SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 4 – Janeiro-Fevereiro-Março de 2005

LONG-SHOT - LE GRAND THÉÂTRE LUMIÈRE

O CINEMA E AS METAS DE BRECHT: Uma análise de Terra em transe e Os inconfidentes[1] 

Maria Gutierrez

 

 

José Marinho, Glauce Rocha, Jardel Filho e José Lewgoy em cena de Terra em transe (1967), de Glauber Rocha; ao lado, cena de Os inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade.

 

 

I. INTRODUÇÃO

 

Diz-se do cinema que é uma arte que gera recepção pouco reflexiva, na medida em que direciona a visão do espectador, tornando-o um ser passivo que, afundado na poltrona de uma sala escura, acompanha apaixonadamente uma história construída sob pontos de vista calculada e previamente escolhidos. A pintura e a escultura, diferentemente, possibilitam ao espectador escolher seu caminho de observação. No teatro, muitos autores têm procurado maneiras de estimular uma participação ativa do espectador: entre estes autores está Brecht, com o teatro épico, que teve inúmeras ressonâncias pelo mundo, não só na área do teatro. Assim, este texto consiste na análise de dois filmes - Os inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade e Terra em transe, de Glauber Rocha -, tendo em mente os objetivos a serem atingidos segundo a teoria brechtiana.

O cinema e a televisão são dominados por filmes e programas de caráter alienante, de puro entretenimento, de histórias catárticas que, contando com a empatia, conduzem o espectador através de um mundo que nada tem a ver com os seus próprios problemas, com a sua realidade na qual é doloroso pensar. Daí a importância de um cinema que, na contra-mão, leve as pessoas a debruçar-se sobre a própria realidade, que lhes cause um estranhamento revelando que tudo o que vemos e vivemos não é normal, não deve ser normal, mas é o produto de escolhas que se traduzem em atos, em condições históricas e sociais, e que as coisas poderiam ser diferentes; ao contrário da cinematografia dominante, em que, como nas tragédias, tudo acontece conforme o destino, imutável. Assim, é de suma importância pensar nos recursos que levam o espectador à reflexão, entender como e por que funcionam - à luz de Brecht, que já deu grandes passos neste sentido.    

 

 

Partindo das ressalvas...

           

 

Introduzo este texto comentando uma ressalva à sua própria premissa. Muitos são os que já falaram sobre a influência de Brecht no cinema; poucos, porém se aprofundaram, efetuando análises das obras a que se referiam. Mas, desde já intuo que minha conclusão vá um pouco no sentido daquela a que chegou Ilma Esperança Assis Santana em artigo publicado no livro Brecht no Brasil: não se pode sair dizendo que tal ou qual artista é brechtiano. Afinal, o que é ser “brechtiano”?

 

 

Para Brecht “a fotografia não é o reflexo da realidade, mas sim a realidade do reflexo” (...). Dizer que distanciamento é uma forma e que a presença ou ausência dessa forma marca uma obra como “brechtiana” ou “não brechtiana” seria uma incompreensão ou uma redução de Brecht. Distanciamento em Brecht é uma forma de domínio da realidade em oposição à noção crua de realismo ou à idéia de reflexo da realidade. ( ... ) A noção de distanciamento não é exclusiva de Brecht , mas se encontra em toda arte moderna que procura romper com a ilusão naturalista. A singularidade de Brecht é ter assumido a idéia de que através dessa solução estética se produz consciência social adequada à transformação da sociedade. Brecht acreditava estar no limiar de uma nova era...[2]

 

Realmente, muitos autores que se ocuparam de Brecht, apontam-no como um estruturador, sistematizador de algo que já aparecera na arte. Anatol Rosenfeld, em O teatro épico, passando por vários autores da teoria literária, mostra que sempre houve traços épicos na dramática, desde a tragédia grega, passando pelo teatro medieval, pelo barroco, pela dramaturgia burguesa do século XIX até chegar a Brecht, que seria o único, seguindo Piscator, a fazer um uso consciente dos traços épicos. Rosenfeld está em consonância com Teoria do drama moderno, em que Peter Szondi mostra Brecht como uma solução de uma crise na arte dramática que se alongava desde o final do século XIX . Robert Stam, de sua parte, aponta, em O espetáculo interrompido, que toda a arte tem sido alimentada por uma tensão constante entre ilusionismo e reflexividade. Menciona, por exemplo, de Miguel de Cervantes a Machado de Assis na literatura, ou a oposição entre a ilusão da perspectiva renascentista e a distorção de El Greco nas artes plásticas. Assim que o distanciamento não é de fato exclusividade de Brecht, como ele mesmo afirma na sua análise das técnicas de distanciamento do teatro oriental ou quando menciona os panoramas das feiras medievais; mas ele é o primeiro a sistematizar o uso dos efeitos de distanciamento com um fim político, o que já vinha sendo tentado na prática por seu mestre Piscator.

 

Portanto, não se trata de enquadrar artistas como “brechtiano” ou “não brechtiano”. Trata-se de relacionar artistas de técnicas diversas, mas que, em seus diferentes meios, buscaram causar no espectador uma atitude reflexiva. Neste intento, parti da teoria de Brecht do teatro épico, buscando a possibilidade e a forma de uma correspondência sua no cinema.

 

Quanto à relação entre Brecht e cinema, essa discussão sempre acaba passando, não sem polêmica, por uma comparação entre o teatrólogo alemão e o mestre do cinema russo Eisenstein, visto que este também se preocupava com a participação de seu espectador na construção do significado. Glauber Rocha aponta-os como grandes influências do Cinema Novo, embora o mesmo Glauber diga que o único brechtiano é Brecht. E, como ressalta Ilma Esperança Santana, Iná Camargo Costa e tantos outros, o método do teatrólogo pode ser usado até na publicidade - intuindo isto foi que tive o cuidado de dar ao ensaio o título de “O cinema e as metas de Brecht” - as metas, e não o método.

 

E é exatamente isto que mais aproxima Glauber Rocha, Eisenstein e Brecht: o objetivo de sua arte. Antes uma questão de ética do que de estética, me arrisco a dizer, de postura frente à realidade. São artistas que construíram suas obras baseados num método dialético, e que têm a linguagem como um instrumento de conhecimento, de apreensão da realidade. Brecht, Eisenstein e Glauber são artistas que aliam à prática uma densa reflexão teórica, seja ela mais ou menos rigorosa. E foram, cada qual a sua maneira, anti-naturalistas, em oposição à estética do entorpecimento, com uma visão comparável do que seja realismo - “o cinema é a realidade do reflexo, e não o reflexo da realidade”, disse Godard citando Brecht, e a visão de realismo destes artistas vai neste sentido: trata-se sempre da impressão causada pela realidade sobre o autor.

