SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 3 - Abril de 2004

LONG-SHOT - HUMBERTO MAURO (ou: O DIA EM QUE DERAM MESCALINA A UMA MÁQUINA DE FILMAR)

 

LÁBIOS SEM BEIJOS: O DESENHO DOS CONFLITOS

Maurício Caleiro

 

 

Cartaz original de Lábios sem beijos, 1a. produção da Cinédia. (1930) Ao lado, Lelita Rosa e Paulo Morano em cena do filme.

 

Introdução

O fim das atividades da Phebo Film, fachada pretensamente empresarial da produção de Humberto Mauro em Cataguases, coincidiu com o momento no qual Adhemar Gonzaga dava os primeiros passos para se tentar implementar um cinema de bases industriais no Brasil, com a fundação da Cinédia.

A descoberta de Humberto Mauro, anos antes, produzindo filmes de enredo em uma cidade do interior de Minas Gerais, fora o mais promissor achado da garimpagem que a revista Cinearte promovia visando desvelar a produção nacional, dando inicio ao intercâmbio entre Adhemar Gonzaga e o cineasta mineiro, cujas conseqüências Paulo Emilio Salles Gomes apontaria em Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte.[1][1] Em linhas gerais, resumidamente, dizem respeito à crescente cobrança por um cinema que adotasse o modelo de produção hollywoodiano, de fluência narrativa, com luxo, juventude e beleza, baseado no star system (que a própria Cinearte procurava estimular).

O momento no qual esse encontro assumiria outra dinâmica, com Cinearte e "Cataguases" invertendo papéis, aquela suplantando este, que permaneceria como amálgama criador original, legou aos dias de hoje as imagens e a trama de Lábios Sem Beijos.

 

Antecedentes - Lábios Sem Beijos com Carmen Santos.

Lábios Sem Beijos fora originalmente planejado para ser estrelado por Carmen Santos, também co-produtora. Produção da Cinearte,[2][2] era dirigido e produzido por Adhemar Gonzaga, autor do argumento. A fotografia estava a cargo de Edgar Brasil. Para o elenco haviam sido cogitados Alfredo Rosário e Marisa Torá, e Beatriz Costa já havia aceito o convite. Nas filmagens, iniciadas no segundo semestre de 1929, chegaram a atuar Carmen Santos, Nita Ney (que fora revelada em Braza dormida (1927), de Humberto Mauro), Paulo Morano e Máximo Serrano, os dolos últimos mantidos no elenco quando Mauro assumiu o filme.[3][3]

Fotos de Lábios Sem Beijos com Carmen Santos e Paulo Morano chegaram a ser publicadas em Cinearte, [4][4] que freqüentemente aludia ao filme como uma das principais produções do ano de 1930 - muito promissor para o cinema nacional, segundo a revista).

Cinearte só se referiu à saída de Carmen em poucas linhas, imiscuídas em um texto de Octavio Gabus Mendes sobre o nome verdadeiro dos artistas do cinema nacional.[5][5] Há menções a "saudades" que Carmen, segundo o artigo, nebuloso, sugere, sentiria... de Portugal. Para Alice Gonzaga, filha de Adhemar e atual mantenedora da Cinédia, atribui a misteriosa interrupção a um tombo que Carmen Santos, 'grávida à época', teria levado'[6][6]. Cinearte, grave, volta ao assunto: "A conselho medico, Carmen Santos, cujos esforços em Sangue Mineiro a deixaram excessivamente nervosa, dará um passeio à Europa. Desistindo assim de continuar filmando".

 

Fim da Phebo - Inicio da Cinédia

A arrecadação de Sangue mineiro (Humberto Mauro, 1928), última produção de Mauro em Cataguases, havia arrefecido os ânimos dos principais sócios, Agenor de Barros e Homero Domingues.[7][7] A produção de cinema em Cataguases, a partir daquelas bases, e com as condições de distribuição vigentes, revelava-se uma atividade perdulária.

No Rio de Janeiro, Adhemar Gonzaga expandia das paginas de sua revista Cinearte para a construção de um estúdio suas relações com o cinema. Embora, no inicio do Cinearte Studios, dirigisse dois filmes (a primeira versão de Lábios Sem Beijos e Saudade), sabia que outras eram suas aptidões, como atesta carta enviada de Hollywood para Mauro: "Voltarei cheio de coragem mas não sei si voltarei a dirigir. Sempre senti que isto não me..." [8][8] - A palavra que falta, indecifrável no original, é dispensável para compreensão da mensagem.

Assim, com as dificuldades econômicas da Phebo, e a necessidade de um realizador tarimbado no Cinearte Studios, Mauro, mais promissora descoberta do intercâmbio de Cinearte com os realizadores brasileiros, realizador de quatro filmes de enredo nos últimos anos, ouvinte atento dos conselhos de Gonzaga, seria cooptado para os novos estúdios que se erguiam em São Cristóvão.

Em fevereiro de 1930 a vinda de Mauro para o Rio, para dirigir Lábios Sem Beijos estava acertada.[9][9] Mas a paralisação da Phebo se protelaria na imprensa: "Cataguazes ainda tem a Phebo, que possue seu Studio, do qual tem sahido sem parar uma producção atraz de outra. Mas, parece que apezar de toda sua actividade, "Ganga bruta" só será produzido no Rio, aonde existe mais facilidade de filmagens. Conservará, entretanto, seu Studio, para scenas de interior e outras que requeiram ambientes sertanejos e do interior".[10][10] No mesmo artigo, Pedro Lima informa que Octávio Gabus Mendes vem ao Rio dirigir Lábios Sem Beijos (sendo que Mauro, doze dias após a revista chegar às bancas, iniciaria as filmagens).

A paralisação da Phebo só é anunciada, por Pedro Lima, em fins de abril de 1930: "A Phebo está paralysada. O seu Studio está fechado e quasi abandonado. Estão lá todos os seus departamentos, palcos, laboratórios, escriptorios, sem a actividade de um cerebro ou de u'a mão."[11][11]

Duas semanas depois desse artigo a coluna de Pedro Lima desaparece de Cinearte. As duas páginas tradicionalmente reservadas ao cinema nacional seriam assinadas, no número seguinte - e só nele, deixando, em seguida, de serem assinadas, e passando a permitir, pouco a pouco, pequenas notas sobre cinema internacional - por Mary Doran, que explica a mudança de nome de Cinearte para Cinédia em razão das confusões que a coincidência de nomes causava à correspondência da revista.

 

A chegada de Mauro ao Rio

Humberto Mauro mudou-se para o Rio de Janeiro na primeira quinzena de março de 1930.[12][12] Talvez os foliões mais renitentes ainda entoassem "taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim..."[13][13], o sucesso de carnaval que lançou Carmem Miranda ao estrelato, mas desde a virada do mês, com a eleição de Júlio Prestes, uma tensão tomava conta do ar. A Revolução de 30 estava a caminho.

Mas outras revoluções se desenhavam. O homem atravessava uma fase integralmente política da história da humanidade.[14][14] Fogões a gás, geladeiras e ferros elétricos permitiam maior tempo de lazer às mulheres, que começavam a povoar o mercado de trabalho, em postos subalternos. O feminismo se articulava, as saias subiam, as reivindicações se expandiam. De certo modo, é também desse mundo em transformação que Lábios Sem Beijos fala.

A chegada de Mauro foi saudada em um artigo de Octavio Gabus Mendes: " 'Lábios Sem Beijos' vai revelar um Humberto Mauro de casaca... elle, agora, vae mostrar que tambem sabe fazer idyllios modernos. Scenas modernas; Todo moderno!... Soneto em forma de cimento armado..."[15][15]

Mauro tinha 33 anos, e era, "sem sombra de dúvidas, o profissional mais completo do cinema brasileiro..."[16][16] Lábios Sem Beijos representava mudança de local de produção, de temática, de condições de trabalho, de situação empregatícia. O autodidata do interior era agora funcionário da Cinédia.

Os estúdios ainda estavam em construção, e assim permaneceriam durante todo o tempo em que o filme foi rodado. A 20 de março de 1930 começaram as filmagens.[17][17]

 

A equipe técnica

Humberto Mauro, além de dirigir, é o responsável pela fotografia, a mais equilibrada dos filmes por ele fotografados até então, porém longe de alcançar o resultado que Edgar Brasil, melhor fotógrafo de cinema brasileiro da primeira metade do século, obtivera em Braza dormida. Corno assistente de direção trabalhou Francisco Barreto, e como operador de câmara, Máximo Serrano. O ator, no qual Paulo Emílio reconhecera "um tom verdadeiro e brasileiro que nosso cinema provavelmente ainda não conhecera"[18][18], não repete atrás da câmara suas performances à frente dela: comete alguns movimentos excessivamente bruscos e treme demasiado com a câmara na mão.

