SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 9 - Maio de 2012

LONG-SHOT - CINEMATECA DE LETRAS OU BIBLIOTECA DE IMAGENS: CINEMA E LITERATURA

A INTERSEÇÃO NO DIÁLOGO ENTRE CINEMA E LITERATURA: A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA NO FILME UM COPO DE CÓLERA

Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita

Julia Lemmertz e Alexandre Borges em Um copo de cólera (1999), filme de Aluísio Abranches, baseado no romance de Raduan Nassar.

É notória a ligação entre literatura e cinema: inúmeros romances, contos, crônicas, poemas, novelas inspiraram realizadores e deram origem a filmes dos mais diversos gêneros. Nesse sentido, faz-se necessário esclarecer que os filmes, de modo algum, são obrigatoriamente cópias fiéis de seus textos originais, mas sim livres adaptações que podem alterar arbitrariamente a história original, visto que se deve transformar em imagens o que está exposto no texto.

Marner explica bem isso, ao dizer que “o maior inconveniente na adaptação de um romance é o seu conteúdo puramente literário. Por ‘literário’ entenda-se o que é fundamentalmente verbal e, portanto, não visual”[1].

Rilla complementa dizendo que “a adaptação converte-se então numa criação que se diferencia deste modo do texto original, o que regra geral, enfurece muito autores”[2]. Essa consideração é importante, pois muitos autores e expectadores não compreendem que uma obra literária e um filme são duas expressões artísticas que, apesar de terem coisas em comum - como a construção da narratividade, utilizadas tanto na literatura como no cinema para estabelecer conexões lógicas –, possuem características distintas e, por conseguinte, linguagens e mecanismos expressivos típicos de cada uma delas, que devem ser considerados.

O cinema ao longo de sua história foi construindo e reconstruindo sua linguagem, a partir de estruturas narrativas bastante específicas e da relação com o tempo e o espaço, visto que isso tem de ser pensado, levando-se em consideração o encadeamento de imagens. Como nos lembra Bernardet, o recorte do espaço e suas modificações de imagem para imagem tornou-se um elemento linguístico característico do cinema[3].

Para que isso aconteça, o cinema utiliza diversas ferramentas como a movimentação de câmera, os enquadramentos, as sequências, a montagem, a iluminação, dentre outros recursos expressivos, para constituir o seu aparato cênico e construir a dramaticidade e a narrativa que o filme exige.

O escritor paulista Raduan Nassar teve dois de seus livros adaptados para o cinema: Lavoura arcaica, lançado em 1975, que deu origem ao filme homônimo dirigido por Luiz Fernando Carvalho em 2001, e Um copo de cólera, publicado em 1978, que originou o filme de mesmo título dirigido por Aluízio Abranches em 1999.

A análise desse segundo filme torna-se interessante, pois que, na adaptação da obra literária para o cinema, propôs-se a manutenção da estrutura narrativa. Torna-se possível, desse modo, identificar o livro de Nassar inteiro nas falas do filme. O diretor utilizou os elementos literários existentes no livro para escrever o seu roteiro e produzir o filme.

No livro, narra-se a história de um homem – vivido pelo ator Alexandre Borges - que se refugia em sua chácara e sua relação com uma jornalista – interpretada pela atriz Julia Lemmertz. As personagens passam de um momento de grande paixão para um momento de fúria, incitado pela abertura de um buraco na cerca viva da chácara por formigas saúvas, as quais o homem mata com uma raiva despropositada.

O buraco na cerca viva é empregado como metáfora, para representar o incômodo sentimento de invasão da chácara pelo mundo exterior, segundo a perspectiva do protagonista, que tem vivido recluso, evitando ao máximo o contato com o mundo externo, em um “arrogante exílio contemplativo”, como sugere ironicamente a personagem da jornalista, a qual representa seu único contato com esse mundo que ele evita.

A partir desse evento, ocorre uma briga, incitada pela ironia com que a jornalista se refere ao modo como o homem mata as formigas e como o mesmo trata seus empregados. Assim, ele se volta contra ela, dando início a uma guerra verbal, que se desenvolve em um crescendo de agressividade, na qual as estruturas sociais e de poder são constantemente questionadas, levando-se em consideração o papel que esses dois personagens desempenham na sociedade.