 

Tanto Brecht como Eisenstein falam da necessidade de se fazer a obra com um objetivo, querendo dizer algo, sem isenção. E ambos apostaram no épico para tanto. Além disso, há várias idéias que ambos desenvolvem: o pricípio da interrupção, o conceito de montagem, a necessidade de aproximar a arte da ciência. Para ambos o ambiente é fundamental. Eisenstein conta, em A forma do filme, que passou do teatro para o cinema porque este tinha mais possibilidade de representar o homem em seu ambiente: queria fazer uma peça ambientada numa fábrica, e percebeu que o que devia fazer era cinema. O mesmo motivo que levou Eisenstein a transcender o teatro em direção ao cinema, levou Brecht à forma épica, pois esta melhor representaria o condicionamento do homem pelo ambiente. Enfim, embora haja o que os distancie, são muitas identidades entre Brecht e Eisenstein, visto que ambos partem de algumas mesmas referências: o teatro oriental, Meyerhold, Marx. Martin Walsh, em The brechtian aspect of radical cinema , chega mesmo a trazer Brecht como um desenvolvimento do pensamento da vanguarda soviética. Youssef Ishaghpour, por seu lado, em “D`une nouvelle estétique théâtrale e de ses implications au cinéma”, os opõe pelo fato de que os filmes de Eisenstein são catárticos: Brecht foi um crítico, Eisenstein, um  propagandista.

 

Glauber Rocha, em Revolução do Cinema Novo, repete incansavelmente que Eisenstein, Brecht e o neo-realismo são as influências fundamentais do Cinema Novo. São movimentos ou artistas de grande comprometimento com a realidade, com o seu momento histórico; e tanto Eisenstein, como Brecht, o neo-realismo e o próprio Cinema Novo são frutos de momentos históricos de grande agitação: a revolução russa, o entre-guerras na Alemanha, o pós-guerra na Itália, a ditadura militar no Brasil. Ishaghpour escreve mesmo que Brecht foi uma politização da estética em oposição à estetização da política que se processou em seu país.

 

Glauber Rocha, operando uma síntese entre neo-realismo e Eisenstein, reaproxima-se de Brecht, pregando o cinema épico-didático.

 

A censura econômica e política do Kynema, arma perigosa, reduz Brecht à velha prática teatral mas limitado a este marginalismo ele revolucionou a estrutura Heuztóryka e preparou para o cinema o modelo nuclear de montagem dialética cuja possibilidade técnica foi demonstrada por Eisenstein.[3]

 

Glauber, como Brecht, tinha uma grande preocupação com o meio de produção, a “engrenagem”. Tanto é que teve grande militância na política cinematográfica, insistindo na questão da ocupação do mercado brasileiro pela indústria norte-americana, e nas formas de libertação, lutando sem dissociar política de estética. Assim, por exemplo, foi ardoroso defensor da Difilm e da Embrafilme; estava engajado na idéia do “autor como produtor”.

 

“Trata-se de ganhar os intelectuais para a classe trabalhadora, fazendo com que se conscientizem quanto à identidade entre as sua preocupações espirituais e as suas condições de produtores”. ( Ramón Fernández ). ( ... ) a tendência política, por mais revolucionária que pareça, exerce funções contra-revolucionárias enquanto o escritor experimentar a sua solidariedade com o proletariado só conforme a sua consciência, mas não como produtor, como alguém que produz.[4]

 

O fato de os músicos, os escritores e os críticos não estarem esclarecidos no que toca à sua situação acarreta conseqüências tremendas a que, até agora, se tem concedido importância mínima. Pois, na convicção de estarem de posse de uma engrenagem, que na realidade os possui, defendem algo sobre que já não têm qualquer controle, que já não é ( como crêem ainda ) um meio a serviço dos produtores, mas se tornou, de fato, um meio contra os produtores.[5]

Segundo Ishaghpour, Brecht partilhava com Walter Benjamin a ilusão sobre a técnica e a massificação como caminho para o socialismo. Ainda conforme este autor, era uma época em que a idéia da produtividade estava em alta, a produção pela produção fazia do meio o mais importante. Esta reflexão sobre os meios faz da representação seu próprio objeto. É aí que entra a necessidade de transformação do público, de um público especialista. Brecht propunha a transformação do público para que o público transformasse o teatro.

 

A tarefa consistiria, portanto, numa reformulação funcional do concerto e que teria que preencher dois requisitos: primeiro, eliminar a contraposição entre executantes e ouvintes, e, segundo, a oposição entre técnica e conteúdo.[6]

 

Outros cineastas muito mencionados quando se fala da relação entre Brecht e cinema são Jean-Marie Straub e Jean-Luc Godard. Em ambos é notória a influência da teoria do teatro épico. Walsh analisa na obra de Straub vários recursos que relaciona ao distanciamento brechtiano: os atores que recitam seus textos, os cortes arbitrários, a câmera não subordinada, que segue lógica própria, a autonomia entre imagem e som efetuam uma desconstrução das velhas formas cinematográficas. Ishaghpour enxerga em Straub um destruidor da imagem mas, por seu rigor, considera-o puritano. Straub seria o agacement de Godard, que por sua vez representou a chegada da crise de representação no cinema. Para Ishaghpour a TV teve um papel importante nesta crise, da mesma forma que a invenção do cinema afetou o teatro e a fotografia afetou a pintura, livrando-os do naturalismo. A película conserva uma materialidade, enquanto a TV é simulacro; com a TV somos interlocutores interpelados que imaginam participar de um diálogo. As alterações trazidas pela TV teriam levado a esta crise de representação que levou à retomada de Brecht pela geração de Godard. No entanto, Ishaghpour vê em Godard um romântico, que não trabalha a dialética, mas a justaposição, o jogo de palavras, a manipulação. Glauber também via em Godard um romântico, julgava sua estética destrutiva, burguesa, criticando sua falta de proposta. Já em Brecht, não desaparece a coisa mesma, seu assunto nunca se restringe à representação.

