SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 3 - Abril de 2004

LONG-SHOT - HUMBERTO MAURO (ou: O DIA EM QUE DERAM MESCALINA A UMA MÁQUINA DE FILMAR)

MAURO E UM OUTRO: COMPROMISSOS COM A ALTERIDADE NO CINEMA DE HUMBERTO MAURO

Bernardo Ururahy

 

Humberto Mauro em Engenhos e Usinas (1956)

Introdução

Qualquer trabalho acadêmico, no nosso entender, deve estar ligado a questões do presente. Se a própria Historia vem renunciando a propostas de apreensão e entendimento de um passado tomado como coisa em si, ha motivos de sobra para que tencionemos levantar questões que, ainda que referentes a temporalidades especificas, sirvam para lançar luzes sobre o presente. Isso se torna ainda mais imperativo quando se da dentro de uma universidade publica, para onde apontam os holofotes da mídia, reflexos do momento conturbada que o país atravessa e da qual nossa academia não poderia se supor imune. Nosso foco, neste trabalho, estará sobre o cineasta mineiro Humberto Mauro e sua obra. Acreditamos que Mauro, por possuir uma filmografia tão vasta e diversa no que concerne aos modos de produção, traz em sua obra uma manifestação singular do tema que aqui será tratado: o desejo do cineasta e o comprometimento de seu cinema com urna alteridade.

Alguns termos são cruciais para a compreensão de nossa proposta e iremos, em seguida, apresentá-los. Antes, porem, de iniciarmos essa elaboração (ou conscientização - no sentido de tomar consciente) do aparato teórico que servirá de base para a discussão que aqui iniciaremos, deve ser colocado, de antemão, que o presente trabalho não se trata propriamente de Ulna pesquisa e não trará, portanto, conclusões: Este e um trabalho essencialmente propositivo que busca levantar algumas questões que entendemos serem importantes para pensarmos, não só o cinema de Humberto Mauro, mas também o cinema brasileiro produzido atualmente. Se trata, efetivamente, de uma sugestão de leitura do objeto cinematográfico, como detalharemos mais tarde, citando a obra do cineasta mineiro como fomentadora destas questões. Questões estas, que suscitaram principalmente no assistir aos filmes de Mauro durante o curso Estudo Especifico de Cineasta Brasileiro - Tema: Humberto Mauro, da Universidade Federal Fluminense, realizado no primeiro semestre de 1998, ministrado pelo professor Roberto Moura. Aproveito para deixar claro que, sendo este curso pertencente ao Departamento de Cinema e Vídeo desta universidade, e o autor deste trabalho seja aluno desta escola e, portanto, futuro portador do titulo de cineasta (se assim o futuro que se delineia se concretizar!), a analise, que aqui se pretende, não se furta a incluir implicitamente em seu corpo elementos pertinentes a urna experiência pessoal. Isto não seria de modo algum incoerente com a proposta Ulna vez que, como veremos adiante, e justamente este vetor que reuniria o objetivo maior do presente trabalho: a leitura de discursos, fílmico em se tratando da proposta do trabalho e dissertativo acadêmico neste exemplo particular como expressões de uma subjetividade.

A exibição das obras, durante o curso, em sua ordem cronológica de produção, permitiu uma relação com o cinema de Mauro onde pode-se levar em conta o fator da temporalidade na construção dos filmes. Isto implica dizer que a obra de Mauro, neste trabalho será entendida em sua dimensc1o discursiva sendo seu sentido dado a partir da relação diacrônica com uma alteridade. Isto é, a intenção central deste trabalho é pensar uma forma de ler o objeto cinematográfico, ou quem sabe, numa possibilidade a posteriori, utilizando as reflex6es agora levantadas, ate mesmo o texto fílmico no sentido de Metz (1971), a partir do comprometimento do cineasta com uma alteridade. No caso de Mauro, esta alteridade esta sempre presente, ainda que não seja sempre a mesma.

