SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 9 - Maio de 2012

LONG-SHOT - CINEMATECA DE LETRAS OU BIBLIOTECA DE IMAGENS: CINEMA E LITERATURA

A ADAPTAÇÃO COMO GÊNERO CINEMATOGRÁFICO

Fernanda de Souza Sbrissa

Julien Davenne (François Truffaut) e Cecilia Mandel (Nathalie Baye) fiéis aos mortos, vivendo com eles. Cena O quarto verde (La Chambre verte, 1978), filme de François Truffaut baseado no romance The Altar of Dead, de Henry James. 

Em seu “Adaptação, o gênero”, Thomas Leitch (2008) propõe olhar para as adaptações cinematográficas definindo-as como um gênero particular, com regras e procedimentos específicos tão poderosos e determinantes quanto qualquer texto fonte na determinação da forma que a adaptação vai assumir.

A adaptação, segundo ele, não tem chamado a atenção dos estudiosos como outros gêneros cinematográficos. Uma das possíveis razões para isso é o fato de que esse gênero tem sido bastante utilizado pela indústria hollywoodiana, desde a primeira década do século XX, quando o cinema buscava aproximar-se da Broadway a fim de distanciar-se de deslumbramentos efêmeros e de atender prontamente ao público.

Esse gênero, embora de certa forma “invisível”, conta com um considerável desenvolvimento teórico. No entanto, até o fim da primeira década do século XXI esse desenvolvimento não se focou na adaptação como gênero – mas é só nos apoiarmos no fato de que dois filmes diferentes, de diretores diferentes, baseados em romances diferentes, são passíveis de serem comparados para nos convencermos de que há, nesse “tipo” cinematográfico, algo que o difere dos outros gêneros da sétima arte.

Leitch (2008) toma os apontamentos de Neale, embora esse teórico não veja a adaptação como um gênero, para aprofundar-se nessa questão. Segundo Neale (apud LEITCH, 2008), é exatamente por existirem enquanto instituição que os gêneros atuam como horizontes de expectativa para os leitores e modos de escrever para os autores; a adaptação é essa instituição capaz de gerar expectativas no espectador e dotada de características próprias que determinam o trabalho do roteirista/diretor.

A definição de adaptação de Hutcheon, especialista no assunto e em estudos culturais, é retomada por Leitch (2008) por corroborar suas asseverações. Segundo a especialista, a adaptação envolve atrevimento conceitual, pois opõe o trabalho conhecido ao experenciado, o que leva Leitch (2008, p. 108) a afirmar que:

Se grande número de expectadores assinala sua disposição de jogar esse jogo intertextual por meio do reconhecimento das adaptações enquanto adaptações, deve haver marcas textuais que identificam as adaptações enquanto tais, análogas ao mesmo tipo de marcadores textuais associados aos gêneros fílmicos como o noir ou a comédia romântica. [1]

O teórico chega a essa conclusão pois a experiência com obras adaptadas, seja focando a reação do público ou as características que guiam o trabalho do roteirista/diretor, mostra que na prática essas relações aproximativas são claras, mas teoricamente é difícil determinar esse gênero. A questão central, então, é determinar essas características que fazem até mesmo espectadores inconscientes da existência de um texto literário base perceberem que estão diante de uma adaptação.

É muito comum confundir o gênero adaptação com o gênero romance clássico ou de herança. Por sua extensão, Leitch (2008) propõe recortar o gênero adaptação a partir das obras de Dumas, excluindo os romances de amor, vinculados ao feminino e, portanto, vinculados ainda mais fortemente à noção de fidelidade, a fim de eximir-se dessa questão.

A justificativa de Leitch (2008) para esse recorte apoia-se nas conclusões de Aragay e López (2005), as quais afirmaram que as noções de masculino e feminino mantiveram-se atrativas para a cultura ocidental como material não assimilado em um ambiente pós-feminista. É focada nesse material não assimilado sua afirmação de que o gênero adaptação iniciou-se quando passou a existir a probabilidade de adicionar-se a ele uma “possibilidade de sedução” oriunda da obra.

As noções de “genre” e “gender” são tratadas muito proximamente por Leitch (2008) – para o autor, enquanto os romances clássicos e de herança enfatizam heroínas e valores femininos, os de aventura evidenciam os heróis e os valores masculinos. Desde o advento desses dois gêneros, mulheres e homens vêm se “fidelizando” ao seu respectivo gênero – romance e aventura, respectivamente. Pensando em atender a esses dois públicos, a esperta empresa cinematográfica passou a também investir em filmes mistos, dentre os quais Leitch (2008) destaca Titanic (James Cameron, 1997) e Sr. e Sra. Smith (Doug Liman, 2005).