 

 

Porque a classe burguesa lhe deu, junto com a estrutura de sua formação educacional, um meio de produção que o torna solidário com ela, e ainda mais ela com ele, devido ao privilégio que é a educação. Por isso é completamente correto que noutro contexto Aragon explique: “o intelectual revolucionário aparece inicialmente, e sobretudo, como  um traidor de sua classe de origem”. No caso do escritor, essa traição consiste num comportamento que, de fornecedor do aparelho de produção, ele se faça um engenheiro que vê sua tarefa em adequar esse aparelho às metas da revolução proletária.  Essa é uma atuação intermediativa, mas ela libera os intelectuais daquela tarefa puramente destrutiva a que, com muitos camaradas, Maublanc acredita ter de restringir-se.[7]

 

No entanto, posteriormente o mesmo Godard trabalhou pela libertação dos meios de produção, fazendo criações coletivas no grupo Dziga Vertov. Hoje, com o cinema digital a questão se torna ainda mais preemente.

 

E o meio técnico é justamente crucial neste tipo de postura. Ishaghpour elenca diferenças entre o cinema e o teatro, que tornariam impertinente a transposição da teoria do teatro épico para o cinema. No teatro o ator, seu gesto, sua palavra produzem o espaço teatral, enquanto no cinema o ator é um elemento de um espaço dado, um mundo de objetos; o cinema é épico por definição, diferente do mundo de ação do teatro. Citando Schiller: “a ação dramática coloca-se diante de mim, eu me coloco em torno da ação épica” ( assim atua a câmera de Terra em Transe ). Continuando com Ishaghpour, se a montagem foi trazida ao teatro com o teatro épico, ela é natural do cinema, cujo elemento base é quase atômico, o plano. No cinema há com a câmera um sujeito de narração diferente do ator que nós vemos. No teatro existe o encontro efetivo com o público, e os ensaios, que são muito importantes no trabalho de Brecht; o cinema está nos lugares, e vive a possibilidade - ou a contingência - do documental. Talvez seja no cinema que possa realizar-se o drama documentário de Piscator.

 

 

Isso é teatro épico, que significa que o acontecimento real, profano, não mais será velado aos olhos do público.[8]

 

II. ANÁLISE

Uma aproximação...

Tanto Joaquim Pedro como Glauber Rocha são artistas do Cinema Novo, movimento que teve Brecht como referência. Aliás, era o momento em que o pensamento de Brecht chegava não só ao cinema, mas a toda arte brasileira, como ao teatro, por exemplo, com Arena, Oficina, etc.

Nota-se uma tendência reflexiva, anti-ilusionista, em toda obra dos dois cineastas. Em Guerra Conjugal, por exemplo, um filme episódico, composto a partir de vários contos de Dalton Trevisan, não há uma história para seguirmos, mas algumas personagens, em diversas situações, em que são desvelados comportamentos. É o “gestus social”, para usar a expressão de Brecht, que define essas personagens, que desfilam numa crônica de costumes.

 

Em Macunaíma há algo de fábula, com elementos extra-humanos, feitiços, magias, etc, e algo de épico na forma como nos são apresentadas as “estações” da vida do protagonista, um anti-herói. Joaquim Pedro falava que ao fazer do anti herói a figura principal de um filme estava de fato mostrando como deveria ser o herói, o que lembra o princípio da vontade e contra-vontade de Brecht, em que numa ação está contido o seu oposto. Macunaíma traz um modo bem brasileiro de distanciamento: tropicalista, antropofágico, apresentando o hibridismo que já estava em Mário de Andrade. Para Glauber Rocha o tropicalismo é o surrealismo latino americano, e o surrealismo é trazido por Stam em O espetáculo interrompido, como uma das formas de distanciamento, mencionando o exemplo de Buñuel.

 

Pablo Neruda já falava de um surrealismo concreto por ser este aspecto surreal um fato dentro da realidade da América Latina e do Terceiro Mundo.

Existe um surrealismo francês e outro que não o é. Entre Breton e Salvador Dali tem um abismo. E o surrealismo é coisa latina. Lautremont era uruguaio e o primeiro surrealista foi Cervantes. Neruda fala de surrealismo concreto. É o discurso das relações entre fome e misticismo. O nosso não é o surrealismo do sonho, mas da realidade. Buñuel é um surrealista e seus filmes mexicanos são os primeiros filmes do tropicalismo e da antropofagia.

A função histórica do surrealismo no mundo hispano-americano oprimido foi aquela de ser instrumento para o pensamento em direção de uma liberação anárquica, a única possível. Hoje utilizada dialeticamente, em sentido profundamente político, em direção de esclarecimento e da agitação.[9]

 

Robert Stam menciona três tipos de anti-ilusionismo: lúdico, agressivo, didático, e fala da carreira de Godard como um desenvolvimento desses três tipos. Em Joaquim Pedro também se vê um transitar entre estes tipos de anti-ilusionismo. Guerra Conjugal é bastante agressivo, enquanto Macunaíma é extremamente lúdico.

O distanciamento em Glauber Rocha também vai assumindo diversas formas. O artista se implica cada vez mais diretamente nas obras, narrando algumas delas com seu inconfundível sotaque, e aparecendo mesmo em Claro. Como Godard em Histoire(s) du cinema: a História existe somente em relação a sua própria história, a sua memória. Se nos primeiros filmes havia personagens-testemunha, ou personagens narradores, que mediavam nossa relação com o universo abordado ( Paulo em Terra em Transe, Antônio das Mortes em Deus e o diabo, o professor em Dragão da maldade ) agora o próprio Glauber entra em cena.

 

 

Análise da história de si e de si na história como momento de auto-conhecimento indispensável para seguir em frente, para esclarecer as próprias reais necessidades revolucionárias.[10]

 

Deus e o diabo na terra do sol é indubitavelmente épico; como Macunaíma, apresenta estações da vida da personagem, e baseia-se na cultura popular, como a literatura de cordel, apresentando também um hibridismo de culturas, misturando música de repente com Villa-Lobos. Além disso há a memorável interpretação de Othon Bastos, que transita entre duas personagens e tem a morte coreografada. Em O Dragão da maldade contra o santo guerreiro opera-se uma transformação antropofágica do western, e a brincadeira com os gêneros é algo proposto por Brecht como forma de desvelamento da linguagem. Stam fala que a paródia, a desconstrução de um gênero serve como descontrução da sociedade que o criou.