A produção ficou a cargo de Adhemar Gonzaga, responsável também pelo argumento e pelo roteiro. Paulo Emilio afirma que Mauro também teria trabalhado o roteiro.[19][19] Ana Lúcia Lobato, responsável pelo capitulo que abarca o ciclo de Cataguases no livro História do Cinema Brasileiro, organizado por Fernão Ramos, afirma que Mauro assumira o filme "desenvolvendo o roteiro apenas esboçado por Adhemar"[20][20]. A proverbial incapacidade de Adhemar de finalizar os roteiros que se propunha a escrever reforça tal hipótese, embora esta não seja confirmada por nenhuma das outras fontes da pesquisa - e nem pelo próprio Mauro. Talvez se trate, porém, de um mal entendido. Mauro diz, em entrevista,[21][21] que Gonzaga "tinha os papeis com as seqüências" e que "eu tinha as seqüências todas imaginadas pelo Gonzaga". Porém, na mesma entrevista, diz que sempre imaginou o seguinte: "dividia-se o argumento em seqüências [o que hoje seria o roteiro];"... "e o desdobramento das seqüências em planos de filmagem eu chamava cenário [hoje se chamaria decupagem]".É possível que Paulo Emílio tenha ouvido do próprio Mauro, nos muitos contatos com o cineasta para elaboração de seu livro, que este participara da feitura do roteiro, quando ele se referia, na verdade, ao que hoje denomina-se decupagem (talvez Ana Lúcia Lobato tenha se baseado nessa versão). Portanto parece haver uma confusão relacionada à significação de alguns termos, cuja análise parece apontar para a possibilidade de que Gonzaga tenha sido o autor do roteiro - não havendo dúvidas quanto a possível autoria da decupagem pertencer a Humberto Mauro. Porém as partes em questão não permitem conclusões.

O filme foi revelado nos estúdios de Paulo Benedetti, fotógrafo ligado ao grupo de Adhemar Gonzaga, que cedeu ainda equipamentos e negativos. Figura por décadas atuante no cinema brasileiro, foi um pioneiro das pesquisas com cinema sonoro no Brasil, tendo inventado a cinematrofonia, sistema primitivo que permitia sincronizar imagens a uma pianola. Utilizando-se do método, realizou, em 1915, Uma transformista original.[22][22]

O desenho dos créditos iniciais, de forte inspiração modernista, ficou a cargo de Arlindo Mucillo.

No setor curiosidades, embora as pesquisas não revelem o nome das maquiadoras, informam que a primeira venda da marca Max Factor ao Brasil foi destinada a Lábios Sem Beijos.[23][23]

 

Elenco

A personagem representada por Lelita Rosa, como se fazia com freqüência na época em relação aos papéis principais, tem o mesmo nome de sua intérprete (assim como os de Paulo Morano, Didi Vianna, Gina Cavallieri e Tamar Moema). Lelita está a maior parte do filme em cena, já que é a partir dela que se desenrola o interesse dramático maior do filme, seu amor por Paulo Morano. A atriz, que o próprio Gonzaga sugerira a Mauro, dizendo ser "boa porque esta disposta, tem agora muitos vestidos, é camarada e nem quer ganhar"[24][24] [eis o padrão de produção da Cinédia...], embora não tenha um desempenho comprometedor, tende a exagerar na gesticulação. Sua beleza exótica é desfavorável em determinadas tomadas, mas transborda personalidade no papel.

Paulo Morano, o galã, estava, assim como Lelita e Gina, entre os nomes elencados para Barro Humano, além de ter filmado algumas cenas da primeira versão de Lábios Sem Beijos. É, entre os galãs dos primeiros filmes de Mauro, o de melhor presença física, mas a pouca expressividade, que por vezes transmuta-se em canastrice, nivela por baixo a atuação.

Didi Vianna, que Pedro Lima trouxera de Ipaussu, sertão paulista, faz o papel de ingênua, originalmente escrito para Eva Nil, a estrela de Cataguases que impressionara vivamente Salles Gomes e cujos filmes em que atuou não existem mais (entre eles, Na Primavera da vida, Humberto Mauro, 1926). Eva não podendo desempenhá-lo, seguiu-se uma odisséia: "Marisa Torá... chegou a se maquillar, mesmo. Mas num dia em que diversas circumstancias impediram que houvesse filmagem. Logo depois ficou noiva e, naturalmente, deixou a tela para sempre... Yolanda Bernardi, que está com um importante papel em Limite, hoje... Yara Dazil, de Piloto 13, de São Paulo... Muitas, muitas outras foram pensadas... [e o papel] foi ter às mãos de Leda Lea, que chegou, mesmo, a ser filmada." [25][25] Com a saída de Carmen Santos, Mauro assume o filme. "[Ele] escolheu Estella Mar, que, consultada, apresentou razões que a impediam de acceitar o papel... Esteve considerada Diva Tosca, estrella do filme As armas, de São Paulo, que afinal, tambem não poude ficar com o papel...". "Foi ahi que foi lembrada Didi Vianna..."

Didi tem uma atuação quase irrepreensível, aparentando ter total controle sobre sua expressividade. Supera as armadilhas estereotipantes do roteiro compondo uma personagem que transmite intensa vida interior. É o grande-destaque do elenco.

Gina Cavallieri tem a mais irregular atuação do filme, oscilando momentos de desempenho convincente com outros de evidente equivoco, dando mostras dos riscos da amadora política de estrelas da revista Cinearte.

O papel de Dona Perpétua, a senhora cujo moralismo hipócrita atormenta Lelita Rosa e tangencia o humor, havia sido originalmente escrito para Luisa Valle, atriz de fama estabelecida nos teatros da Praça Tiradentes, que viria a falecer antes de Humberto Mauro iniciar as filmagens. Sua substituta, Augusta Guimarães, fotogenicamente adequada ao papel, tem uma atuação correta.

Tamar Moema, que estrearia no interrompido Saudade com o papel de uma "menina educada num collegio religioso, que se faz mulher e vive para amar aquelle que sempre foi o principe encantado de suas ilusões. E soffre de amor. Resignada. Sem uma queixa mesmo quando descobre que é a sua melhor amiga quem lhe rouba a affeição tão querida...", compõe, em Lábios Sem Beijos, um tipo oposto, a liberada e provocante Tamar. Sem contar o breve momento no qual lança o olhar diretamente à câmara, tem uma atuação convincente, transmitindo a malicia e sensualidade da personagem.

Alfredo Rosário, como o tio de Lelita, demonstra a fluência de um ator tarimbado, com domínio do timing de cena. Consegue trabalhar a rabugice do personagem com doses nunca excessivas de humor.

Renato Oliveira, como o datilógrafo do tio de Lelita, desempenha um tipo cômico com algumas semelhanças aos que Rosendo Franco (com quem é muito parecido fisicamente) encarnou nos dois filmes anteriores de Mauro, porém com área de ação bem mais limitada.

A pequena participação de Décio Murilo, ao final, como o noivo de Didi, revela um galã com potenciais interpretativos bem superiores aos concorrentes.

Máximo Serrano é subaproveitado como o apaixonado de Gina, mas nos poucos segundos em que atua, rouba a cena, combinando expressividade natural e carisma.

Ivan Villar, como o assaltante de Lelita, é talvez o destaque entre os coadjuvantes, com expressividade fisico-facial acima da média.

Completam o elenco:[26][26] Adhemar Gonzaga (o atropelado); Humberto Mauro (o malandro); Leda Lea (tapa os ouvidos à janela, no inicio do filme); Carlos Eugênio e Celso Montenegro (extras na festa de Gina); Carmen Violeta (extra, fumando na festa de Gina); Luiz Gonzaga Martins (aparece cargalhando); Fernando Lirna (asssaltante que foge); lz Ramon (violinista); Martins Kito (dançarino); Antonio Paes Gonçalves (motorista bigodudo), Godofredo Queiroz (homem quase atropelado).

 

Sinopse

O enredo de Lábios sem beijos está plenamente de acordo com a cobrança por histórias leves, urbanas, recheadas de juventude e flertes que Adhemar Gonzaga reiteradamente fazia a Humberto Mauro, desde o inicio da relação de amizade e influência do representante de Cinearte corn o diretor mineiro, cujos primeiros sintomas  já se faziam sentir em Braza dormida (1928), intensificando-se em Sangue mineiro (1929) [27][27].

Lelita Rosa é uma jovem impetuosa e rebelde que envolve-se com Paulo Morano, um homem que conhecera por acaso, ao pegarem o mesmo-táxi em um dia de chuva. Ao reencontrarem-se, em uma testa, a irritabilidade do primeiro encontro cede lugar ao romance, oportunidade para Humberto Mauro desenvolver elaborados idilios.

Porém a prima de Lelita, a tímida e recatada Didi Vianna, fora deflorada por um rapaz também chamado Paulo Morano, que desapareceu. A confusão de homônimos causará desconfiança e tristeza às irmãs, até que o reaparecimento do Paulo Morano (de Didi), salvando-as de um assalto, e disposto a desposá-la, prenuncia o final feliz, com Lelita também voltando para os braços de seu amado, disposto ao casamento.

 

Estrutura de Lábios sem beijos

O filme se divide em quatro blocos narratives.