Existem três momentos bem marcados, na construção da trama do filme, delimitados pelos diferentes recursos expressivos de que se utilizou o diretor, para marcar a mudanças de dramaticidade. Primeiramente, há o encontro do casal na chácara, quando protagonizam cenas tórridas de paixão. Esse momento é constituído por longas cenas em que a movimentação da câmera se dá de forma lenta e formado por planos gerais e médios, mostrando todo o conjunto de elementos envolvidos na ação. Nesse trecho do filme, tanto a luz quanto a música mais suaves são instrumentos utilizados para construir um clima de sedução e romance.

O segundo momento é marcado pelo instante em que o homem percebe o buraco feito pelas saúvas na cerca viva da chácara. A partir daí, ocorre movimentação rápida da câmera e são utilizados planos médios e closes, para construir a sensação de enfurecimento dos personagens. Nesse ponto, a música acelera-se, dando ritmo à discussão que se inicia.

O terceiro momento é praticamente o retorno ao início da narrativa, como se fechasse um ciclo, no qual a jornalista volta à chácara e encontra o homem dormindo, o que denota a ideia de que o amor e a paixão voltaram ao relacionamento do casal. Agora, os elementos cinematográficos utilizados para criar a dramaticidade do primeiro momento são reutilizados, com o intuito de sugerir como que um recomeçar da história.

A inserção de cenas nas quais os personagens falam diretamente para a câmera, como se conversassem com o expectador, também foi uma forma de construção da narrativa, pois essas inserções irão marcando o crescimento da hostilidade entre as personagens até a chegada do ápice da discussão. Do mesmo modo, marca o retorno da jornalista à chácara e a possível reconciliação do casal no terceiro momento do filme.

A utilização das falas originais do livro de Nassar, com a sua retórica irônica, sarcástica e, em certos momentos, poética e sensível, é um dos elementos importantes para a trama do filme, que, sem isso, talvez não tivesse o mesmo impacto. A linguagem dessa novela é moderna e nervosa, utilizando em certos momentos uma linguagem popular. Marcada por longos períodos e pela recriação de uma oralidade expressiva, que se aproxima do poético, a obra permite que se construa um discurso por meio do qual se questionam as estruturas de poder, bem como o papel que o homem e a mulher representam na sociedade.

Nesse sentido reafirma-se que a interseção no diálogo entre literatura e cinema se dá na construção da narrativa, a qual se define, segundo Lima, “como um universo contado, um ato de contar uma sucessão de fatos, que se reconhecem com certa semelhança”[4]. Essa potencialidade narrativa, que se desenvolveu na literatura de Raduan Nassar, serviu de base para o cinema construir estruturas e conexões lógicas, que tornaram possível a Aluízio Abranches contar suas histórias por meio de imagens.

 

REFERÊNCIAS

BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2006

LIMA, Graciela de Siqueira. As funções comunicativas da literatura e do cinema: branco no preto. In: ANDRADE, Flávio F. A e DROGUETT, Juan Guilhermo D. (Orgs.) O feitiço do cinema: ensaios de grife sobre a sétima arte. São Paulo: Saraiva, 2009.

MARNER, Terence (Org). A realização cinematográfica. Tradução: Manuel Costa e Silva. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2006.

NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. 5ª ed. São Paulo; Companhia da Letras, 1992.

SCATAMBURGO, Camila e STEINER, Gisele. A parábola literária no cinema. In: ANDRADE, Flávio F. A e DROGUETT, Juan Guilhermo D. (Orgs.) O feitiço do cinema: ensaios de grife sobre a sétima arte. São Paulo: Saraiva, 2009.

XAVIER, Ismail (Org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

_______. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 4ª ed. – São Paulo: Paz e Terra, 2008.

 

AUDIOVISUAL

Filme: Um Copo de cólera. Direção Aluízio Abranches, 1999.

MARCUS VINÍCIUS AZEVEDO DE MESQUITA é

Licenciado em Geografia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e

graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense.


[1]     MARNER, Terence. (2006, pg. 56).

[2]     RILLA, Wolf, citado por MARNER, Terence. (2006, pg. 56).

[3]     BERNARDET, Jean-Claude (2006, pg. 36).

[4]     LIMA, Graciela de Siqueira. (2009, pg. 49).