Todos os filmes de Glauber são profundamente históricos. Em Cabezas Cortadas vários tempos e acontecimentos históricos estão misturados, pois, de certa forma, é tudo a mesma coisa: as ditaduras que assolaram a América Latina nos anos 60 e a colonização espanhola, que é combatida por guerrilheiros à Che Guevara.

 

Claro é uma Torre de Babel: fala-se várias línguas, o que nos relembra a corporalidade da linguagem. Vietnã, hippies, africanos estão ali. Em Claro se aplica muito o conceito de História imediata de Jean Lacoutute que Jean-Claude Bernardet usa para falar de Terra em transe. Aqui Glauber registra um momento, uma geração, suas referências. Segundo Brecht, a atitude assumida pela encenação deve ser a de um cronista de costumes ou de um historiador. Brecht diz que se deve transformar o ato de mostrar num ato artístico – assim é a belíssima cena em que Glauber conduz a câmera por um bairro da periferia romana em Claro. O teatro medieval, em que muitos apontam recursos de distanciamento assimilados por Brecht, também mistura vários períodos e espaços ao mesmo tempo.

Glauber Rocha passa de uma abordagem mais didática, em Deus e o Diabo a uma agressiva em Terra em transe e Câncer, e chega ao absurdo, quase surrealista em Claro e Cabezas Cortadas. Em ambos, há muito uso de longos e autônomos planos seqüências, o que faz lembrar a lentidão, a possibilidade de abandono aos nossos pensamentos que vemos em Straub.

 O uso autônomo do som é muito importante na quebra do naturalismo, muito usado para se obter efeitos de distanciamento. Godard, por exemplo, é um autor que jamais deixa o trabalho com o som passar despercebido. Isso porque na escrita tradicional o som funciona muito para dar espessura à imagem, de forma submissa. ( Ismail Xavier no prefácio a Práxis do cinema critica Noel Burch por estabeler todos os procedimentos do cinema revolucionário a partir de e em oposição ao cinema clássico – e Brecht também não cria seu teatro em oposição ao drama aristotélico e ao naturalismo? Não é dialeticamente, afinal, que se desenvolve a arte? ).

Todos estes artistas nos trazem a necessidade de ver a obra de novo, já conhecendo o fim, dado que nelas nunca o que interessa é o desfecho, mas a reflexão contida em cada parte. Os dois filmes que analiso aqui trouxeram-me ainda uma dificuldade de aproximação por eu não ser daquela geração, de tão históricos que eles são.

 

...Finalmente, os filmes

 

Os Inconfidentes

           

 

É contraditório analisar esse tipo de cinema linearmente, mas começo assim para facilitar meu trabalho, passando por todo o filme na tentativa de não deixar escapar nada.

Trata-se de um filme sobre a Incofidência Mineira realizado durante a Ditadura, quando se estimulou a produção de filmes históricos. Mas sobre qual período histórico será esse filme?

 

O tema não é, porém, a Inconfidência Mineira, acontecimento histórico não ocorrido e portanto anti-cinematográfico por natureza, como disse Eduardo Escorel em artigo, mas o comportamento das personagens expresso através de suas falas.

 

Há um grande caráter literário no filme, visto que não há ação e tudo nos é dado por falas que são extraídas dos Autos da Devassa e do Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles. As notas escritas por Brecht sobre a Ópera dos três vinténs, também chamadas “Um teatro de feição literária”, falam da literalização da dramaturgia como recurso para o distanciamento. Esses poemas são visivelmente recitados pelos atores. Brecht também sugeria aos seus atores que dessem as falas como citação.

Além disso, a narrativa não se prende à linearidade.

 

A tendência de tudo submeter a uma idéia, compelir o espectador a dinamismo linear, em que não pode voltar-se para esquerda ou direita, para cima ou para baixo, deve ser rejeitada. Também na arte dramática há que introduzir notas de rodapé e consultas de confronto.[11]

 

Trata-se de uma história conhecida, o espectador já conhece o seu final, então fica livre para refletir.

O filme nos traz testemunhos, os diferentes pontos de vista dos participantes da Inconfidência. Um dos textos mais importantes de Brecht é aquele em que apresenta o exemplo da cena de rua, em que um sujeito narra um acidente. Neste caso de testemunho que serve para obtenção de um julgamento é importante o ponto de vista; esta questão do ponto de vista também está presente em Eisenstein, que decompunha a cena em várias perspectivas, e no cubismo, que levou à pintura a mesma crise da representação que levou Brecht ao teatro épico.

O figurino de Os inconfidentes é algo carnavalesco, atestando a não pretensão de uma reconstrução fiel do período histórico, e servindo de comentário irônico às próprias personagens.

O filme começa com excertos do fim: a carne que será cortada no final, o suicído de Torres, a morte de Alvarenga, o exílio de Gonzaga. Entram os letreiros com imagens de Ouro Preto.

A primeira cena é na casa de Alvarenga. A sua esposa, que defende com ardor a independência, maltrata o negro que ensina piano a sua filha, o que já revela a personagem em suas contradições.

 

 

O teatro épico interessa-se pelo comportamento dos homens uns para com os outros, sobretudo quando é um comportamento significativo ( típico ) histórico-socialmente. Dá relevo a todas as cenas em que os homens se comportam de tal forma que as leis sociais a que estão sujeitos surjam em toda a sua evidência.[12]

 

Há uma montagem paralela de cenas em que Cláudio Manoel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga recitam, e vamos à casa de Cláudio. Lá Gonzaga acorda Cláudio. Uma negra se levanta nua da cama, na frente de Gonzaga, com uma naturalidade deconcertante.

Gonzaga o acordou para uma reunião, que ocorre durante farto café da manhã. Nas cenas as pessoas estão sempre contando coisas, e nunca fazendo-as. Tudo é narrado, daí o  caráter bastante épico do filme. Aqui, Alvarenga conta de uma reunião em que esteve.

Uma cena na rua nos apresenta a Tiradentes, que discursa inflamado.

Logo passamos à traição de Silvério, que tudo delata ao governador da província. Silvério entra na banheira com o governador. Há nesta cena algo de absurdo, que causa um desconfortável estranhamento.

Passamos a uma cena de reunião dos inconfidentes, na qual já desconfiam e discutem a traição de Silvério. O comandante é pela primeira vez filmado de uma forma que se repetirá sempre com a sua personagem. Trata-se de um enquadramento algo grandioso – ou talvez ridículo? – um plongée em ângulo diagonal. Haverá a intenção de uma distinção entre comandante, filmado sempre desta maneira, e as outras personagens, filmadas geralmente de ângulos frontais? Estaria-se isolando essa personagem, justo representante dos militares?