O primeiro introduz ambientes e personagens. O Rio de Janeiro urbano e moderno de 1930 é evidencializado como cenário, com o progresso traduzido em avenidas por onde trafegam automóveis e bondes elétricos. Lelita Rosa é apresentada como uma jovem romântica e geniosa. Dá-se, em circunstância desagradável para ambos, o encontro entre ela e Paulo Morano.

O segundo bloco fornece a motivação básica da trama, passando a desenvolvê-la. praticamente todo dedicado ao envolvimento entre Lelita e Paulo, do momento em que se reencontram na festa de Gina, passando por longos idílios nos quais o amor não se consome, até a noite em que deixam de ir ao baile e beijam-se pela primeira vez.

No terceiro bloco, um elemento complicador se impõe. Lelita chega em casa e depara-se com uma Didi desolada pelo sumiço do futuro noivo (também chamado Paulo Morano). Instala-se a tristeza e a confusão. Neste bloco incluem-se a punição de Gina, a tentativa de Morano de se reaproximar de Lelita, e as primas indo ao encontro dele para obrigá-lo a casar com Didi.

O quarto soluciona mal entendidos, promovendo o final feliz. Surge, com intenções casamenteiras, o noivo de Didi, desfazendo o mal entendido e permitindo a reaproximação de Lelita e Paulo Morano.

 

Do titulo

Já no próprio titulo do filme são lançadas pistas sobre as propostas da empreitada inicial Cinédia-Humberto Mauro. O Thesouro Perdido remete ao universo das aventuras infantis, corsários, capa-espada - sugerindo leituras metafóricas relacionadas à perda.

Braza dormida fala de ardência, de intensidade; dos três é o titulo que mais se aproxima de Lábios sem beijos, mas o faz sem se referir diretamente ao sexual - e a oposição "dormida" em relação à "brasa" é menos transitória, constitui menos uma anomalia, posta assim, em um título, do que "Lábios" sem "beijos".

Sangue mineiro diz respeito, entre outros, à raça, à gana de um determinado povo; permite especular sobre a dor e as perdas de pessoas demarcadas por uma região ou por uma origem. Lábios sem beijos, no entanto, oferece como leitura primeira a referencia físico-sexual. Ainda que se referindo a uma não-ocorrência, remete diretamente a emissores/receptores sexuais anatomicamente privilegiados, os lábios, e a caricia-gênese primordial da prática sexual ocidental, o beijo.

De fato, durante o filme, importará sobremaneira, quase que exclusivamente, o resultado dos jogos amorosos/sexuais. Ao contrário dos filmes anteriores de Mauro, não será oferecido ao espectador nenhuma informação minimamente relevante sobre ocupação, objetivos, interesses dos personagens, que não esteja intrinsecamente ligada à trama amorosa. Os vilões deixam de ser antagonistas constantes de heróis para tornarem-se pretexto para reafirmação dos galãs. Mesmo os valores individuais dos personagens só serão revelados em função da sexualidade (a preocupação do tio com Lelita, no começo, e mesmo Morano se contendo ante a amada ao ver uma cruz - único momento que outro valor que não o sexual (no caso, o religioso) se sobrepõe - são implicações diretas da conduta ditada pela libido dos personagens). Como assinalou Inácio Araújo (referindo-se ao cinema de Humberto Mauro): "Na iminência de uma tragédia organizada sempre em tomo da tensão entre sexualidade e cultura... A irrupção do desejo sexual como constitutivo do drama, da beleza e da miséria humanos.[28][28]

 

Linguagem narrativa de Lábios sem beijos

 

Créditos iniciais

Os créditos de abertura, de grafismo modernista, prenunciam a atmosfera dinâmica, jovem, progressista, que o filme tentará compor.

Um letreiro, "esta historia podia ter-se passada em Londres, mas para fugir ao nevoeiro, resolvemos filmal-a no Rio... apesar da chuva...", diz muito sobre a roupagem de produto cosmopolita com que a Cinédia procura revestir o seu produto. Em pleno acordo com a ideologia da revista Cinearte, ressalta tanto o caráter "primeiro-mundista" da história (e do próprio filme), quanto aproveita para uma blague sobre a opção por fazer o filme no Brasil ("resolvemos filmal-a no Rio").

 

1o. bloco - Introdução

Uma seqüência de dezoito planos introduz o espectador numa tempestade prestes a cair sobre o Rio de Janeiro. A câmara acompanha. em plano fechado, papeis arrastados pelas ruas. Em melo a essas imagens, a pequena história de um chapéu levado pelo vento para debaixo das rodas de um automóvel, para desespero de seu portador. Vê-se o tráfego, já intenso à época, e amplos pianos gerais da cidade sob chuva. Distingue-se a Avenida Central, o Outeiro da Glória e a extensa faixa de mar à sua frente. Destaca-se a montagem, contextualizando lugar e situação com ritmo e fluência.

A aparição da figura abobada de um homem cantando à janela, para desgosto de sua jovem co-habitante (em outra janela), introduz o humor. Como os demais personagens que têm função unicamente cômica no filme (o motorista de táxi, o datilógrafo) este só aparecerá em uma seqüência. Surge, então, o primeiro problema. O prólogo, da cidade sob chuva, foi claramente percebido pelo espectador como introdutório de lugar e situação, e a introdução de um personagem, fora do contexto inicial, em outro ambiente, praticando urna ação, o insere como iniciador de uma trama que na verdade não ocorrerá. Ele está destinado tão somente ao número cômico à janela, embora a atenção do espectador espere, em vão, pelo seu retorno. Mauro volta à chuva e à cidade, mas é tarde demais: a duração e a natureza da seqüência anterior não permitem que o espectador a insira tão somente como parte do prólogo contextualizador.

Em uma tornada exótica, trilhos de bonde em enquadramento fechado formam um estranho desenho de paralelismo geométrico na tela, antes que os pingos de chuva permitam ao espectador compreender do que se trata. Se assemelha a certos enquadramentos de uma obra-prima da fase experimental (pré-realista) do documentarista holandês Joris Ivens, Chuva (Regen, 1929). Não é impossível que Mauro tenha visto o filme antes das filmagens, embora a dezena de meses que as separam de Chuva finalizado tome as chances mínimas.

Em seguida, a câmara concentra-se em um mecanismo de roldana que aciona o toldo de cobertura de uma loja, primeiro de uma série de engenhos (máquina de escrever, telefones, buzinas, volantes, automóveis, relógios) focalizados com destaque pela narrativa. O futurismo e o progresso, no Rio de Janeiro, em equivalência - e oposição - ao bucólico e atemporal dos animais e crianças da fase de Cataguases.

 

2o. bloco - Apresentação de Lelita Rosa.

O plano-detalhe de uma mão batendo nervosamente em uma mesa introduz a seqüência seguinte. Dedos datilografam uma máquina de escrever. Um senhor, visto de costas, gesticula, enérgico, com uma mulher que, à sua frente, lê uma revista. O contraplano nos introduz a matéria da leitura: "A maior história de amor...", ilustrada com a foto de um galã. Em quatro planos rápidos, Mauro fornece o subsidio para compreensão da atmosfera e da essência da ação desenvolvida na seqüência. Ainda não foi dado ao espectador conhecer o personagem, cômico, do datilógrafo, mas a imagem de suas mãos tamborilando o teclado serviram para acentuar a perturbação nervosa do ambiente.

O embate entre o moralismo repressor do tio e a futilidade enamorada da sobrinha se dará em plano/contraplano, ele focalizado sempre em close ou em plano americano, ela em diversos ângulos, alguns exóticos. A inserção do datilógrafo vivido por Renato Oliveira tempera, com seus dentes excessivamente proeminentes, o diálogo com comicidade: fascinado pelas pernas de Lelita (a parte abaixo do joelho - ainda assim além do limite de permissividade da época) deixa-se distrair, batendo teclas a esmo (a câmara se demora no papel à máquina para que o espectador encontre os erros de datilografia) e chocando o nariz contra a máquina.

"Não há moça que tenha mais liberdade que você! É preciso tomar juízo!" - o primeiro letreiro revela ao mesmo tempo a preocupação do tio e a (relativizada pela própria ocorrência da discussão) liberdade que a sobrinha desfruta. Lelita enerva-se, levanta, protestando, com gestos e expressões faciais exagerados (uma tendência da atriz, que se repetirá diversas vezes), com uma atitude revoltada que manterá ao longo da discussão. Sal pelo lado direito da tela (com a montagem demorando-se demais no corte e causando uma sensação de estranheza visual), para em seguida ser vista em um piano de conjunto no qual ocupa uma pequena porção da tela, a câmara colocada em diagonal no canto direito da sala - ângulo inusitado, porém desfavorável à baixa estatura de Lelita.

À figura do tio é dado tratamento cômico, a gravata borboleta e os largos óculos redondos contribuindo para o tom caricatural que o falar ritmado e a tendência a arregalar os olhos acentuam. Ao final da cena, após a saída de Lelita ter sido indicada através dos olhares do datilógrafo e do tio acompanhando-lhe os movimentos,[29][29] este tenta repetidas vezes, em vão, acionar um isqueiro. Desiste de fumar, jogando isqueiro e cigarros longe, cena que torna explicita sua comicidade. Tal tratamento relativiza a seriedade da discussão e torna claro ao espectador as reais intenções da seqüência: apresentar os interesses, o gênio e o fascínio de Lelita.