Este tipo de leitura, cujo esforço de construção de um aparato teórico é aqui sugerida, no nosso entender, permite visualizar o que há de mais obscuro e enigmático na produção do objeto cinematográfico: para quem o cineasta faz seus filmes?

Para quem Humberto Mauro faz seus filmes I ?

Esta pergunta perpassará toda e qualquer discussão que aqui desenvolveremos e se situa no cerne da problemática fundamental que propomos: uma leitura do discurso fílmico sem, contudo, abrir mão de uma perspectiva que leve em conta de que forma o filme foi produzido. Esta perspectiva, a nosso ver, toma viável a inclusão do cineasta/sujeito na obra. Inclusão esta, que não deixara de trazer consigo determinados problemas e dificuldades que nos julgamos dispostos a enfrentar.

Neste momento, já e possível a introdução de nosso primeiro conceito-chave, que, na verdade, dado o caráter intuitivo da proposta aqui apresentada, preferimos chamar de noção-chave. Nossa primeira noção-chave, que nasce da inclusão do cineasta/sujeito no discurso fílmico é a de desejo de cinema. Como já dissemos, isto traz algumas implicações e problemáticas que pretendemos abordar em seguida. (Curioso notar que o que há de problemático no objeto cinematográfico e o que mais se aproxima daquilo que seria o seu especifico).

O cinema é arte ou e indústria? É uma arte de dimensões industriais ou é uma industria de aspirações artísticas? A arte, durante muito tempo, a medida em que se distanciava das coisas da vida, se aproximava da figura do artista. A obra de arte era facilmente identificada como uma expressão elaborada do seu falar.Dai, acreditava-se, a arte era uma janela para um alem, que o artista, ser especial que era, tinha acesso e nos contava a respeito. A busca pelo belo e pelo sublime (no sentido essencial) durou o tempo das aspirações metafísicas ao universal e ao absoluto. O avanço cientifico do qual o cinema é uma espécie de ovelha desgarrada[1][1], trouxe não só a verdade para o mundo (ainda que esta tenha permanecido absoluta e em si), como contribuiu para todo um movimento de contraposição desses valores. A institucionalização da obra de arte ganha seu sentido quando o mictório de Duchamp, exposto numa galeria, é oficializado como objeto artístico.

O cinema, quando se configura como arte, traz novas implicações. A figura do autor fica um tanto quanto esmaecida quando comparado com outras artes, ainda que, principalmente durante a década de 60, tenha ocorrido todo um movimento de valorização do cineasta, acima de tudo, como autor. Vale lembrar que, em seu livro Revisão crítica do cinema brasileiro (1963), Glauber Rocha o dedica "ao velho Humberto Mauro, um autor". Nossa proposta aqui e considerar o cineasta um autor; seus filmes serão sempre entendidos como expressões também de sua subjetividade. O que pretendemos é não fazê-lo de forma a excluir uma série de particularidades da criação cinematográfica que envolvem, no interior do processo de criação, outros componentes subjetivos ou subjetivantes que não as do próprio autor. O ato de criação cinematográfica envolve diversos vetores externos ao autor da obra. Paul Valèry já dizia que "espírito é mistura" Não queremos com isso reduzir a criação artística a um mero papel de refém das determinações externas, quer sejam políticas, econômicas sociais e/ou ideológicas. Apontamos, e aí implicamos o cineasta/sujeito como autor da obra, uma brecha de manifestação e possibilidade de criação que se traduziria por aquilo que chamamos aqui de desejo de cinema. Esta noção se relaciona com um desejo próprio do sujeito num sentido mais amplo; preferimos porem restringi-lo a esta noção, urna vez que nosso objeto de foco e a atividade cinematográfica.

Este desejo de cinema se manifesta na abra de Mauro de maneira mais ou menos enfática nos diversos momentos de sua carreira. Ele emerge a partir de um contraponto. Desta relação e que retira sua maior ou menor potencia. Este desejo de cinema e uma noção intuitiva que, no nosso entendimento, melhor se aproximaria daquilo que pensa-se ser urna dimensão pessoal numa obra; onde a inclusão do cineasta/sujeito no discurso fílmico é expressamente mais clara.