Gonzaga vai falar com o governador, para assuntar e ver se descobre a traição. Os dois são tomados por um plano frontal ( o filme todo é coalhado de planos assim, gritantemente frontais, em que as coisas estão obviamente compostas para a câmera ).

Há uma cena em que Tiradentes, em seu caminho para o Rio, encontra Silvério e  passamos a uma cena de Alvarenga com sua mulher, na qual este já revela a decisão de trair os inconfidentes. Nesta cena há um diálogo importante. Alvarenga diz: “quais são os tortos, quais os honrados? As mentiras viram lenda. Não é sempre que a pureza faz celebridade.” Passa a descrever com minúcias a tortura, e então: “direi tudo quanto me ordenarem”. A cena termina em um quadro bem posado. Neste diálogo é narrada uma situação bem conhecida da época do filme: tortura, denúncias. “Quais são os tortos, quais são os honrados?” – e hoje não é Genoíno quem está no poder?

Começam as cenas de prisão. O primeiro é Tiradentes, que apanha. Silvério está na sombra, e quando vai falar entra na luz. Assim a entrada do ator em cena fica evidente, ele “mostra que está a mostrar algo”, como diz Brecht. ( se estivesse no teatro, um foco de luz se acenderia sobre ele ). Não é a única vez que esse recurso de entrar e sair da luz é utilizado. Outro recurso semelhante é o de cortar para uma personagem falar. Fica evidente o corte, feito para realçar determinada fala.

O coronel é interrogado. O inquisidor vai tirando pedaços de sua veste, começando pela indumentária militar.

            O Padre é interrogado, a câmera capta a cena frontalmente. “...para se libertar de alguma opressão... O que evidentemente não é o caso do Brasil, não é?”, diz o padre dando uma olhada cúmplice para a câmera.

 

            Gonzaga recita na prisão. Vamos para o interrogatório de Cláudio Manoel da Costa, um caso interessante. Cláudio se dirige à câmera. Lá estaria posicionado o inquisidor. O espectador é o inquisidor: cabe a nós julgar os inconfidentes.

            São interrogados ainda Gonzaga e Alvarenga. A câmera acompanha estes eventos placidamente, sem envolvimento emocional, muito diferente da câmera de Terra em transe que, embora se movimente com liberdade, está impregnada da agitação, da angústia do filme.

            Cláudio recita só, bem como Gonzaga ( são eles e Alvarenga os autores dos Autos, e juntamente com Tiradentes as figuras centrais do filme ). Cláudio prepara o cinto. Alvarenga recita. Cláudio prepara a forca.

 

Aí entram cenas oníricas / idílicas de Gonzaga, ao som de um bolero de Augustin Lara no portunhol de João Gilberto. Por que essas cenas estranhas são sempre de Gonzaga? Ele representa o poeta, o artista? É por isto ridicularizado? Por que esse bolero? Insinua semelhança do caso brasileiro com outros da América Latina? Talvez uma separação para outra etapa do filme que se iniciará agora? Ou auto-ironia? Joaquim Pedro é ele próprio um artista mineiro, e apesar de ser um artista da imagem, é também um artista muito calcado na palavra. De qualquer jeito, a música provoca um grande estranhamento, interrompendo o fluxo que vinha até então.

Pois neste momento há uma transição importante. Voltamos ao interrogatório de Tiradentes, e este menciona uma conversa sua com Maciel. A partir daí, vemos Tiradentes e Maciel encenarem este diálogo que tiveram, mas a partir do ponto de vista de quando já estão presos. Esta cena é rememorada. Brecht fala de contar apenas o que é importante segundo a memória, o ator atua já sabendo o desfecho. “Eu voltei para Minas e procurei o comandante”, diz Tiradentes.

 

O ator representa como se essa pessoa tivesse vivido integralmente a época em que se insere, e, agora esteja a exprimir – de lembrança, partindo da sua experência dos acontecimentos ulteriores – o que, de entre suas experiências, tem validade neste momento. Só o que vem a ser posteriormente interessante é válido em cada momento.[13]

Neste filme o ator nunca está totalmente metamorfoseado em seu personagem, está sempre em atitude dúplice – de narrador e agente da cena. Curiosamente, foi-me difícil escrever esta análise com os nomes das personagens: sempre me vinham, antes, os nomes dos atores: Pereio, Torres, etc.

Há uma cena com o comandante, este está à frente de Tiradentes. Corte para cena do comandante com Alvarenga, o comandante agora está ao fundo. Assim evidencia-se o corte e a composição das cenas. Alvarenga fala com a câmera / espectador / inquisidor enquanto o comandante caminha pela sombra. Este fala quando entra na luz.

Há uma reunião de todos os personagens, que estão claramente alinhados; a câmera vai percorrendo a fila de personagens, revelando as trocas de olhares entre eles. Discutem sobre a indústria nacional - assunto tão em voga na época do filme. “O povo, ainda que o açoitassem, aceitaria qualquer governo sem reagir”. O comandante faz mise en scène para a câmera, virando-se à frente dela e levantando as mãos. Sempre comentários maledicentes interrompem as falas um dos outros, num desvelamento contínuo da hipocrisia de todos, e desta vez o Padre e Alvarenga comentam: “É o que temos que evitar no futuro, que tudo fique nas mãos de um só homem, principalmente de um militar”.

 

Silvério diz, num interrogatório: “não há levante sem cabeça fora”. “Cabecinha fora?”, prosseguem eles na reunião. E neste momento começa uma seqüência bastante divertida: cada um começa a encenar sua parte no levante. Planejam alegremente, congratulam-se. Curiosamente, há uma cena muito semelhante em Terra em transe, na qual Sara, Paulo e Vieira planejam alegremente a tomada do poder. Os dois filmes, afinal, tratam de “revolucionários” que nunca passam das palavras.

Em clara oposição àquele momento de confraternização, entra uma cena na prisão, em que num ambiente sujo todos acusam Tiradentes, e sons dissonantes nos atordoam. É uma gritaria, uma confusão, bem oposta à organização da cena anterior, em que todos estavam dispostos em semi-círculo.