 

Três detalhes técnicos chamam a atenção ao final da seqüência: durante a cena do isqueiro a face do tio é subitamente iluminada por uma luz, que forma uma espécie de lua crescente no fundo negro da imagem; em seguida, o tio sai pelo lado direito da tela, há um corte, com pulo de campo (o eixo permaneceu o mesmo, a lua crescente ao fundo da imagem confirma); o tio retorna, pelo lado esquerdo, ao mesmo cenário de onde acabara de sair. Esse incompreensível encadeamento serve a um monólogo que visa manter ilibada a honra de Lelita: "Esta minha sobrinha d uma boa menina, mas está me fazendo criar cabelos brancos!" A seqüência se encerra com um despropósito: vê-se um plano geral do Rio de Janeiro e, olhando para um retrato de D. Pedro II, o tio conclui: "Como progride o nosso Brasil, hein amigo Pedro?" A cena serve ao humor involuntário - e a especulações sobre possíveis interesses políticos ocultos sobre patriotismo tão postiço.

 

3o. bloco - Apresentação de Paulo Morano

A seqüência se inicia com sapatos femininos (símbolo da sedução explorado com insistência por Humberto Mauro no filme, focalizados nos pés de Lelita na seqüência anterior e na seqüência em que ela volta do encontro noturno com Paulo Morano) sendo balançados per pernas entrecruzadas; movimentando-se para cima, a câmara enquadra a cintura de um homem em pé, ainda com as pernas da mulher em primeiro piano; detém-se per alguns momentos para, em seguida, acompanhando o trajeto do homem, movimentar-se até enquadrar o resto de uma mulher, com expressão risonha e sapeca. Em seguida fará um movimento circular em torno da cabeceira da mulher, durante o qual a atriz aproveita, inadvertidamente, para lançar um olhar direto à câmara.

A cena entre os dois amantes se desenrolará com uma elaborada decupagem que inclui movimentos de câmara ousados para o cinema brasileiro da época, executados com razoável resultado técnico. A função da seqüência em termos dramáticos não é bem resolvida. Introdutora do personagem Paulo Morano na trama, perde a oportunidade de apresentá-lo com nome ao espectador, no único letreiro em que Tamar Moema, a mulher, se dirige a ele. Tampouco as falas de Morano acrescentam informação relevante. Na primeira diz: "Tudo foi apenas uma aventura, Tamar", e na segunda: "Este negócio de paixão é para os trouxas". Confere uma masculinidade desiludida ao galã[30][30], e pode, com Morano demonstrando aversão ao envolvimento amoroso, funcionar, posteriormente, como elemento autentificador de seus sentimentos para com Lelita Rosa. Mas em urna cena longa e coreografada, com o agravante que a câmara permanece a maior parte do tempo em Tamar (que em seguida desaparecerá do filme), exigir tal grau de atenção do espectador ao mesmo tempo em que se desperdiça oportunidades preciosas de introduzir o gala de forma adequada soa contraproducente.

Melíflua, sedutora, Tamar não leva a sério as palavras de Morano, debochando: "Gosto mais de você quando está zangadinho..." Ele sai, enquanto ela canta e dança, alegre. Ao espectador de hoje é exigido um certo grau de abstração para que assimile a caracterização da personagem de Tamar Moema como uma mulher mundana - e as implicações de tal caracterização. A simples presença de um homem em quarto de mulher solteira, em 1930, constituía escândalo. Porém, a utilização de tal recurso para contrapor Lelita Rosa como uma "opção idônea" é algo que parece hoje - pareceria à época? - extremamente frágil em termos dramáticos.

 

 

4' bloco - Lelita Rosa e Paulo Morano encontram-se no taxi.

Após um belo piano geral do centro do Rio, com o Teatro Municipal claramente distinguível, adentram o banco traseiro de um veículo Lelita Rosa e, em seguida, pela outra porta, Paulo Morano. Dá-se a discussão: "Este táxi é meu! O sr. saia daqui!" Morano enfrenta uma irritada Lelita: "Não vi que estava ocupado. E impossível descer com esta chuva. Vou para perto." Humberto Mauro diversifica enquadramentos, trazendo interesse ao trajeto: a chuva vista da janela do carro em movimento, close do volante, piano com todo o vidro frontal enquadrado, o carro em movimento visto de fora, o motorista (que, com um bigode postiço grotesco tende a provocar risos no espectador), além, é claro, de pianos dos passageiros, Morado se insinua com sorrisos para uma irredutível Lenita: "Pare naquela esquina. Quero apanhar o meu carro. Este atrevido você leve para o inferno" [note- se a distinção social através do tratamento oral: para o desconhecido que adentra o veiculo, Lelita utiliza "o senhor", para o taxista, "você".] O porquê de Lelita, tendo saído da casa em que mora, tomar um táxi, percorrendo um trajeto considerável, para apanhar seu próprio carro jamais é esclarecido.

 

5' bloco - Dona Perpitua na casa da prima - introduqdo de Gina.

Demarcando a divisão de seqüências e pontuando a narrativa uma tomada, com a câmara oscilando em movimentos disperses, da Cinelândia vista a partir de uma pilastra do Teatro Municipal.

Lelita adentra uma casa, sendo dado ao espectador observar, a partir do interior da sala, um carro parado d porta e a chuva caindo na rua. Uma mocinha introduz a personagem mais velha, ao seu lado: "Dona Perpétua ainda está aqui por causa da chuva..." O diálogo entre Lelita e as ocupantes da casa dá-se em planos/contraplanos nos quais a direção dos olhares dos interlocutores transmite inverossimilhança espacial ao espectador - e a nítida impressão de que as partes em diálogo não se olham corresponde à perda da capacidade ilusionista (o espectador tende atentar para o artifício fílmico). Além disso, enquanto ao redor de Dona Perpétua e a amiga há cenografia condizente com uma sala de estar, Lelita é focalizada contra um fundo negro, gerando evidente contraste.

A apresentação da jovem é oportunidade para Dona Perpétua reforçar a imagem inicial de Lelita: "Mas você também, Lelita, é levada! Por que não é sossegada como a sua priminha?" Vestida com desleixo e desajeitada, com uma falha na dentição colaborando para piorar a aparência, D. Perpétua segue, pretensiosa: "Mas como é que eu ando sozinha e os rapazes não mexem comigo..." "De táxi é que eu não viajo, tenho medo de que o chofer me falte ao respeito..." Um empregado, vestido de summer jacket, traz um recado para a dona da casa, que se retira, enquanto Dona Perpétua atenta para um tipo em roupas improváveis, chapéu preto, óculos escuros e bigodes, que, da rua, lhe faz gestos convidativos. Um pulo de campo, com um corte dentro da mesma cena, acompanha a reação da senhora, que sorri, pedindo-Ihe que aguarde, enquanto, antes de sair, finaliza com Lelita: "Já é noite. Moças como nós não devem se expor também tanto assim..."

A dona da casa fora solicitada para atender um telefonema, que introduz - já tecendo comentários sobre sua índole - uma nova personagem. A chamada era para a prima Lelita: "É a Gina. Você precisa deixar dessas amizades...". "Papai deve ter razão quando fala dela".

Gina, espevitada, convida: "Amanha vou dar uma festinha em meu apartamento. Não quero que você falte!" Mauro explora o diálogo ao telefone alternando imagens das interlocutoras, em close, de corpo inteiro (Gina deixa entrever o joelho...), buscando inovar, com a câmara em um quarto contíguo, acentuadamente inclinado em relação ao chão, focalizando Gina no outro cômodo, emoldurada pelos batentes da porta. Basta a expressão facial de Gina para deduzir que ela, como se dizia à época, é "da pá virada". Ao final, pianos detalhes dos telefones sendo desligados, e o lento espreguiçar de Gina, não sem intenções demoradamente denunciado ao espectador.

 

6' bloco - A festa na casa de Gina - o reencontro com Paulo Morano.

Os homens de smoking e as mulheres em vestidos elegantes informam que a festa na casa de Gina já se desenrola. Em uma varanda, em frente a um belo jardim, Lelita Rosa, que conversava com um homem, depara-se com o rapaz que conhecera no táxi. O fato de Paulo Morano estar correndo (brincando com uma moça) no momento do encontro, se por um lado oferece um tempo mínimo para o reconhecimento mútuo, fazendo este beirar a implausibilidade, por outro confere um adequado dinamismo à cena.

A fotografia explora com requinte as figuras humanas em contrate com a luz natural que vem do jardim - na verdade um parque, com exuberante vegetação, cenário sob medida para os idílios amorosos dos filmes de Mauro. Uma extensa escadaria rodeada de plantas vista em profundidade de campo, as águas de uma fonte formando uma cortina translúcida em primeiro piano, profusão de árvores em harmônica composição - Humberto Mauro estava em seu habitat cinematográfico, a natureza, e o evidente prazer em explorar as possibilidades da locação contagia o filme, que atinge seu mais plástico momento.

