SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 2 - Março de 2004

VER COM OLHOS LIVRES

TELEVISÃO: ANOTAÇÕES PARA DEBATE (I)

Newton Cannito

 

A programação da TV brasileira hoje: uma televisão de cachorro. (Arte da Quântica Design - Fábio Aubin e Felipe Mancini para a capa da revista Sinopse 6)

 

Antes que os incautos acabem digerindo o almoço da Globo com a classe cinematográfica como uma grande passo na aproximação entre mídia e produção independente – esquecendo que "a classe cinematográfica" presente ao almoço foram apenas uns 40 cineastas, a maioria consagrados e veteranos, e alguns destes buscando influência em nova área para compensar a que estão perdendo na antiga (ou será outra a motivação de Cacá Diegues e Barretão em comparecer a este almoço?) e que a Globo já começa as conversas entre ela e "o Cinema brasileiro" (ou a produção independente, tanto faz o termo) dizendo que não vai abrir para a produção independente –, sugiro a leitura de um artigo de Newton Cannito, publicado em Sinopse nº 6 (janeiro de 2001) sobre este assunto. É um pouquinho longo (por isso vai dividido em dois links diferentes), mas vale a pena a leitura. Ao menos, para ninguém falar depois que "a cigana lhes enganou"... (APF)

 

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O texto que segue abaixo não é propriamente um artigo, são apenas anotações para incitar um debate.

Na primeira parte, denominada "Argumentos para democratas", respondo alguns absurdos ditos sobre televisão que estão se sedimentando como "idéias feitas", repetidas à exaustão pela mídia e pelo senso comum e mostro como essas "idéias" se contrapõem a valores básicos de uma sociedade democrática.

Na segunda parte, denominada "Argumentos para Capitalistas", mostro que, mesmo comercialmente (ou capitalisticamente") falando, as empresas de televisão brasileira são um desastre. Além disso, convencido que uma das tarefas mais importantes de hoje é orientar os leitores no meio do imenso emaranhado de textos e livros, faço no meio do texto em quadros ao lado resenhas de alguns dos melhores artigos publicados recentemente sobre televisão.

Mais do que dar uma única opinião fechada, esse artigo dá um painel de alguns debates, polêmicas e propostas. Mais do que concluir alguma coisa, o objetivo é cutucar em várias questões e incitar o debate.

 

ARGUMENTOS PARA DEMOCRATAS

 

Frase feita número 1: "O empresário de televisão é um empresário como qualquer outro e deve pautar sua programação pelo lucro."

Errado. A empresa de televisão não é uma empresa como outra qualquer. Mesmo quando é comercial a empresa de televisão é uma concessão de direito público. Afinal de contas, a empresa pode ser dona do equipamento e garantir a produção de conteúdo mas não é (nem pode ser!) dona do limitado espectro eletromagnético que garante a transmissão de sua mensagem até a casa do espectador. Esse espectro é do conjunto dos cidadãos, é uma propriedade pública cedida temporariamente a determinados empresários.

 

Frase feita número 2: "Qualquer intervenção do Estado na programação é censura e é portanto antidemocrática."

Errado. Como a televisão é uma concessão de direito público, é função do Estado garantir que as empresas concessionárias atendam o interesse dos cidadãos. Isso não significa que o Estado deva exercer a censura nos moldes do regime militar. Mas também não significa que ele não possa fazer nada, que deva ficar olhando os empresários de televisão prejudicarem o interesse dos cidadãos ou desrespeitar a Constituição.

Em "A Lei da Selva" (no livro A TV aos 50), Vera Nusdeo Lopes mostra como é exercido o controle social sobre a comunicação em países realmente democráticos. Nos EUA todo o setor de comunicações é regulamentado pela FCC, Federal Comunications Comission, criada em 1934. A Alemanha também impõe o respeito ao pluralismo ideológico aos operadores assegurando o chamado direito de antena, ou seja, uma cota do horário de transmissão proporcional a dimensão e a importância dos diversos grupos políticos (sejam eles agrupamentos ideológicos, sindicatos, etc.). No Brasil é necessária a urgente criação de um órgão regulador que realize o controle social da comunicação.

Vera Nusdeo Lopes afirma ainda: "Há maneiras de instituir este controle de forma que ele seja o mais democrático possível, por meio, por exemplo, de um órgão de fiscalização formado por diversos setores da sociedade e representantes de todos os poderes, impedindo que um único segmento determine toda a política de comunicação de massa no país."