Há um corte abrupto no som e entra ninguém menos que a rainha. Aqui, como no resto do filme, não tem a menor importância a verossimilhança, claro está que a rainha não viria pessoalmente a uma prisão proferir uma sentença. ( Gilda Mello e Souza critica Joaquim Pedro por ter ridicularizado a figura de Gonzaga, que, segundo ela, manteve uma atitude digna na história, passando anos preso e não delatando ninguém. Mas aqui a crítica demonstra uma grande incompreensão da proposta, visto que o filme deixa bem claro que não deve nenhuma fidelidade à História, mas à estória que quer contar ).

 

Continuando, novamente estão todos dispostos de forma organizada, em semi-círculo. Apenas Tiradentes está apartado, preso num canto. Aqui, é gritante a contraposição da dignidade de Tiradentes ao ouvir sua sentença, à reação histérica dos outros, que se curvam à rainha por tê-los poupado da morte. Brecht diz, no Pequeno Organon para o teatro, que uma personagem sempre se define em função da outra, como o tirano existe porque há a vítima. Assim que aqui a dignidade de Tiradentes é revelada pela indignidade dos outros e vice-versa.

Gonzaga parte para o exílio. Este fato é representado de forma minimalista: apenas o ator e o mar balouçante ao fundo bastam para significar sua partida.

Tiradentes despede-se do escravo, beijando-lhe os pés.

Procede-se então uma dilatação do tempo antes da morte de Tiradentes, que faz lembrar o princípio da interrupção que em O encouraçado Potenkin dilata as cenas da lona e da espera pela esquadra. Assim, antes da morte de Tiradentes, cenas de Gonzaga no exílio e Cláudio encontrado morto se interpõem.

O algoz é negro e pendura-se sobre o cadáver de Tiradentes. A Aquarela do Brasil entra dolorida sobre esta imagem, e o contra-plano nos revela jovens atuais aplaudindo o enforcamento. Temos aqui o mesmo confronto de tempos de Cabezas cortadas. Aqui, por fim, encontram-se os momentos históricos dos quais trata o filme.

Então o documentário oficial com imagens de marcha militar em comemoração a independência entra com ironia cortante. Há uma montagem paralela da carne esquartejada e do documentário, e o filme se encerra seco e contido, ao contrário de Terra em transe.

 

 

Terra em transe

           

 

É com extrema cautela que adentro no terreno de uma análise de Terra em transe. Em meu estudo, deparei-me com algumas análises que, na tentativa de conter esse touro indomável, acabavam por reduzir essa obra viva a um cadáver dissecado, dando respostas aos problemas, à angústia mesmo que causa, como se fosse a uma equação matemática.

Por medo da simplificação que pudesse fazer, da complexidade de meu objeto, e de enfrentá-lo sozinha quando tantos autores já se ocuparam dele, recorri à ajuda de Robert Stam, autor de duas análises de Terra em Transe de extrema minúcia e rigor, que evitam simplificações.

Neste filme, como em Os incofidentes, os fatos que desembocam na morte do herói já aconteceram. O público está livre para atentar ao discurso, sem se preocupar com o desfecho.

Uma estrutura espelhada rege o filme. Há cenas e espaços que se  correspondem. Assim, por exemplo, os dois apartamentos de Paulo, em Eldorado e Alecrim onde acontecem a cena na escada com Sara e a cena na escada com Sílvia. Na primeira, eles conversam e descem as escadas, na segunda eles sobem mudos em direção ao quarto, e as cenas refletem bem a relação que Paulo estabele com cada uma das mulheres. Há dois encontros de Vieira com o povo, resultando os dois na morte de um representante do povo: primeiro a morte de Felício, que resulta na volta de Paulo a Eldorado, e depois a morte do homem do povo, que acaba com a morte do próprio Paulo. É Sara quem vai buscar Paulo para a luta política nas duas vezes: no jornal, quando leva fotos de crianças miseráveis para Paulo, e eles concluem que precisam de um líder político, e na sua casa, quando ela e os sindicalistas convencem Paulo a usar a máquina de propaganda de Fuentes contra Diaz. Esta estrutura espelhada faz-se também, portanto, episódica.

 

 

Renúncia a composições “acidentais”, que “simulem a vida”, “arbitrárias”; o palco não reflete a desorganização “natural” das coisas.[13][14]

 

A organização do espaço é uma questão muito discutida quanto a Terra em transe. Trata-se de um espaço que narra. As personagens são representadas por seus respectivos espaços, e cada uma está quase sempre em seu próprio espaço. Seguindo com as correspondências, temos os ambientes de Vieira e Diaz. A casa de Vieira é rústica, parece a de um coronel de latifúndio, simples como seu discurso; Diaz vive isolado num palácio cheio de desníveis, linhas, escadas, colunas, um espaço exagerado, retórico como Diaz. O povo está sempre em espaços livres, abertos. A postura da câmera frente a arquitetura dos barracos, bastante simples, contrapõe-se ao tratamento cuidadoso dado à arquitetura do poder.

 

No entanto, em muitas cenas o espectador é deixado desorientado, sem referência espacial. Não há os tradicionais establishing shots, como no cinema clássico. Brecht propõe escassas indicações do local de ação, o indispensável, apenas o que caracterize socialmente o espaço, que seja significativo e não uma imitação fiel do espaço, como pretendiam ser os cenários naturalistas.

Em Terra em transe, os personagens são, como muitos autores já disseram, figuras políticas, estão ali em sua função social, exatamente como no teatro proposto por Brecht - com exceção de Paulo e possivelmente também de Sara. A personagem de Paulo é talvez tão complexa como o filme – ou talvez fosse melhor dizer o contrário, o filme é que é tão complexo como Paulo. Em sua análise da cena “Encontro de um líder com o povo”, Robert Stam e Maria Rosa Magalhães falam em Paulo como um demiurgo, um magister ludi. Realmente, é através dele, a partir de sua agonia, que nos é dada toda a história. A narração épico-lírica pontua todo o filme. Paulo narra a partir de sua agonia, com um distanciamento que pode nos lembrar o de Brás Cubas. Anatol Rosenfeld, em seu percurso pela dramaturgia até o teatro épico de Brecht, menciona peças que trazem o palco como espaço interno, como são os dramas de estação de Strindberg.