Após o rápido reencontro, Paulo Morano se vai. Lelita dispensa seu interlocutor e sai caminhando pelo parque.[31][31] O encontro dá-se em meio à bucólica paisagem. Curiosamente, o primeiro gesto de Lelita é tirar um cigarro da boca de Morano, atirando-o longe - anti-tabagismo avant la lettre?

Sentados em uma pedra, a mão de Lelita repousando sobre o joelho de Morano, o casal ensaia um beijo, mas a tentativa de Morano de beijá-la a faz saltar, virar as costas e se ir. Vê-se, então, uma mulher ao longe, de costas, procurando alguém. O espectador dificilmente se certificará de ter identificado Gina, nem mesmo quando ela reaparecer em cena, momentos depois, encontrando-se com Lelita e perseguida por um Maximo Serrano, que confirma, no pouco tempo que fica em cena - e em enquadramento prejudicado - sua natural expressividade dramática.

Enquanto Lelita era procurada por Gina, Morano a cercava junto às grades de um caramanchão vertical: "Só a deixo sair se você me der um beijo!" Lelita luta temperando seu pouco empenho com alguma coqueteria. A câmara explora bem os dois lados do caramanchão, o casal à frente e atrás das grades repletas de ramagem. Morano a beija, no rosto, rapidamente, e momentos depois a vemos caminhar[32][32], sozinha. Morano, sozinho, faz anotações em um caderno de bolso...

 

7' bloco - D. Perpétua visita Tio Oliveira

O mais gratuito dos blocos, sem relevância para o desenvolvimento dramático. D. Perpétua, em visita a Tio Oliveira e A Didi, queixa-se: "Depois de dez anos de noivado, abandonou-me e devolveu até meu retrato. Logo agora que ele estava enxergando melhor." - por mais que outro fosse o grau de percepção das platéias de 1931, a inaptidão de Adhemar Gonzaga para o humor atinge aqui seu mais evidente momento.

Tio Oliveira solicita a Didi: "Vá desligar o rádio lá dentro. Já temos muito barulho aqui. Para que buscar mais em São Paulo". O radio era certamente um ícone de progresso e do status das famílias, no inicio da década que assistiria ao surgimento do primeiro grande veiculo de comunicação de massas brasileiro, a Rádio Nacional. Nada disso, no entanto, justifica tal menção.

A dita fotografia de D. Perpétua é (precariamente) oferecida à visão do espectador, sem que permita a assimilação do humor insinuado. A câmara acompanha, em movimento lateral mal executado, tremido, a senhora levantar-se para urna longa conversa com Didi, na qual praticamente só D. Perpétua fala, sem que o espectador compreenda nada do que é dito - uma oscilação brusca na imagem acentua a impressão de que falta um letreiro nessa seqüência.

Didi Vianna, como a interlocutora em visível esforço para mostrar-se cordial, confirma sua expressividade natural.

8o. bloco - Os amantes a sós - idílios.

Lelita Rosa e Paulo Morano estão novamente em um cenário natural, arborizado. Morano insinua caricias, motivo para Lelita sair correndo, provocando jogos de perseguição. A seqüência remete à perseguição entre o casal de Ganga bruta (1933), na qual um vestido rasga-se, desnudando um palmo de coxa (provocando escândalo à época).

A câmara desvela, em panorâmica, uma vasta área de montanhas e mar, mas a imagem é prejudicada pela luz intensa. Lelita parece fascinada com a paisagem, mas Morano não se deixa enganar: "Não disfarce com a paisagem. Você está é com medo de mim!" Ela gargalha, debochando e, mesmo sem letreiro para a primeira frase, são plenamente compreensíveis suas palavras ("Medo de você?")... "Não tenho medo de coisa alguma!" O desmentido vem em seguida, com Lelita, após mais um pulo de campo, apavorando-se ante a passagem de um roedor de médio porte. A câmara dispensa dois takes ao primeiro animal de Lábios sem beijos.

Enquanto Morano afugenta o bicho acertando-lhe um 'coquinho' (sem truques - a fruta realmente acerta o corpo do animal), Lelita, apavorada, refugiada em uma raiz mais alta, tenta desesperadamente subir em uma árvore, vindo a espatifar-se no chão (a cena filmada com os braços soltando-se do tronco da árvore, para em seguida Lelita ser mostrada no chão). Morano acaricia partes da perna e do braço feridas no tombo, acabando por beijar Lelita, que, ainda uma vez, se esquiva.

Após uma passagem em fade, Lelita e Morano são mostrados em uma praia, ela de maiô e touca, ele de bermuda e camiseta regata. Trata-se de outro dia, mas continuam os idílios, a passagem de tempo não justificando mudança de bloco. Vêem-se corredores e atletas. Maximo Serrano exibe seus músculos a Gina, que pede que ele lhe apalpe as coxas, a fim de confirmá-las firmes. Ele hesita, pudico. Morano, que subira com Lelita uma construção que leva às copas das árvores, conversa, lá de cima, com Gina, que ao vê-lo manda Maximo ir embora. A dúbia Gina lembra a Morano, antes de se despedir: "Diga a Lelita que não se esqueça do baile amanha!" Lelita canta e dança, antes de começar a posar para Morano, que com uma câmara na mão focaliza algo [note-se o ousado experimento metalingüístico] que as imagens mostram, mas que o espectador não decifra.[33][33] Lelita, graciosa, pede uma pausa para ajeitar o maiô, oportunidade para Mauro se deter no corpo da estrela - em suas coxas, sobretudo - no clímax erótico do filme, sem dúvida ousado para a época.

Lelita, em seguida, é mostrada em um vestido de noite, se maquiando em frente ao espelho, antes de ser vista, em um enquadramento requintado, através das aberturas em forma de janela do interior da casa, descendo as escadas. Mauro explora com inteligência o dilema da espera: no volante de um carro, a mão avança em direção à buzina, hesita, desiste de acioná-la; vê-se Lelita fechando a porta. [O filme apresenta, durante as cenas do casal no carro, seu único trecho de considerável deteriorização química, com prejuízo às laterais da imagem.] Ainda no carro, demoram-se na troca de olhares. Morano propõe: "Vamos desistir deste baile? Preciso multo falar com você..." Lelita consente, se aconchegando ao abraço.

O casal passeia no parque, abraçados, em cenas claramente filmadas de dia, simulando noite. Junto a uma árvore, em um típico idílio maureano, trocam juras: "Poderei ter confiança? Você gosta mesmo de mim?", pergunta Lelita. Morano surpreende ao datar sua paixão: "Desde aquele nosso encontro no táxi".A expressão do ator enquanto faz essas juras traduz uma máscara patética, terrivelmente engraçada para olhares de fins do século XX, mas denotadora de limitação interpretativa já em 1930. A continuidade de movimentos também apresenta problemas, o rosto de Morano movimentando-se em direção ao de Lelita montado com um plano no qual o rosto está parado. Mas é um detalhe que perde significância ante a excepcional montagem das cenas do beijo, que finalmente ocorre: em close, é visto de quatro ângulos diferentes, com a solução, extremamente moderna para a época, de voltar ao inicio do beijo no segundo plano, retomando a continuidade do movimento nos outros dois.

 

Em seguida é a vez do roteiro fixar no espectador o nome de Morano (fundamental para que se entenda a complicação que a trama está prestes a sofrer), sem nenhuma sutileza e após ter perdido multas oportunidades de fazê-lo. A curiosidade assoma Lelita após o beijo: "Engraçado é que até agora não sei o seu nome todo... Você é Paulo... de quê?" "Morano... Paulo Morano".

Na volta para casa, Mauro concentra-se nas pernas de Lelita, prestes a deixar o automóvel, esticando-se e se contorcendo em resposta ao que o espectador presume serem beijos de despedida.

A seqüência de três idílios, concentradas pelo roteiro, quebra o ritmo ágil que o filme mantém antes e depois delas. As imagens do Rio de Janeiro, que pontuavam o filme, acentuando seu caráter urbano, desaparecem. Cataguases se insinua.

 

9o. bloco - Decepção das primas.

Após ter a felicidade evidenciada por demoradas tomadas de seus acenos de adeus para Morano, Lelita chega em casa[34][34] e encontra a prima Didi desconsolada: "Vim para seu quarto para esperá-la. Não posso dormir!" A decupagem das cenas do diálogo confunde espacialmente o espectador moderno, por não se prender a regras há muito estabelecidas e introjetadas. Didi lamenta-se, mas não é dado ao espectador saber exatamente do que se trata. Lelita pergunta: "Mas quem foi? Como se chama ele?" Ouve a terrível resposta: "Paulo Morano!"

Em frente a Didi, Lelita procura disfarçar a dor, sorri. A atriz consegue um bom desempenho, a dor evidente por trás da tentativa de dissimulação. Em um diva, d vista entristecida. A passagem em fade para uma janela e, novamente em fade, de volta ao diva, demonstra a passagem do tempo.