Durante o chamado ciclo de Cataguases, no dizer de Paulo Emilio (1974), o desejo de cinema de Mauro talvez seja mais evidente por que, ali, com as condições mais adversas possíveis ele realizou seus primeiros filmes. Urna cidade fora do eixo tradicionalmente produtor de cinematografias, uma escassez técnica, escassez de conhecimentos técnicos, lingüísticos, o que for... a pergunta que ulula a nossa frente e: como foi possível, com tudo contra, que Humberto Mauro tenha feito cinema em Cataguases?

Esta pergunta e respondida por ela mesma: ela não se sustenta; ela faz afirmações que não são verdadeiras. Ela diz que Humberto Mauro tinha tudo contra si; para quem faz esta pergunta, o cinema se tomaria inviável sob tais condições. A sua feitura é tomada, então, com espanto, como se fosse uma espécie de milagre. E é mesmo! Mauro não tinha tudo contra si; e este o erro em que a pergunta incorre. Ele tinha algo de fundamental, sem o qual, ai sim seus filmes seriam impossíveis: ele tinha desejo de cinema. E justamente este desejo que permite que o cinema não se exclua do campo das artes. Este desejo de cinema não pode ser tornado aqui corno se fosse simplesmente desejo de algo ou de fazer algo. Desejo de cinema é um desejo que necessariamente implica o sujeito na obra faz com que este não se entregue simples mente ao eixo de determinantes usuais, sócio-político-econômico-religioso-ideológico-etc., e se imponha a sua própria obra, toma esta, seu discurso, sua fala. Enfim, desejo de cinema e o que permite que o cinema se constitua como arte e. apesar de suas inúmeras transversalizações que o fazem ser cinema e não uma outra arte qualquer, seja fundamentalmente obra de um autor. E de um sujeito. Um sujeito que escapa as leituras tradicionalmente individualizantes que o explicam a partir de contextualizações exteriores; situando-se, antes, numa 16gica mais ampla, do desejo da subjetividade, da autoria.

Queríamos antes, porem, colocar que esta noção de autoria, presente nos estudos do cinema está disseminada por toda parte e ate mesmo no senso comum. Isto não deixa de nos surpreender, uma vez que, por suas, digamos, condições coletivas de produção, a crítica a esta noção, que sabemos existir, ainda e muito acanhada, ao menos a nível acadêmico. A noção de autoria não só confere ao cinema um estatuto de arte, como também viabiliza sua inserção nos campos do saber (que são muitos!) como objeto de estudos específicos. Se, por exemplo, esta noção de autor da obra não existisse, certamente o curso que suscita este trabalho também não existiria; e o cinema só seria estudado a partir de macroperspectivas. Contudo, não nos parece óbvio a existência de uma dimensão autoral no cinema. A construção de um ponto de vista que inclua esta noção requer um esforço teórico que, primeiramente, assuma uma posição de estranhamento diante desta questão da autoria. E justamente o que pretendemos quando afirmamos que ela não é tão óbvia quando se supõe. Tentamos delinear, neste trabalho, a formulação de formas de ler o discurso cinematográfico, como também sendo discurso de um sujeito, o autor. Se ele e o diretor, o fotógrafo, o produtor ou o roteirista (ou todos), não e óbvio, nem se apresenta nos créditos dos filmes. Portanto, acreditamos na importância de uma elaboração teórica ampliada que apresente como fim a inclusão de uma subjetividade no discurso cinematografico[2][2]. Fica aqui, então a nossa sugestão. para um trabalho futuro que pense (e pesquise as origens d) esta noção de autoria numa arte tão particular no que concerne aos modos de produção de suas obras.

 

Para quem Humberto Mauro fez seus filmes II?