 

Já as projeções cênicas do passado são essencialmente monológicas e por isso de caráter lírico-épico ( lírico, por serem expressão de estados íntimos; épico por se distenderem através do tempo; ademais, o lírico, na estrutura da peça teatral, tem sempre cunho retardante, épico ).[15]

 

Um princípio importante que Brecht propunha para a interpretação dos atores no teatro épico era o de “vontade e contra-vontade”, ou o “não, antes, pelo contrário”. Brecht dizia que cada gesto de uma personagem devia conter o seu oposto, quer dizer, aquilo que ela fez devia conter o que não fez, a fim de sugerir que tal ato foi fruto de uma decisão, de uma escolha, e poderia ser outro, não sendo algo imutável, definido pelo destino. E algo que fica muito marcado em Terra em transe são as escolhas de Paulo.

A confusão de Paulo se reflete no resto do filme. Há uma profusão de estímulos, o filme lembra uma ópera. Os atores dançam diante da câmera como a câmera dança em volta deles, com liberdade, numa bela coreografia, em movimentos sem fundamento diegético, que não se deixam passar despercebidos. 

 

Há uma profusão de gêneros, o que Robert Stam chamaria de guerre des rhétoriques. Na seqüência do encontro de um líder com o povo, por exemplo, a câmera parece captar os acontecimentos de forma documental no estilo do cinema direto, ao mesmo tempo que há momentos de cinema de montagem. Brecht propunha que os títulos das seqüências tivessem o estilo com que ela deveria ser representada. Representar num estilo conhecido seria mais uma forma de distanciamento. Assim, por exemplo, o título poderia ter o estilo de uma notícia de jornal, de uma crônica, etc. A mistura dos diferentes gêneros põe em evidência a linguagem, a construção do discurso.

 

No primeiro encontro de um líder com o povo uma música de trombone de caráter cômico contradiz a cena, ironiza-a. Mais além, a música faz novamente contraponto à imagem: “a praça é do povo, como o céu é do condor” é cantada em tom melancólico sobre imagem do pátio vazio, o mesmo pátio que seria palco do encontro do líder com o povo. É  a cena em que Vieira decide pela repressão policial: a praça não é do povo.

Logo no início do filme há a intervenção de um poema escrito na tela, de Mario Faustino, outra maneira de deixar clara a obra enquanto construção, enquanto tecido de signos. As cenas da agonia de Paulo no areal permeiam e interrompem todo o filme. A primeira seqüência é uma daquelas em que o espectador fica desorientado. Os cortes são abruptos, as falas sobrepostas.

No primeiro encontro de Paulo com Vieira, um encontro festivo em que se unem em torno de um plano político, Vieira se apresenta, bem a maneira das personagens de Brecht: “sou um homem do povo...”. Neste momento uma música realça a fala, como em outros momentos o corte o faz. ( É o caso do primeiro encontro de Paulo e Sara, em que fica realçada a decisão: “precisamos de um líder político” ). Noutro momento é Fuentes quem se apresenta, enumerando as coisas de que é dono – é isto que o caracteriza.

A briga entre Paulo e Diaz é pura encenação, totalmente teatralizada. São tapas falsos, coreografia, numa recusa ao espetáculo da violência. O que importa é a representação da mesma, já que trata-se de uma briga simbólica, mais fruto do delírio de Paulo, o rompimento final com seu padre ascético.

A conversa entre Diaz e Fuentes é aquela que qualquer um apontaria como tipicamente brechtiana. Nela ocorre a quebra da quarta parede. Diaz olha para a câmera e fala com o público: “e você, qual é a sua classe?”.

 

A dramática não aristotélica não está interessada na produção deste coletivismo e, ao contrário, divide seu público.[16]

 

No encontro do líder com o povo é também quebrada a quarta parede. Paulo mostra o sindicalista e diz: “estão vendo o que é o povo?”. Quando a personagem de Flávio Migliacio intervém, entra dizendo: “com a licença dos doutores...”. Sim, os doutores somos nós, o público burguês.

Robert Stam e Maria Rosa A. Magalhães têm uma brilhante análise desta seqüência cujo subtítulo é “uma desconstrução do populismo”. Nesta análise, Stam e Maria Rosa mostram que Glauber faz uma desconstrução do populismo na política através de uma desconstrução do populismo estético ( algo sobre o que Glauber fala muito em Revolução do cinema novo, o populismo estético, em que se adota uma linguagem fácil a fim de obter uma comunicação com o grande público, subestimando-o ).

 

Ou seja, ela conseguiu fazer até mesmo da miséria um objeto de prazer, ao captá-la de um modo aperfeiçoado e de acordo com a moda.[17]

 

“É preciso romper agora, antes que surja na porta de um cinema uma frase mais ou menos assim: Hoje em cinemascope e totalscope colorido, o magnífico espetáculo de nossa miséria”.[18]

 

 Há dois confrontos entre povo e poder, os dois resultando na morte de um membro do povo. No segundo encontro de Vieira com o povo há quebra da continuidade sonora, com cortes abruptos no som, entradas e saídas de músicas diferentes, como samba e música clássica, ruídos não diegéticos, em contradição com a imagem. Uma descontinuidade espacial desorienta o espectador, embora haja unidade de lugar, o pátio do palácio de Vieira, em que estão todos presos como num palco teatral. A câmera baila em torno dos atores, e planos muito breves se opõem a planos longos. Paulo é reponsável pela cena porque é narrador, seu monólogo gera espaço de reflexão no interior da ação.

Sara diz a Paulo que a poesia e a política são demais para um só homem. Terra em transe, grotesco e sublime, prova que não.

 

III. CONCLUSÃO

           

 

Assim observamos, com a análise dos recursos que levam o espectador a uma atitude distanciada em Os inconfidentes e Terra em transe, a construção de uma nova estética, que resiste à absorção pela engrenagem. Brecht lutou contra o teatro massificado, Glauber Rocha contra a dominação do cinema norte-americano. Hoje vive-se num labirinto inextrincável, numa conjuntura difícil e incoerente, provisória e perigosa, em que, segundo Ishaghpour, é problemática a prática brechtiana de distanciamento fundada na crença da racionalidade da História. No entanto, em uma geração como a minha, sem apego, sem passado e sem amanhã, é importante resgatar a história para construir o futuro. Hoje há questões como o cinema digital, que oferece a possibilidade de difusão da linguagem audiovisual, e a TV, que cada vez mais impera, e que mais do que nunca é teatralização da vida. Agora não se vende senão imagens. Daí a utilidade de se pensar estéticas alternativas, que se oponham à dominante. Num tempo em que de fato se vende a nossa miséria, em que se faz passeios turísticos pelas favelas, o estudo de linguagens que se oponham se faz necessário e não uma discussão bizantina.