 

10o. bloco - Paulo Morano busca reencontrar Lelita Rosa.

Em uma mesa de bar, Paulo Morano conversa com Gina: "Eu sabia que a encontrava aqui".O copo de Morano está vazio, o de Gina, com vinho [note-se que durante as poucas aparições de Gina os elementos desabonadores da personagem, ao mínimo detalhe, foram evidenciados]. Com ar de enfado, ela ouve: "Ela não quer mais falar comigo. Não atende telefone nem nada. Isto só pode ser intriga sua".Gina confirma: "Pois fui eu mesmo. Disse que você gostava de mim."

A ambientação do restaurante conta com garçom servindo e outras mesas ocupadas. A encenação é elaborada: Morano levanta-se para contornar as mesas e sair, deixando o quadro temporariamente, pelo lado esquerdo; são enquadradas partes das mesas vizinhas, com Gina, sozinha, vista ao fundo, em profundidade de campo, enquanto apenas a parte inferior do corpo de Morano passa próxima à câmera, movimento seguido pelo olhar de Gina, que o acompanha até a rua, através dos vidros do restaurante. A câmara, na rua, transmute a desolação de Gina, em uma bela composição de quadro, com uma parede de pedras com uma luminária ocupando quase toda a metade esquerda da tela, enquanto os vidros do restaurante, com Gina ao fundo, ocupam a outra metade. Um violinista é visto fornecendo a trilha sonora de sua tristeza. Um casal, em primeiro plano, deixa a mesa para dançar [sendo perceptível, no inicio da cena, o olhar da mulher aguardando a ordem para começar a ação], com a câmara avançando, em um raro, virtuoso e dramaticamente eficiente travelling para frente, em direção à mesa de Gina, que chora, transgressora punida.

 

Na seqüência seguinte, Lelita, penteando-se em frente ao espelho, vira-se e começa a esbravejar, irritada. Pela janela, Paulo Morano assoma ao quarto. Lelita, que já aparecera (na seqüência da decepção de Didi) dormindo com uma sensual camisola, veste um pijama de calças e mangas compridas - preservava-se a personagem principal de um encontro em roupas intimas. Ela gesticula, nervosa, para que Morano, que a agarra pelo pijama, saia. Lelita: "Comigo você não brinca como brinca com as outras... Eu devia saber quem você era quando a vi no apartamento de Gina!" [além do artigo trocado, observe-se que Gina não é poupada sequer pela amiga]. A resposta de Morano é uma pérola de moralismo e humor involuntário: "Você pinta os lábios, pinta o sete, pinta até a alma!" Lelita se defende, fornecendo titulo ao filme: "Meus lábios pintados eram sem beijos quando o conheci!" Morano faz menção de beijá-la à força, porém a imagem de uma cruz, ao alto, em leve oscilar, o faz mudar de idéia - Mauro, com um artifício simples, consegue um efeito eficiente: manipulando a luz que é refletida pela parede branca onde se vê a cruz, dá a impressão de que dela emana um facho de luz sobre Morano (o espectador vê a cena em câmara subjetiva de Morano). Ao fim da cena, na rua, a câmara detém-se longamente nos restos de uma pipa pendurada a um fio da rede elétrica, devendo o espectador compreender que o crucifixo que Morano viu era a sombra das varetas da pipa refletidas na parede da casa de Lelita. Engenhoso, mas possivelmente de difícil assimilação para alguns.

Após pular os muros e sair, Morano é abordado por um tipo de aparência duvidosa: "Bom trabalhinho, hein? Também não há nenhum polícia aqui. Até é vergonha a gente roubar" Morano o golpeia ao chão (em uma agressão mal simulada). A aparição do ladrão, além de servir ao humor de forma razoavelmente eficaz, deixa alertado o espectador sobre a existência de marginais, que retornarão ao final do filme.

 

11o. bloco - Desfaz-se a confusão de hon6nimos: Didi vai se casar.

A imagem de Lelita sentando à direção de um carro corresponde ao inicio da porção final de Lábios sem beijos, ágil e fluente. Lelita chama Didi: "Vamos! Eu sei o que estou fazendo!"

O carro é visto percorrendo pontos diversos do Rio, em cenários que transmitem a impressão de terem sido cuidadosamente escolhidos. Em uma bela tomada, um poste, em primeiro piano, divide a tela, ficando a porção direita, menor, ocupada por uma senhora caminhando de mãos dadas com uma criança, enquanto um bonde avança pela porção maior do quadro; com a aproximação do carro de Lelita, o enquadramento é corrigido de modo a subtrair o poste e concentrar-se no veículo. Vêem-se amplos planos gerais do carro atravessando viadutos, deslizando por desertas vias litorâneas. Durante o trajeto o espectador é informado da gravidade dos atos de Morano para com Didi: "Ele tem que pedir você em casamento hoje mesmo. Antes que titio saiba de toda a verdade."..."Eu sei onde encontrá-lo.", completa Lelita.

O passeio é explorado de diversos ângulos, com uma decupagem inovadora e uma montagem fluente. Alterna-se entre tomadas externas e internas ao carro (além de tomadas externas a partir do carro). A câmara é colocada, voltada para frente, nas laterais do carro, no banco de trás; voltada para trás, focaliza as primas a partir do capô do carro, e o caminho percorrido a partir do banco traseiro; em um enquadramento chamativo, em contra plongée sob o volante, com Lelita sendo vista dirigindo com as copas das árvores formando um fundo em movimento.

Nesta porção final, o filme de ação norte-americano será uma referenda constante, sobretudo no clímax violento, mas também em pequenas inserções: um senhor posta-se no meio da rua, lendo jornal. Lelita freia bruscamente, evitando, por pouco, o atropelamento. A montagem é convincente. A buzina, acionada diversas vezes, não surte efeito. Finalmente, o senhor se digna a desobstruir a passagem, esbravejando: "Você pensa que me pega?" Lelita dispara o palavrório. Qualquer comentário sobre o inusitado e a ineficácia do humor da cena seria redundante.

Em uma curva, Lelita depara-se com três pedestres, andando no meio da rua, vindo a atropelar um deles. Adhemar Gonzaga, o atropelado, pula segundos antes do choque, porém o suficiente para assegurar alguma verossimilhança ao acidente. Lelita, furiosa, protesta, referindo-se ao que carregava um clarinete: "Por que você não tocou esta gaita ai para avisar que estava na frente?" Basta um close no personagem para que o espectador compreenda a natureza marginal de suas atividades. Mancando, ele se aproxima de Lelita, passando a agredi-la.

Surge então, na estrada, em direção contrária, veloz, outro veiculo. A brusca freada antecipa suas inten96es saneadoras. Porém, antes da luta, o galã desconhecido retira as luvas, ajeita o terno, a grava, o colarinho - e refaz o vinco das calças.

Dá-se o confronto. Em um primeiro momento o malandro leva a melhor, mas, como nos bons filmes de ação, a reação do mocinho é implacável. A luta, bem filmada, combina a coreografia dos atores A estudada decupagem, em fluente montagem. Há atenção para detalhes, como a inserção de planos das primas e do terceiro bandido observando a luta, e a fuga assustada deste ao final do combate. O grande achado fica por conta de uma câmara subjetiva do bandido no momento em que leva o soco e cai, a imagem das árvores em volta e de seu combatente se embaralhando em desequilíbrio.

Tão logo o galã se refaz, revela-se a feliz coincidência: Ele abraça Didi e confessa: "Didi?! Você não esperava mais que eu voltasse, hein? É que eu tinha a resolver muitos negócios para casar com você ainda este mês." Com o letreiro aparecendo muito antes de Lelita labiar as palavras correspondentes, a confusão de homônimos se desfaz: "Este é que é o Paulo Morano?" A confirmação de Didi deixa Lelita radiante, descansando, com expressão de alivio, a cabeça no volante do veiculo.

 

12o. bloco - Casais felizes

Com uma pilastra em primeiro piano, vê-se, em plano geral, uma grande escadaria construída em meio à vegetação. Didi e seu noivo juntos em meio à relva. Ela mantém uma expressão sem entusiasmo, conformada, que o penteado convencional e austero colar acentuam, envelhecendo-a. Ouve as juras do noivo: "O meu amor é eterno como o cascatear daquelas águas", diz ele, meneando a cabeea na direção de uma fonte. Dois planos enfocam mãos fechando um registro d'água e, em seguida, a fonte escasseando seu fluxo até a água parar de escorrer. Exemplo das potencialidades da comédia de costumes muda brasileira, a seqüência é um oásis no humor mal ajambrado do roteiro de Lábios sem beijos.