 

O livro de Paulo Emilio, Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, é ainda insuperável quanto ao estudo da obra do cineasta mineiro. Infelizmente, ele só cobre o período ate 1930. A leitura do livro e a observação dos filmes de Mauro nos fazem visualizar algo que permeia toda a carreira do cineasta: a influencia de determinados personagens sobre o trabalho de Mauro. Para Paulo Emilio, o contato de Humberto Mauro com o cineasta/ empresário/jornalista Adhemar Gonzaga foi decisivo para a construção do que ele chama de estila dos filmes do diretor mineiro. Não haveria, como dissociar a abra de Mauro da estética de luxo de Gonzaga. Para Mateus Araújo Silva, "a influência das concepções cinematográficas de Adhemar (sua estética do luxo) sobre Mauro representou também um limite para a personalidade do cineasta e para o estilo de seus filmes produzidos no período".

Neste artigo, Mateus ainda cita não só Adhemar Gonzaga como também Roquette-Pinto, com quem Mauro trabalhou no INCE a partir de 1936, como fatores que ele considera terem sido limites que "tenderam a diminuir-lhe o alcance e o vigor" do "olhar para o Brasil" construído pelo cinema de Mauro. Sua obra não pode ser observada sem que se leve em canta este dais personagens importantíssimas. Não seria incorreto dizer que foi graças a eles que a carreira de Mauro ganhou a diversidade que e hoje internacionalmente reconhecida. Uma das coisas que primeiro nos chamou atenção, durante o assistir de seus filmes, foi o redirecionamento formal que sua obra toma a partir de O Descobrimento do Brasil (1937). Neste filme, que parece prescindir de diálogos, o que e sugerido pela música de Villa-Lobos, Mauro se utiliza de um documento histórico, a carta de Caminha, não para fazer História ou ilustrar um período histórico, mas sim para fazer poesia. Seu domínio da narrativa já e, a esta altura, rico de sutilezas e elaborações. E é com doses cada vez mais presentes de seu viés documental, aliadas a uma habilidade muito grande de dotar os planos de forte carga emotiva, o que se já se esboçara desde seus primeiros filmes, que ele constrói seqüências memoráveis como a da construção da cruz da primeira missa, por exemplo.

O afastamento de Adhemar Gonzaga, de seus dramas pequeno-burgueses, de seu modelo de transposição do cinema americano, tem como conseqüência uma reviravolta na carreira do cineasta mineiro. A entrada de Mauro no INCE nos mostra, no entanto, que se os temas de seus filmes mudam, certos fatores externos permanecem. Ainda que tenha retomado o seu olhar para o campo, para as coisas simples do interior do Brasil, a relação de Humberto Mauro com um personagem influente em sua obra permaneceu; desta vez, Roquette-Pinto. E neste sentido, que se constrói a proposta do presente trabalho. No nosso entender, o comprometimento de Mauro com urna alteridade e gritante e seus filmes não podem ser analisados sem que isto tenha sido levado em conta. &te comprometimento não se apresenta com um sentido de limite, pelo menos não necessariamente. Não trabalhamos com a idéia de que haja um Humberto Mauro ideal, puro, que poderia se tomar pleno, não fossem as ações castradoras de Adhemar Gonzaga, Roquette-Pinto, do mercado, da escassez técnica, do cinema americano. Nossa proposta e tomar a obra de Humberto Mauro corno uma tentativa incessante de tentar atender a demanda de uma alteridade. Este compromisso com uma alteridade é nossa segunda noção-chave.

Inicialmente, havíamos entendido esta demanda como algo nocivo, como algo limitador. O INCE e o conseqüente descomprometimento de Mauro com o mercado seria, então, uma resolução desta questão. Nossa intenção inicial era propor um território público dentro do mundo privado no qual o cinema vive hoje, pais sem esse comprometimento, o cineasta estaria "livre" e, portanto, faria filmes mais pessoais. Percebemos, porém, que estávamos trabalhando com uma noção de liberdade ideal, como se o processo de criação artística fosse algo de ordem do estritamente individual e desvinculado do mundo, desimplicado dos homens e da vida do próprio cineasta. Dai o valor que atribuímos a Humberto Mauro. Ele foi definitivamente um autor que, talvez pelo acanhamento de sua formação cultural, corno diz Mateus, não se poupou em sujar-se neste processo de criação que e essencialmente relação com urna alteridade. Humberto Mauro é, a nosso ver, portanto, o verdadeiro cineasta, se é que isso pode ser dito de algum modo. O cinema não é a pintura ou a literatura, onde o artista pode se trancar num quarto, afastado de tudo (é o que ele pensa!) e mergulhar na intimidade de seus sentimentos, inconsciente, essência, seja o que for, para criar sua obra. O cinema pede relação, pede negociação; inclui o outro, o mundo, a vida, uma alteridade que não esteve jamais ausente, só que no cinema não se pode fugir dela.