Voltando à década de 1930, o teórico pensa em quais romances começaram a ser adaptados diretamente a partir de seus livros fonte. Segundo ele, eram os romances que contavam com características dificilmente encontradas nas peças já tão conhecidas pelo público; daí essa época estar recheada de adaptações de romances de aventura, aparentemente mais “adaptáveis” para os realizadores do cinema do que os romances de amor, já tão conhecidos do público por suas adaptações para o teatro.

Consciente de qual adaptação olhar e da razão dessa escolha, Leitch (2008) desenvolve quatro fatos que estimulam diretores, roteiristas e outros envolvidos com o cinema a encarar as adaptações como adaptações, mesmo quando desconhecem seu texto base, e um contrafato, um elemento erroneamente considerado obrigatório para o reconhecimento do gênero.

O primeiro traço que incita um filme a ser assistido como uma adaptação é, segundo Leitch (2008) a partir das considerações de seus alunos, a ambientação do período. Para o autor, independente de se o filme adapta um livro clássico, como Little Women (George Cukor, 1933; Marvi LeRoy, 1949; Gillian Armstrong, 1994), ou um contemporâneo, como Desejo e Reparação (Joe Wright, 2007), as adaptações que mais chamam a atenção tanto do público quanto da crítica são as de dramas de costumes, como as das obras de Jane Austen. Mesmo sendo de escritores contemporâneos, os livros que vêm sendo correntemente adaptados são os romances de veio histórico, como o Reparação (2002), de Ian McEwan, que dialogam proximamente com o drama de costumes, gênero cujo foco está em retratar os modos, posturas e costumes de uma época.

A segunda marca apontada por Leitch (2008), relacionada diretamente à primeira, é a importância da música do período da adaptação, mesmo que o período da música for diferente do período da história. A música faz parte da ambientação tanto quanto o cenário e o figurino, embora pouco se comente sobre ela. Igualmente importantes são as alusões e as citações de peças clássicas conhecidas, que convidam o espectador/ouvinte a interpretar os eventos da obra inserido no contexto de um ponto de partida cultural conhecido independente do hipotexto que o baseia. A importância da ambientação, seja do período ou da música, salienta a ligação entre literatura e história, já bastante comentada e evidenciada por teóricos como White e Hutcheon.

Essa supervalorização da história liga-se ao terceiro traço: a obsessão com autores, livros e palavras. Leitch (2008) chegou a essa conclusão após ouvir também de seus alunos que é o roteiro o responsável por indicar a qualidade e a legitimidade de uma adaptação, muito provavelmente porque essa atribuição une a questão da autoridade a uma história heráldica, associada à riqueza e ao poder. Quanto mais uma adaptação pretende se afirmar enquanto tal, mais ela listará o nome do autor do texto que lhe deu origem em seu título, e mais enfatizará o papel dos livros em seu enredo ou nos créditos finais.

O último índice determinante para a caracterização do gênero adaptação, para Leitch (2008), é a presença dos entretítulos, que no passado eram aquelas frases que apareciam escritas entre as cenas nos filmes mudos, mas que hoje representam quaisquer sentenças que estampem a tela durante o filme. Obviamente, outros tipos de filmes fazem uso desses entretítulos para adicionar informação ao espectador, mas os utilizados nas adaptações assumidas são diferentes. Leitch (2008, p. 114), tentando entender o porquê dessa especificidade de entretítulos, afirma que “não é de surpreender que a tensão entre informar o público e fazê-lo lembrar seja o principal impulso por trás dos entretítulos nas adaptações, pois, como Hutcheon aponta, é a tensão que autoinforma as adaptações.”;[2] essa afirmação parece-nos mostrar que os entretítulos são, na verdade, inapropriados, uma vez que a motivação para o seu uso (de certa forma, resolver a tensão entre informar e fazer lembrar o público) é justamente o que determina a adaptação enquanto tal, pois se não houver a tensão entre mostrar ao público o texto base ao mesmo tempo em que faz com que esse público lembre-se do que conhece desse texto, não há, segundo Leitch (2008) comentando Hutcheon, adaptação.

Esses quatro indiciadores das adaptações que se assumem enquanto adaptações opõem-se a um marcador entendido erroneamente como identificador desse gênero, principalmente por ser muito encontrado em romances amorosos: a adoração ao texto fonte. Contraditoriamente, a intimidade entre adaptação e texto base, considerada por muitos como o ponto central no reconhecimento da adaptação enquanto tal, está, de muitas maneiras, não relacionada a esse ponto.

Uma adaptação, segundo Leitch (2008), consegue reduzir seu status de adaptação minimizando seu débito ao texto fonte, como em O homem da máscara de ferro (Wallace, 1998), adaptação em que se optou por não creditar Dumas pela narrativa adaptada, mas por atribuir parte da narrativa a uma lenda e outra parte a arquivos históricos. Com isso, a adaptação deixa de adorar ao texto base para ater-se a outras fontes que provavelmente serviram de fonte também para o escritor. Essa omissão poderia ser perigosa se os espectadores fossem leitores da obra, no entanto o artifício do diretor provavelmente baseou-se na hipótese de que seus espectadores não teriam lido o livro, e, portanto, não fariam essa relação.