Bois em um pasto se afastam para dar passagem a um autom6vel. Paulo Morano, Lelita Rosa e um cão ocupam o veiculo. Subitamente, os animais tomam a cena. Após patéticas tentativas de Lelita para fazer o cachorro saltar carro afora, o trio caminha pela relva, em meio à natureza - o amor, nos filmes de Humberto Mauro, parece indissociável de belos cenários naturais. Lelita exulta: "A natureza se enfeita para festejar o nosso amor. Aqui tudo é calma".Sob as sombras de uma Arvore, esboça-se o idílio, porém os movimentos atraem a atenção de um boi, que persegue Lelita e Morano, em disparada (as tomadas alteram-se entre os movimentos do casal e a do boi, sem jamais juntá-los em quadro), obrigando-os a buscarem refúgio no alto de uma árvore. A ambientação rural em um filme que se quer urbano, e o humor tornado, combinados, impingem um caráter artificial à cena final do filme. Sob o pífio roteiro, a hesitação entre as pretensões hollywoodianas e recorrências a Cataguases.

 

Distribuição/Exibição

Durante todo o ano de 1930, Cinearte fizera várias referências a Lábios sem beijos (chegando, em três números seguidos - de 18 e 25/06 e de 02/07 - a publicar textos, fotos e matéria publicitária), procurando chamar a atenção para o filme. Didi Vianna foi a mais assídua freqüentadora das páginas da revista, mas também Lelita Rosa ("O primeiro beijo de Lelita Rosa" - por Octavio Gabus Mendes[35][35]), Paulo Morano e demais "estrelinhas" do elenco. Em julho, anuncia-se a pós-produção: "Como se sabe, o filme teve, há dias, a sua última filmagem e, agora, apenas restam os trabalhos de corte de negativo e copiagem do mesmo para ser definitivamente entregue ao público."[36][36] No inicio de setembro o filme anunciado para breve. Um mês depois, em 08/10, repete-se o anúncio.

Finalmente, Cinearte, derramando elogios à Paramount, noticia: "A Paramount do Brasil acaba de firmar contracto com a Cinédia para a distribuição de "Lábios sem beijos" em todo o Brasil..."; o artigo ainda informa: "A resolução para a distribuição de "Lábios sem beijos" foi tomada por Tibor Rombauer coram a aprovação de John Day, representante da Paramount em toda a América do Sul que viu o film na sala de projecção da Agencia."[37][37] Na mesma matéria, é informada a data de estréia do filme no Rio de Janeiro: 10 de novembro, no Cinema Império.

Ao menos em Sao Paulo a distribuição executada pela Paramount parece ter sido eficiente.[38][38] A 4 de fevereiro de 1931 a Empresa Brasileira de Cinema publica o seguinte anúncio no jornal O Estado de São Paulo: "Acompanhando o movimento nacionalista que patrioticamente promovem os bons cidadãos de todos os recantos do Brasil, a empresa exibirá em 2 dos seus luxuosos cinemas, filmes inéditos posados por brasileiros, filmados por brasileiros e executados com capitais brasileiros - Adhemar Gonzaga apresenta Lábios sem beijos, com Lelita Rosa, a Clara Bow brasileira...[39][39] A empresa decide aumentar para três o número de filmes brasileiros contemplados com exibições durante a Semana Nacionalista, publicando, cinco dias depois, no mesmo jornal, outro anúncio, no qual, estranhamente, aparece com outra razão social: "A empresa Cine Brasil Ltda., acompanhando o patriótico movimento nacionalista que no momento preocupa todos os bons cidadãos, resolveu exibir durante a semana de 9 a 15 do corrente 3 produções brasileiras inéditas em São Paulo com cenários brasileiros! gente brasileira! coisas brasileiras!"[40][40] As outras produções a que se refere o texto eram No sertão das Amazonas, de Silvino Santos, e O mistério do dominó preto, de Cleo de Verberena. Assim, Lábios sem beijos estreou a 9 de fevereiro de 1931, no Rosário, permanecendo, como fora previamente acertado, em cartaz até 15 de março.[41][41]

O filme percorreria, ainda, seis outros cinemas da capital paulista: o Santa Cecília (12 e 13103), o Royal e o Mafalda (14 e 15/03), o São Pedro e o Cambuci (31/03) e, por fim, o São Paulo (08/04), totalizando treze dias em cartaz, às vezes em mais de um cinema. Uma excelente carreira para um filme brasileiro, à época, quando costumavam ficar apenas dois ou três dias em cartaz - e a de maior longevidade em se tratando de filmes de Humberto Mauro, até então.[42][42] Ao que tudo indica, as exibições durante a Semana Nacionalista despertaram pudores, e a 12 de março, quando da estréia no Santa Cecília, o anúncio em O Estado de São Paulo acrescentava uma indicação de "impróprio" para menores."[43][43]

 

Repercussão critica

Cinearte, como era de se esperar, não poupou elogios ao filme: "Fotograficamente perfeito e tecnicamente irrepreensível, 'Lábios sem beijos' encontra, como film brasileiro, seus pontos de deficiência, todos eles, entretanto, frutos do primeiro trabalho de um estudio que agora está organizado e apto a produzir em condições melhores".Ao final, a apreciação se deixa tomar pela euforia: "Assunto leve, moderno, tratado com originalidade e descrito, fotograficamente, com muita imaginação. 'Lábios sem beijos' é um dos melhores films brasileiros que já vimos. Feliz nas suas locações, nos seus interiores e no seu tratamento... 

 Não marca mais um passo na industria do cinema, no Brasil, como poderiamos dizer e com razão, por que é, sem dúvida, o seu passo mais adiantado e solido."[44][44]

Já para Stopinsky (Armando Brussolo), de A Gazeta, o filme transportava para a tela "toda a futilidade contida na revista Cinearte".[45][45] Isentando Humberto Mauro, prosseguia: "Alguém se mostrou favorável à fita 'Lábios sem beijos'. Com a devida vênia, pedimos para discordar. Não duvidamos da capacidade de Humberto Mauro como diretor de cena. Sempre tivemos este rapaz na conta de uma das melhores esperanças do cinema nacional. Contudo, nesse seu trabalho deixou falhas sensiveis, as quais recaem sobre a direção."[46][46]

Entre os gaúchos, enquanto o jornal O Estado do Rio Grande (de Porto Alegre), em 28/01/3 1, se referindo à produglo brasileira como um todo, e da Cinédia em particular, pedia "menos quantidade, mais qualidade"[47][47]; Ben Hur (Pery Ribas) exultava: "É preciso que todos vejam este maravilhoso filme da 'Cinédia', para verem o quanto o Cinema Brasileiro tem progredido. Temos certeza que ele não desapontará a ninguém. Pelo contrario - irá agradar e muito! Um film brasileiro ... Cenários brasileiros ... Uma história nossa ... Artistas nossos ... Tudo num filme que honra o Brasil! Haverá coisa mais admirável? A Cinédia está fazendo o Cinema Brasileiro."[48][48]

 

Comentários finais: Lábios sem beijos e a atualidade

A opção por frivolidades urbanas em invólucro pseudo-hollywoodiano de Lábios sem beijos subtrai da obra de Mauro um dos principais sustentáculos atrativos de seus filmes anteriores: a força primitiva e original de um olhar afinado ao meio natural retratado. Cinema que embora se mantivesse gramática e estruturalmente moldado à narrativa griffithiana (portanto hegemônica, hollywoodiana), o fazia com instinto e adaptatividade técnica, a peculiaridade do locus do registro trabalhada por um olhar cujas dinâmica e sensibilidade revelam um mestre em seu oficio, um artista em seu habitat, um animal cinematográfico.

Em Lábios sem beijos, não obstante dois agudos problemas de ordem narrativa, a imperícia ao introduzir e retirar personagens do filme justamente na parte inicial, e o mais grave deles, a concentração, pelo roteiro, quebrando o ritmo do filme, de três longos e sucessivos idílios (não obstante os momentos de 'grande cinema' que atinge filmando-os), Mauro confirma o seu talento e flexibilidade. Deslocado para um universo temático e, sobretudo, para uma abordagem estranhos ao cinema que fizera até então [e diametricamente opostos ao que viria a fazer, anos depois, no Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE)] o cineasta mineiro extrai de uma história pífia, através do domínio e inventividade técnica a serviço de um olhar inovador, uma obra cujo frescor resiste ao tempo. O sabor de artificialismo "holllywoodiano" que a porção final do filme deixa no espectador, com o desespero em reproduzir o ritmo do filme de ação made in USA assomando a tela, tende a tornar explicito - sobretudo por vir antecedida de três contemplativos e elaborados, genuínos idílios maureanos - a estranheza patética que a busca por padrões hollywoodianos da Cinédia produzia.

A fundação da Cinédia representa o momento no qual o cinema hollywoodiano deixa de ser um invasor externo em cartaz em praticamente todos os cinemas do país, fortemente representado na ideologia orientadora da imprensa cinematográfica da época (e copiado amiúde em produções nacionais), para se tornar também uma presença invasiva interna, imiscuída na própria história de nosso cinema, liderando, via modelo de produção buscado pela Cinédia, a primeira tentativa de estruturação de indústria cinematográfica no Brasil.

Reside talvez nesse embate entre vocações nacionais e pressões externas, agudo em Lábios sem beijos, o mais evidente elo entre o filme de 1930 e a atualidade.