Este comprometimento com uma alteridade é resultado de urna demanda desta alteridade, uma demanda que, vale dizer, não cessa nunca; é um pedido que permanece reverberando por toda a vida. Muitas vezes, ela entra em rota de colisão com o desejo. Na filmografia de Humberto Mauro, isto aconteceu de forma mais veemente em Ganga Bruta (1933). Resultado: uma das mais notáveis obras do cinema do cinema mundial e fim da relação Mauro e Gonzaga. Como podemos entender que esta influencia exercida por Adhemar tenha sido limitadora? Limitador é quando Mauro procura atender integralmente a esta demanda e abre mão de seu desejo de cinema escondendo-o em pequenas seqüências e breves vislumbres de genialidade em enquadramentos e montagens, o que teria ocorrido em fitas como Labios sem beijos ou Sangue mineiro.

Com Roquette-Pinto, encontramos este comprometimento nas palavras de Mateus Araújo Silva:

 

"seja como for, os documentários de Mauro produzidos no INCE parecem ter como limites a padronização imposta ao estilo de cinema educativo e a ideologia oficial da cultura brasileira que ele tendia a vincular."

 

Logo abaixo ele constata, porem, que:

 

"isto não impediu Mauro de exercitar, dentro destes limites, sua grande criatividade artesanal e sua atenção a diversas facetas da experiência brasileira." (O grifo é nosso)

 

Isto mostra como, no INCE, Mauro encontrou este mesma comprometimento (deve ser entendido que isto é algo dele e não externo a ele) a partir da qual, filmes notáveis, como A velha a fiar (1964), por exemplo, são resultados desta negociação com a alteridade. São realizações primorosas, transbordantes de pessoalidade, ainda que referidos a urna proposta pré-estabelecida, a dos filmes educativos.

Nos parece que esta referencia a uma alteridade e algo que não cessa jamais. Abrir mão do desejo e procurar somente atender a demanda traz frustrações e funciona efetivamente como um limite. Supor-se imune e não referido e ingênuo e ultrapassado; diríamos que, no cinema, e impossível. E desta conjugação, desta relação, ou melhor, desta relação com o outro que irrompe a verdadeira autoria, algo da ordem do desejo, do desejo de fazer cinema.

 

Considerações finais

 

Há uma certa discussão na universidade entre os futuros cineastas sobre como os filmes devem ser feitos e para quem devem ser feitos. O mercado aparece, neste estória, como uma espécie de fantasma subjugador: ou você atende a seus pedidos e é violentado por sua lógica consumista, ou se afasta dele, recusa-se a negociar e assume uma postura apartada, donde a criação transcendente e o seu maior fomentador.

Não queremos, muito pelo contrario, propor aqui uma terceira via do cinema nacional. Ao que nos parece, os filmes que vem sendo produzidos não tratam destas questões. O discurso hegemônico atual preconiza uma ditadura da alteridade. Que filmes o outro[3][3] quer que eu faça?, talvez seja a pergunta que os cineastas se fazem primeiro. Não ha, porém, como o mercado subjugar ninguém. O desejo e sempre um ponto de escape e de inserção do cineasta na obra.[4][4] Não ha também como se ausentar destas negociações. A prática do cinema traz isto à tona a todo momento. O trabalho de criação artística e, portanto, corno tudo na vida, produto de relação se constr6i a partir da relação do sujeito com urna alteridade.