Na verdade, essa atitude da mídia hegemônica de acusar de censura qualquer tentativa de controle social é, na verdade, uma estratégia que seus proprietários vem utilizando para coibir e discriminar o direito democrático que os cidadãos têm de questionar juridicamente sua programação. O objetivo é manter toda a programação nas mãos das elites dominantes sem nenhum controle público. Trata-se de uma nova forma de censura, a censura privada.

"A forma como foi desenvolvido o setor de comunicações de massa no país, majoritariamente por grandes organizações empresariais do setor privado, com toda a lógica a ele inerente, conduz ao problema da censura exercida em nível privado, ou seja, aquela levada a efeito pelos próprios detentores de determinado meio de comunicação que, em função de interesses políticos, empresariais ou mesmo religiosos, obstrui o livre fluxo de informações, opiniões e interpretações." (Vera Nusdeo Lopes, artigo citado).

Renato Janine Ribeiro, em "paper" ainda inédito escrito para o seminário "Cultura e democracia" segue uma argumentação parecida: "Deve ficar claro, então, que a necessidade de um controle social da telinha nada tem a ver com a liberdade que nesta se manifesta. Não se trata de reduzir ou coibir a liberdade. Trata-se, isto sim, de notar que tal liberdade é exercida por poucos, basicamente em função do capital de que dispõem, e de que ela constitui um dispositivo de controle destes poucos sobre o grande público"

É possível já chegarmos à primeira conclusão / opinião de nosso artigo:

Primeira conclusão: Para assegurarmos a democracia em nosso país devemos combater a censura privada e exigir o controle social dos meios de comunicação.

 

Frase feita número 3: "Se o espectador não quer assistir a um determinado programa, ele que troque de canal."

Esse argumento só faria sentido se a programação fosse diversificada e o espectador tivesse várias opções para escolher. Dentro da mesmice da televisão aberta contemporânea, não adianta nada trocar de canal, já que todos os canais transmitem programas parecidos. Aos domingos, por exemplo, a suposta "escolha" tem que ser entre programas de auditório, futebol e filmes americanos. Todos os três compartilhando de valores muito parecidos. É muito pouco. O espectador tem o direito de exigir maior diversidade de escolha. Um dos critérios do órgão americano quando vai dar concessões de operações de televisão é a análise da grade de programação com o objetivo de garantir canais com a maior pluralidade possível. O controle público garante o direito do cidadão de ter uma televisão diversificada.

 

Frase feita número 4: "Quem não estiver contente que desligue a televisão."

Esse argumento é um verdadeiro absurdo. Quem fala assim pensa como se as empresas de televisão fizessem o favor de oferecer gratuitamente uma programação ao público e, dentro da lógica do "cavalo dado não se olha os dentes", o público deveria assistir sem reclamar ou simplesmente desligar a televisão, ficar quieto e não reclamar. Na verdade, o empresário de televisão não oferece nada de graça ao público. Aliás, muito pelo contrário: foi ele quem recebeu do cidadão o direito de administrar uma programação que dá grandes lucros a sua empresa e que, em última instância, pertence ao cidadão. Nesse sentido o cidadão tem todo o direito de exigir uma programação de qualidade e não é obrigado a desligara televisão só porque o empresário quer ganhar ainda mais dinheiro. Ele que ganhe menos dinheiro e garanta ao público o direito de ter uma grade de programação diversificada, quer atenda o maior número possível de cidadãos.

 

Frase feita número 5: "A culpa da baixa qualidade da televisão brasileira é do próprio público. É ele quem quer ver esses programas de baixa qualidade."

Há vários erros nessa afirmação. Em primeiro lugar o chamado PÚBLICO é uma entidade abstrata, composta de milhões de interesses e gostos diferentes. Geralmente quando se fala O PÚBLICO se quer dizer MA MAIORIA DO PÚBLICO. Explicitando o sub-texto presente nesse argumento ele poderia ser escrito assim: "A empresa de televisão programa o que a maioria do público quer ver. E isso é justo pois a sociedade democrática é baseada no respeito a opinião da maioria. Se você (uma minoria) não está contente, a culpa é da maioria do público e das empresas de televisão".