 

Em 1964 João Goulart planejava com alguns militares esquerdistas fechar o congresso. Os americanos ficaram sabendo do plano e sugeriram a outros militares que dessem eles o golpe. Não foi necessário mais que um telefonema. O ministro da guerra avisou Goulart e este prontamente se retirou. Os militares provavelmente não dariam mais que um telefonema, mas como isto bastou...

 

            Podemos observar tudo isto em Terra em transe. Vieira é um fraco, um líder populista que não está disposto a resistir, e sai assim que informado por seu ministro da guerra. Qualquer semelhança com a Inconfidência, é mera coincidência... Rebeldes que nunca passam dos planos, que não estão dispostos a entrar em ação. O plano chega aos ouvidos da metrópole, que não tem muito trabalho em dispersar os inconfidentes. Os planos são gerados com alegria, fechados a quatro paredes. O povo não está na praça. As palavras não fazem revoluções.

 

 

Até 1964, abril, queda de Goulart, a maioria dos intelectuais brasileiros acreditava na “revolução pela palavra”.

A vanguarda política latino-americana é sempre desencadeada por intelectuais e aqui, com muita freqüência, os poemas precedem os fuzis.[19]

 

São dois filmes que colocam em crise a participação do intelectual no movimento revolucionário. Filmes que não geram tanto respostas, mas perguntas. E deixam questões como o papel do intelectual no movimento revolucionário, a implicação pessoal do artista, a triste necessidade de heróis: “infeliz o povo que precisa de herói”, ecoa a frase de Galileu Galilei.

Glauber abandonou o didatismo de Deus e o diabo, a crença de que sua arte pode mudar pela descrença de Terra em transe. O filme põe em cheque a utilidade da arte, das palavras. Grita-nos a impotência da palavra. No entanto, em sua linguagem, em sua estética que é ética, propõe algo. E, se a arte já não puder ser uma forma de combate, será sempre uma forma de resistência.

 

IV. BIBLIOGRAFIA / FILMOGRAFIA

 

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BERNARDET, Jean-Claude e. “Cinema e Inconfidência Mineira”; “História imediata”. In: Cinema e história do Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 1988. pp 19-35, 62-69.

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Reflexões de um cineasta. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.

ESCOREL, Eduardo. “Os inconfidentes”. In: Catálogo para Mostra do Ministério da Cultura, fevereiro de 2000.

ISHAGPOUR, Youssef.  “D`une nouvelle esthétique théâtrale et de ses implications au cinéma” . In: Obliques, Lyon, oct-dez, 1979. pp 163-185.

JAMESON, Fredric. O método Brecht. Petrópolis: Vozes, 1999. 240p.

MACHADO Jr, Rubens L.R. “Godard – Brecht: do pé atrás ao distanciamento”. In: Sinopse, São Paulo, v.1, nº1, jun 1999. pp26-27.

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MELLO E SOUZA, Gilda. “Terra em Transe”, “Os inconfidentes”. In: Exercícios de leitura. São Paulo: Livraria duas cidades, 1980. pp 187-193, 195-210.

ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981. 472p.

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A falecida. Leon Hirszman.

Alexandre Nevski. Serguei Eisenstein.

Cabezas cortadas. Glauber Rocha.

Carmen. Jean-Luc Godard.

Claro. Glauber Rocha.

Cronicamente inviável. Sérgio Bianchi.

O demônio das onze horas. Jean-Luc Godard.

Der leon have sept cabeças. Glauber Rocha.

Deus e o Diabo na terra do sol. Glauber Rocha.

O desprezo. Jean-Luc Godard.

Dragão da maldade contra o santo guerreiro. Glauber Rocha.

Em caso de perigo e grande risco, o meio termo leva à morte Alexander Kluge.

O encouraçado Potenkim. Serguei Eisenstein.

Garrincha, alegria do povo. Joaquim Pedro de Andrade.

Gaviões e passarinhos. Pier Paolo Pasolini.

Gente da Sicília. Danièlle Huillet e Jean-Marie Straub.

A greve. Serguei Eisenstein.

Guerra conjugal. Joaquim Pedro de Andrade.

Histoire(s) du cinema. Jean-Luc Godard.

Os inconfidentes. Joaquim Pedro de Andrade.

Ivan, o terrível. Serguei Eisenstein.

Khule Wampe.

Macunaíma. Joaquim Pedro de Andrade.

Made in USA. Jean-Luc Godard.

Matou a família e foi ao cinema. Bressane.

Memórias do subdesenvolvimento. Tomás Gutierrez Allea.

Meu nome é Bertolt Brecht.

A ópera do malandro. Ruy Guerra.

Operários, camponeses. Danièlle Huillet e Jean-Marie Straub.

Outubro. Serguei Eisenstein.

O pequeno soldado. Jean-Luc Godard.

O Sr. Puntilla e seu criado Matti. Alberto Cavalcanti.

Sur. Fernando Solanas.

Tangos, o exílio de Gardel. Fernando Solanas.

Tempos modernos. Charles Chaplin.

Terra em transe. Glauber Rocha.

Viva México! Serguei Eisenstein.

A volta do filho pródigo. Danièlle Huillet e Jean-Marie Straub.

 


 

MARIA GUTIERREZ é aluna do Curso Superior do Audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

 

© 2004 – Maria Gutierrez

© 2004 – SOMBRAS ELÉTRICAS




[1] Ensaio elaborado a partir de pesquisa financiada pela Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

[2] SANTANA, Ilma Esperança Assis. In: BADER, Wolfgang ( org. ). Brecht no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987. 284p.

 
 

[3] ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981. 472p.

 
 

[4] BENJAMIN, Walter. “O autor como produtor”. In: Sociologia. São Paulo: Editora Ática, 1985. pp 187-201.

 
 

[5] BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Lisboa: Potugália Editora, ?. 353p.

 
 

[6] BENJAMIN, Walter. op. cit.

 
 

[7] Idem.

 
 

[8] BRECHT, Bertolt. op. cit.

 
 

[9] ROCHA, Glauber. op. cit.

 
 

[10] Idem.

 
 

[11] BRECHT, Bertolt. op cit.

 
 

[12] Idem.

 
 

[13] Idem.

 
 

[14] Idem.

 
 

[15] ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1985. 176p

 
 

[16] BRECHT, Bertolt. op cit.

 
 

[17] Idem.

 
 

[18] ROCHA, Glauber. op cit.

 
 

[19] Idem.