Quantos filmes brasileiros não repetem, hoje, a mecânica imitativa de Lábios sem beijos? Mesmo em filmes marcadamente autorais e focados em nossa realidade, quantas concess6es ao cinema hegemônico não são claramente efetuadas? O quanto persiste de "Cinearte" nas cobranças por padrões internacionalizantes, em nosso cinema, marteladas pela mídia atual? Quais os efeitos, sobre a percepção do público, desse embate de quase um século?

Embate que opõe, de um lado, uma tradição autoral que, refinada pelo Cinema Novo e pelo Cinema Marginal, trouxe, através do experimentalismo e do diálogo multicultural, relevo artístico e personalidade estilística ao Cinema Brasileiro - e a sua evolução; e, de outro, tentativas de, reproduzindo a linguagem hegemônica, inserir O Cinema Brasileiro no mercado - via que, hoje, sob os auspícios de uma ideologia marcadamente mercadológica, globalizante e liberal, se auto-anuncia como caminho único para o renascimento e para a subsistência da atividade cinematográfica no país.

Um embate que de certa forma tem em Lábios sem beijos um delinear suave, um quase imperceptível esboço, e que hoje salta aos olhos, gritante, quando agoniza a produção contracultural no Cinema Brasileiro ao mesmo tempo em que este se toma assíduo das principais premiações internacionais.

 

Bibliografia

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HONEM DE MELLO, Zuza e SEVERIANO, Jairo - A canção no tempo - vol. 1. RJ: Ed. 34,1997,

LOBATO, Ana Lúcia - Os ciclos regionais de Minas Gerais, Norte c Nordeste (1912-1930) - em RAMOS, Fernão - História do cinema brasileiro. SP: Art Editora, 1987.

GOMES, Paulo Emilio Salles - Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. SP: Perspectiva, 1974.

ROCHA, Glauber - Revisão critica do cinema brasileiro. RJ: Civilização Brasileira, 1963

TULARD, Jean - Dicionário de cinema. RS: L&PM, 1996.

VIANY, Alex (editor responsável) - Humberto Mauro, sua vida, sua obra, sua trajetória no cinema (coletânea). RJ: Artenova, 1978.

VIEIRA, Jodo Luiz - A chanchada e o cinema carioca (1930-1955) - em RAMOS, Fernão - História do cinema brasileiro. RJ: Art Editora, 1987.

 


 

MAURÍCIO MEDEIROS CALEIRO é bacharel em Cinema pela UFF, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF e professor substituto do Departamento de Cinema e Vídeo. Este artigo foi escrito como tarefa de conclusão da  disciplina Estudo Especifico de Cineasta Brasileiro, do Curso de Cinema da UFF, ministrado pelo professor Roberto Moura no primeiro semestre de 1998, e cujo tema específico foi Humberto Mauro.

 

© 1998 – Maurício de Medeiros Caleiro

© 2004 – SOMBRAS ELÉTRICAS

 



[1][1] O livro de Paulo Emílio, além de principal inspiração metodológica e de fornecedor de informações e análises fundamentais para compreensão da formação e do desenvolvimento do cinema de Humberto Mauro, constituiu verdadeiro estimulo ao trabalho.

 
 

[2][2] GONZAGA, Alice - 50 anos de Cinédia. RJ: Record, 1987, p. 36. Alice Gonzaga afirma tratar-se de um filme da Cinédia, antes de sua criação, o que é juridicamente inócuo. O nome oficial da produtora, até então, era Cinearte.

 
 

[3][3] GONZAGA, p. 36.

 
 

[4][4] CINEARTE, 01/01/30, 16/10/29.

 
 

[5][5] CINEARTE, 09/04/30. No número seguinte Carmen Santos seria a capa da revista, indício de que o episódio não resultou em conflito da estrela com Adhemar Gonzaga.

 
 

[6][6] GONZAGA, p. 36.

 
 

[7][7] Idem, pp. 435-436.

 
 

[8][8] Idem, p. 449.

 
 

[9][9] Idem, pp. 449-459.

 
 

[10][10] CINEARTE, 12/03/30.

 
 

[11][11] CINEARTE, 30/04/30.

 
 

[12][12] SALLES GOMES, Paulo Emílio - Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. SP: Perspectiva, 1974, p. 450.

 
 

[13][13] Tahi (Pra você gostar de mim), marcha (Joubert de Carvalho) – Carmen Miranda e Orquestra Vicotor Brasileira.

 
 

[14][14] ANDRADE, Mário de - conferência "O movimento modernista." Citado em AMARAL, Aracy - Artes plásticas na Semana de 22. SP: Perspectiva, 1976, p. 283.

 
 

[15][15] CINEARTE, 21/05/1930.

 
 

[16][16] VIEIRA, João Luiz. Em RAMOS, Fernão - História do Cinema Brasileiro. RJ: Art Editora, 1987. p. 136.

 
 

[17][17] SALLES GOMES, p. 450.

 
 

[18][18] SALLES GOMES, p. 155.

 
 

[19][19] Idem, p, 440.

 
 

[20][20] LOBATO, Ana L5cia. Em RAMOS, Fernão, p. 92.

 
 

[21][21] Entrevista a Alex Viany, em VIANY, Alex (editor responsável) - Humberto Mauro, sua vida, sua obra, sua trajetória no cinema (coletânea). RJ: Artenova, 1978.

 
 

[22][22] AUGUSTO, Sérgio - Este mundo é um pandeiro. SP: Companhia das letras, 1989, pp. 75-79.

 
 

[23][23] GONZAGA, p. 36.

 
 

[24][24] SALLES GOMES, p. 450.

 
 

[25][25] "CINEARTE, 15/10/30

 
 

[26][26] Principal fonte para elenco: GONZAGA, p. 37.

 
 

[27][27] Ver SALLES GOMES, capítulos 4, 5 c 6.

 
 

[28][28] ARAÚJO, Inácio - Pernas e beijos arrebatadores. Em Folha de São Paulo (Caderno Mais!), 27/04/97.

 
 

[29][29] Humberto Mauro dominava a técnica de indicar o movimento de um personagem através do olhar de outro desde Thesouro perdido, conforme demonstra Paulo Emílio à página 156 do livro citado. A diferença, aqui, é que são dois - e não apenas um - os personagens em cena a indicar o movimento.

 
 

[30][30] Note-se a sucessiva modernização dos galãs dos filmes de Mauro: Em Thesouro perdido, o romântico Bruno (Bruno Mauro) sonhava com a vida a dois; em Braza dormida, o trabalhador Luiz Soares (Luiz Soroa) é um futuro genro prestimoso; em Sangue mineiro, Maury Bueno (Chrstovam Abdon), introduz o galã cínico, abusado, assediando Carmem (Carmen Santos); por fim, em Lábios sem Beijos, Paulo Morano começa o filme no quarto de uma vamp, dizendo que "esse negócio de paixão é para os trouxas."

 
 

[31][31] Na versão em vídeo (Série Brasilianas, editada pela FUNARTE), alguns passos da caminhada de Lelita são subtraídos, provavelmente por danos irreversíveis à cópia em película que resistiu ao tempo, servindo de master à telecinagem.

 
 

[32][32] Novamente com alguns passos subtraídos da imagem, possivelmente pelas mesmas razões já expostas.

 
 

[33][33] Mesmo  em vídeo, com a oportunidade de rever varias vezes a cena, não foi possível descobrir do que se trata. A hipótese mais plausível - o decote de Lelita - implicaria em um erro de continuidade, pois um detalhe branco no que supostamente seria a parte superior do maiô de Lelita não aparece na seqüência passada na copa das Arvores.

 
 

[34][34] Alguns de seus passos apresentam-se uma vez mais surrupiados.

 
 

[35][35] CINEARTE, 14/05/30.

 
 

[36][36] CINEARTE, 23/07/30.

 
 

[37][37] CINEARTE, 05/11/30.

 
 

[38][38] O livro de Jean Claude Bernardet, Filmografia do Cinema Brasileiro 1900-1935, possibilitou a aferição de como deu-se o lançamento de Lábios sem beijos em um grande centro urbano do pais [levantamento que as limitações de tempo e de pessoal deste trabalho impedem de serem executadas de modo satisfatório em relação a outras localidades].

 
 

[39][39] BERNARDET, Jean Claude (levantamento) - Filmografia do Cinema Brasileiro 1900-1935. SP: Secretaria da Cultura/Comissão de Cinema. 1979.

 
 

[40][40] Idem.

 
 

[41][41] BERNADET

 
 

[42][42] 42, SALLES GONES, pp. 168 a 174, 249 a 267, 417 a 423.

 
 

[43][43] BERNADET.

 
 

[44][44] CINEARTE, 31/12/30.

 
 

[45][45] Citado na Edição Comemorativa dos 100 anos de Humberto Mauro, editada pela FUNARTE.

 
 

[46][46] Citado em GONZAGA, p. 3 7.

 
 

[47][47] VIANY, Alex.

 
 

[48][48] Citado em GONZAGA, p. 37.