Agora o erro está na própria definição de democracia. Pois na sociedade democrática, a "maioria" não pode ser critério para decidir toda a programação. Um dos princípios da democracia moderna é o respeito pelos interesses das minorias. O simples respeito pela vontade da maioria sem respeito às minorias pode levar a uma sociedade totalitária (levando a um exemplo extremo, lembremos que Hitler foi eleito pela maioria do povo alemão). Não é porque a maioria quer ver futebol que toda a população é obrigada a ver futebol ou coagida a desligar a televisão. Temos que evitar a ditadura do indíce de audiência. "Pode-se e deve-se combater o índice de audiência em nome da democracia" (Bourdieu, in Sobre a Televisão). A televisão de uma sociedade democrática deve tentar agradar o maior número de interesses possíveis, respeitando todas as minorias possíveis. Hoje, no modelo de televisão brasileira, nenhuma minoria tem entretenimento e informação garantidos: nem homossexuais, nem doentes mentais, nem adoradores de música pop indiana, nem nenhum outro grupo. É função do Estado zelar pelo interesse público e exigir das empresas de televisão a expressão autônoma dessas várias minorias.

 

Uma solução pontual: o necessário apoio a produção independente

 

A única forma de garantir a diversidade da programação é garantir a diversificação dos grupos produtores e dos modos de produção. A constituição de uma cultura democrática passa necessariamente por criar mecanismos que possibilitem que vários grupos de cidadãos sejam também produtores de seus próprios programas.

A produção não pode ficar restrita a quem tem dinheiro para financiá-la. O Estado democrático deve incentivar o cidadão a produzir seus próprios programas. Esse é papel específico dos chamados Canais Comunitários. A TV Comunitária de Berlim por exemplo, abre seus estúdios e cede equipamentos para projetos de realização propostos por qualquer cidadão. No Brasil, ao contrário, os canais comunitários não têm equipamento garantido pelo poder público e são apenas um espaço de transmissão, Sem equipamento de vídeo, os "cidadãos pobres" (e mesmo as organizações de "cidadãos pobres") são impossibilitados de realizar seus programas e a produção acaba restrita a quem pode financiá-la de seu próprio bolso. Mas garantir a expressão .do cidadão no Canal Comunitário ainda é pouco. No Brasil os canais comunitários são veiculados apenas para assinantes da TV a cabo. É necessário que todo o sistema (inclusive a televisão aberta) seja permeado pelo princípio do direito de antena.

Além da garantia da produção audiovisual amadora nos canais comunitários o Estado deve criar mecanismos de apoio à produção audiovisual de empresas que produzam para televisão. A chamada Lei do Audiovisual que, no seu texto, diz favorecer os produtores audiovisuais independentes, serve apenas a uma pequena parcela desses produtores, os produtores de cinema de alto orçamento. No entanto, esse pequeno grupo de "cineastas" não pode deter para si mesmo o monopólio do termo independente. A Lei do Audiovisual é, na verdade, uma lei feita sob encomenda para favorecer apenas um pequeno grupo de "pequenos-oligarcas" que querem fazer filmes financiados a custo perdido pelo Estado. A Lei do Audiovisual, no entanto, não favorece os outros tipos de produtores independentes, como a produção em vídeo, a produção para televisão, etc. Não favorece os pequenos produtores, favorece apenas os "grandes produtores independentes", aqueles que já estão sedimentados e conseguiram se tornar "agregados" da grande oligarquia nacional e internacional, produzindo muitos de seus filmes com acordos prévios com os grandes grupos, seja a Globo, seja a americana Columbia. Sem necessariamente questionar a importância dessa lei[1], o fato é que, dentro de uma política cultural preocupada em democratizar o audiovisual, deveria existir também o apoio à produção "radicalmente independente", aquela que não está associada a nenhum grupo hegemônico. Deveria existir incentivos à realização de grupos sociais que ainda não produzem audiovisual, seja através da realização extensiva de oficinas, seja através de concursos específicos para iniciantes.

 

 


(CONTINUA...)

© 2001 – Newton Cannito

© 2001 – Revista SINOPSE

© 2004 –SOMBRAS ELÉTRICAS



[1][1] Não que essa produção independente associada a Globo e as outras grandes emissoras não seja importante. Para a sedimentação de uma democracia plena, é muito melhor que uma infinidade de produtores independentes produzam a programação das grandes emissoras do que o modelo atual, onde toda a produção está centralizada numa múnica empresa produtora (que, como se não bastasse é também emissora). Além da diversidade estética a pulverização da produção favorece a distribuição de renda (um dado importante em qualquer democracia). Para a democracia é melhor ter cem famílias ricas do que ter uma triliardária. É por favorecer os "grandes produtores independentes (as "famílias ricas da cultura nacional") que a Lei do Audiovisual é um mecanismo democratizante. Mas de uma democracia ainda primitiva e incompleta. Minha observação, portanto, não é contra a Lei do Audiovisual: é apenas a favor de mecanismos que incentivem também as classes médias, pobres e excluídas a realizar produção audiovisual independente.