Os indiciadores de adaptação são extremamente importantes para os estudiosos nessa área, pois, segundo Leitch (2008), determinam, para a audiência, a adaptação, sendo, portanto, os responsáveis por fazer de um grupo de espectadores que não conhecem a obra original capazes de reconhecer a relação evidente entre o texto fílmico e o literário, mesmo que sejam incapazes de nomear o que os tornou hábil a esse reconhecimento.

Esses marcadores enumerados por Leitch (2008) baseiam-se, essencialmente, como ele mesmo chama a atenção, mais na recepção do que na produção das adaptações. No entanto, sabemos que esses indiciadores são fruto do estratégico trabalho dos produtores de adaptação, que há anos vêm embutindo nos espectadores o ideal do que seria uma verdadeira adaptação.

Independente de se as adaptações originalmente foram produzidas e comercializadas atentando para o seu status de adaptação, o fato de que ainda hoje elas podem ser relançadas enquanto adaptações é o que nos desperta interesse. Para Leitch (2008), isso indica que a indústria ainda se entusiasma com o potencial genérico da adaptação, e que o público estaria indo ao cinema em busca do prazer que um dia fora gerado pela leitura. Seria, então, a adaptação cinematográfica substituta da leitura? Acreditamos que não. Para nós, a adaptação enquanto gênero detém características que a determinam enquanto tal, sendo, assim, um gênero cinematográfico que atrai espectadores interessados no que a distingue dos demais gêneros. No entanto, essa distinção não é encarada por esse público, acreditamos, como uma substituição para a leitura prazerosa, pois por mais tecnologizado que ele esteja, ainda é capaz de discernir as diferenças midiáticas que povoam os meios pelos quais tem acesso às narrativas, e sua preferência por um ou outro é subjetiva.

Leitch (2008) ainda detém-se em como se opera o que faz do gênero adaptação um gênero com sua própria negociabilidade e apelo ao público. Para ele, isso tem a ver com a capacidade das adaptações de promover a oportunidade de o espectador testar seus próprios conhecimentos não só sobre os textos que eles conhecem, mas também sobre as ideias que têm deles mesmos, dos outros, e do mundo com o qual entram em contato pela adaptação, tudo isso encorajando, inclusive, novas estratégias de leitura de um novo gênero que está o tempo todo testando suas hipóteses. O que define mesmo a adaptação enquanto gênero é o fato de que ela potencializa essa possibilidade intrínseca a todos os gêneros, fazendo-a ainda mais exigente e indispensável.

Portanto, sua recepção depende de como são disponibilizadas e identificadas, pois, mesmo sendo individual, é influenciada por contextos institucionais impostos pela indústria cinematográfica de adaptação. Assim, para Leitch (2008, p. 117),

Não há um único contexto, e portanto nenhuma reação, que a experiência da adaptação como adaptação prescreva. Porque se presume por definição o público experienciando cada novo texto no contexto dos textos antigos, contudo, a adaptação tem uma séria reivindicação de ser não só um gênero, mas o gênero máster de Hollywood que estabelece o padrão para todos os outros. (grifo nosso).[3]

O que nos leva a afirmar a adaptação, e mais especificamente a adaptação hollywoodiana, não só como um gênero cinematográfico, mas como o gênero que guia todos os outros nessa mesma indústria.

 

Referências Bibliográficas

 

ARAGAY, M.; LÓPEZ, G. “Inf(l)ecting Pride and Prejudice: Dialogism, Intertextuality and Adaptation.” In: ARAGAY, M (ed.) Book in Motion: Adaptation, Intertextuality, Authorship. Amsterdam: Rodopi, 2005.

HUTCHEON, L. A Theory of Adaptation. New York: Routledge, 2006.

LEITCH, T.  “Adaptation, the Genre”. Adaptation, vol. 1, n. 2, p. 106-120, 2008.

 

FERNANDA DE SOUZA SBRISSA é aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras – Ibilce da UNESP.

 



[1] If large numbers of filmgoers signal their willingness to play this intertextual game by recognizing adaptations as adaptations, there must be textual markers that identify adaptations as such, analogues to the same sort of textual markers associated with genres like film noirs and romantic comedies. (LEITCH, 2008, p. 108)

[2] It is hardly surprising that the tension between informing and reminding the audience is the leading impulse behind the intertitles in adaptations, because, as Hutcheon points out, it is the tension that informs adaptation themselves. (LEITCH, 2008, p. 114)

[3] There is no single context, and therefore no one reaction, that the experience of adaptation as adaptation prescribes. Because it presumes by definition audiences who are experiencing each new text in the context of earlier texts, however, adaptation has a serious claim to be not only a genre, but the master Hollywood genre that sets the pattern for all the others. (LEITCH, 2008, p. 17)