenas externas gravadas in loco. Bahia, Rio Grande do Sul, Minas, Paraná, Ceará, Espírito Santo, Santa Catarina, Goiás, São Paulo, Pernambuco, Maranhão etc., apenas para citar alguns Estados, foram cenários de novelas e minisséries. Essa foi a razão de nosso enorme sucesso. Para a identidade de um povo, o fundamental é o que se vê na tela, não a forma de produção. Mas se esta é centralizada, a razão é óbvia: é somente assim que o ganho de escala permite custos que nos façam competitivos diante dos adversários estrangeiros, que, registre-se, também produzem seus enlatados centralizadamente nos grandes estúdios e os vendem para o mundo inteiro.

Esse modelo de produção conseguiu duas vitórias: é graças a ele que o Brasil pode ver os Brasis e é graças a ele que o mundo pode ver o Brasil. Hoje, nossos programas são exportados para 130 países dos cinco continentes, o que gera benefícios tangíveis, como dólares, e, mais importantes, intangíveis, como a construção externa de uma imagem positiva de país. Os americanos sabem a importância disso. Somente em 2003, a Globo exportou mais de 24 mil horas de programação. Neste momento, 33 programas são vistos diariamente em 53 países. Por tudo isso, é apenas com constrangimento que reagimos diante daqueles que dizem que o Brasil deve deixar de ser só consumidor para se transformar em exportador de audiovisual.

O mesmo modelo permitiu a consolidação dos mercados locais e nacional. O varejo de Pernambuco, por exemplo, encontra em Pernambuco uma emissora local, de grande audiência, com programação de qualidade, na qual pode anunciar os seus produtos. Da mesma forma, as grandes marcas, quando necessário, encontram uma rede nacional, cobrindo todo o nosso território, para se comunicarem com seus consumidores.

E, no entanto, esse modelo de produção, vitorioso sob todos os aspectos, sofre sua mais grave ameaça. Mesmo após as modificações anunciadas no último dia 30, o projeto que cria a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) continua sendo extremamente danoso. A ameaça da volta da censura, que era real, dissipou-se com a supressão de diversos artigos, o que só merece aplausos. Mas, ao afastarem o perigo de censura, os formuladores da Ancinav têm deixado ainda mais claro que pretendem autoritariamente intervir naquilo que está dando certo, seja em cinema, seja em televisão. A intenção, dizem, é proteger a indústria nacional, mas o resultado será o oposto.

Equivocadamente, esses formuladores acreditam que o nosso modelo de produção é único no mundo, quando, na verdade, ele é o único que pode tornar nossa indústria competitiva. Sem ele, é preciso que se diga, está ameaçada a novela das oito (e as demais também), um divertimento que, por sua qualidade, o brasileiro escolheu para seu fim de noite. Também está ameaçado o telejornalismo de qualidade. Pode ser que o grupo de funcionários que ‘pensou’ a Ancinav não goste da novela das oito, mas 70% dos brasileiros gostam. Querer, por decreto, mudar o gosto do povo é de um autoritarismo que comporta muitos ‘ismos’, à direita e à esquerda do espectro político. Um ‘Jornal Nacional’, cujo esteio são os telejornais locais, talvez não seja conveniente para governantes, mas inviabilizá-lo com expedientes regulatórios é o mesmo que censurá-lo. Sairá perdendo o Brasil.

Na verdade, a Ancinav fala em editar normas e em regular, intervindo drasticamente no setor, mas não especifica regras. Num único ponto, menciona uma lei a ser enviada ao Congresso. Em todos os outros, afirma que regulará uma ampla gama de questões com base em enunciados vagos. Só é detalhista em relação a taxas e punições. Com a Anatel foi diferente: criada pela Lei Geral de Telecomunicações, ela não pode legislar, mas apenas fazer cumprir as regras previstas naquela lei. A Ancinav, não: como está, seria um cheque em branco.

Esse não é o único viés autoritário do projeto. O governo, de fato, alterou alguns artigos na tentativa de torná-lo menos intervencionista: eliminou a sobreposição de funções com o Cade e a SDE e desistiu de se atribuir a missão de ‘planejar’ e ‘administrar’ as atividades do setor. Mas a intromissão na vida das empresas continua inaceitável: manteve-se o poder de requisitar delas, a qualquer título, todos os documentos com informações técnicas, operacionais, econômico-financeiras e contábeis, sob pena de puni-las com sanções que chegam à suspensão temporária. Com que propósito? Num ambiente extremamente competitivo, onde se disputam artistas, direitos de transmissão, novas tecnologias e formatos inovadores de programas, essa cláusula permite ao governo -qualquer governo-, de posse de todas as informações, privilegiar uns em detrimento de outros.

Por último, a manutenção do capítulo sobre taxação é incompatível com um governo que se comprometeu publicamente a reduzir a carga tributária asfixiante: cria-se uma taxa que tornará ainda mais frágil o setor que pretendeu proteger e estimular, tirando dele algo como R$ 400 milhões. Em rádio e televisão, a taxa adicional será de 4% sobre as receitas, um número que supera a margem de lucro da maior parte das emissoras. No cinema, a taxação provocará danos irreparáveis. Em sete anos, o número de salas de cinema pulou de 1.200 para 1.910, sinal de acentuada recuperação. Os filmes nacionais, que ocupavam 8% das salas em 2001, hoje ocupam 22%.

O projeto da Ancinav ignora esses avanços e pretende interferir no gosto popular, punindo com multa de R$ 600 mil lançamentos com mais de 200 cópias. A suposição é que, assim, o público preferirá um filme nacional ao ‘Homem-Aranha’. Isso não é regulação, é censura com expedientes econômicos. O público verá tanto mais cinema brasileiro quando mais filmes brasileiros de qualidade forem produzidos. Consegue-se isso com fomento, não proibindo o que é estrangeiro. A taxação de cópias fará com que os filmes passem primeiro nos centros urbanos mais ricos, o que determinará o fechamento de salas no interior, que, não podendo se beneficiar do marketing de lançamento, voltarão a ser antieconômicas. A taxação no preço dos ingressos, prevista no projeto, será também uma medida perversa: quanto mais caro o ingresso, menor será o público, sendo os mais pobres os primeiros a serem excluídos.

O Brasil tem muitos problemas. A televisão brasileira certamente não é um deles. Na defesa dos outros setores do audiovisual, pode ser parte da solução. Desde que nem ela nem o cinema sejam sufocados.

 

 

JOÃO ROBERTO MARINHO, 50, jornalista, é vice-presidente das Organizações Globo.

 

© 2004 – João Roberto Marinho

© 2004 – Empresa Folha da Manhã S.A.

© 2004 – SOMBRAS ELÉTRICAS

 

Claro que tal argumentação não ficou sem resposta. Dê uma olhada.