Humberto Mauro e o maior exemplo disto. Ao final da carreira, longe de Adhemar Gonzaga e de Roquette-Pinto, ele retoma seus olhos para o que havia de mais pessoal em sua obra, o campo, as pessoas, o carro de bois. Tristeza e lamento pela morte que já previa e via na roda quebrada, na fazenda vazia. O tempo no cinema de Mauro é um significante complexo, cujo trabalho de significação requer cautela e cuidados. O carro de bois é outro significante extremamente importante e emblemático no discurso do sujeito Humberto Mauro. Suas múltiplas significações referem-se invariavelmente à própria vida do cineasta, dando-Ihe sentidos diacrônicos de vida e morte, o canto do carro como exaltação da vida, coma marca presente de sua existência (preto-e-branca), ou como recordação e suplicia, a roda quebrada, o capim que cresce sobre o carro. Humberto Mauro vê a morte em cores e, ao falar dela, acaba por exaltar a vida.

O desejo não se afasta na iminência da morte, não se ausenta na presença do outro, no pedido do outro. O desejo só não emerge quando não ha mais reação. Isto sim e a morte. Na morte, quem morre não e o sujeito, mas sim o outro, a alteridade.

 

Referências Bibliográficas

 

GOMES, Paulo Emilio Salles. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo: Perspectiva, 1974.

 

METZ, Christian. Linguagem e cinema. São Paulo: Perspectiva, 1971.

 

_____________. Algumas questões de semiologia do cinema. In: A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 111-128.

 

VIANY, Alex. Outro esforço individual: Humberto Mauro. In: Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959, p. 83-90.

 

SILVA, Mateus Araújo. Grandeza e limites de Humberto Mauro. In Cinemais número 7 – Setembro/outubro de 1997.

 

 


BERNARDO DINIZ URURAHY é Bacharel em Comunicação Social/Cinema pela Universidade Federal Fluminense. O artigo acima foi escrito como tarefa de conclusão da  disciplina Estudo Especifico de Cineasta Brasileiro, do Curso de Cinema da UFF, ministrado pelo professor Roberto Moura no primeiro semestre de 1998, e cujo tema específico foi Humberto Mauro.

© 1998 – Bernardo Diniz Ururahy

© 2004 – SOMBRAS ELÉTRICAS 



[1][1] O cinema surge no bojo do desenvolvimento tecno-científico. Como um descendente direto da fotografia, ele era visto com um enorme potencial de investigação da natureza, uma vez que entendia-se que o cinema era capaz de um reprodução fiel do real. Sua dimensão narrativa, porém, que não fora prevista, permitiu ao cinema que furasse a tela de expectativas do contexto onde nasceu e atualizasse novas potencialidades. O cinema é capaz, por meio da narração, de secretar relações espaço-temporais não-lineares; a narrativa linear, dita clássica, sendo entendida como a reconstrução eficiente da linearidade perdida com o corte.

 
 

[2][2] Os termos fílmico e cinematográfico são utilizados aqui indiscriminadamente. Não nos preocupamos em fazer esta distinção, embora faça-se necessário esclarecer que ambos estão se referindo ao que Metz prefere configurar como fílmico. Como não e nossa intenção especificar o ambiente do discurso fílmico, preferimos não fazer esta distinção, valendo-nos do pensamento do pr6prio Metz que atenta para os efeitos-de-presença do cinematográfico no fílmico.

 
 

[3][3] Difícil é a definição de quem é esse outro, uma vez que sabemos que o público não tem um diálogo manifesto com o cinema brasileiro. E, na verdade, na atual forma de produção, via leis de captação, não é nem necessário público para que um filme se pague.

 
 

[4][4] Uma leitura perversa poderia supor que temos uma visão ingênua, reduzindo o papel do cineasta dentro da indústria cultural. Queremos, ao contrário, valorizá-lo, tratando o filme como produto comercializável e como discurso de um sujeito, mercadoria e fala. Fala que nasce da indústria, mas não se resume a ela.