SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 3 – Abril de 2004

VER COM OLHOS LIVRES

MEU CASO COM A DITA CUJA

Edgard Navarro

 

Cena de Eu me lembro, de Edgard Navarro

 

Naquele primeiro de abril havia uma novidade que bem podia ser mentira, mas não era: os milicos haviam tomado o poder. De passagem para a escola, pude notar uma movimentação inusitada de soldados armados, caminhões do exército circulando, um tanque no meio da rua, transeuntes intrigados, gente inflamada discutindo, contra e a favor:

- Agora esse paíszinho de merda vai entrar nos eixos! Esse povo só aprende mesmo é na base da porrada! Quero ver! Quero ver eles fazerem baderna, agora!

No colégio, os padres concordavam. E os poucos que se opunham faziam-no tímida e secretamente, sem coragem de se manifestar: era dançar conforme a música.

Aos 14 anos, eu não entendia bem o que estava acontecendo, porque lá em casa o nível de conscientização política era algo em torno de zero. Mas sabia que havia uma nova ordem no país e meu instinto me dizia que aquilo não era bom.

Nos anos que se seguiram, o descontentamento só cresceu, culminando, em 68, com uma onda de protesto que se alastrou pelo país, em consonância com os movimentos da juventude em outras partes do mundo. No final do ano a situação havia se tornado insustentável e aconteceu o que já se sabe: o ato sinistro que instituía a lei do cão, produzindo a legitimação da tortura, da violência e do terror. Amigos presos, amigos sumindo assim pra nunca mais... À parte o imenso malefício em que se constituíram as ações perpetradas em diversas frentes contra a sociedade brasileira pela ditadura militar, é escusado dizer o prejuízo que a repressão causou à nossa cultura. Artistas exilados, compulsória ou voluntariamente; inúmeros livros, peças de teatro, canções e filmes censurados...

Aqui na Bahia a censura também estenderia seus tentáculos, vitimando artistas de diversas áreas. Filmes de colegas da minha geração como Fernando Belens e Pola Ribeiro sofreram cortes ou foram vetados quando não sumariamente seqüestrados. Eu, inclusive, por conta de uma lisérgica experiência superoitista, tive que comparecer à PF para assinar um termo em que declarava que “a obra de arte em questão não pretende fazer apologia ao uso de drogas, etc.”

De forma concreta, entretanto, eu só viria a ser atingido pelo escroto braço da ditadura anos mais tarde, em 84, já nos estertores do regime. Havia realizado um filme intitulado PORTA DE FOGO, sobre a morte de Lamarca. Sob a alegação de que o filme era “contrário ao regime democrático de nosso país” (sic), proibiram sua exibição por mais de um ano. No dia da independência, em 84, ainda sob o impacto da interdição, da apreensão da cópia e do tratamento hostil que me dispensaram na PF, onde fiquei detido por umas poucas horas (nada comparável, obviamente, aos horrores infligidos anos antes aos que fizeram a luta armada), escrevi um texto pejado de indignação, revolta e de um impotente patriotismo.

Relendo o referido texto, verifiquei que ainda conserva o pathos essencial que o inspirou e, considerando que à época ocupou apenas uma tripa ridícula na seção de cartas dos leitores, achei por bem reeditar parte substancial do mesmo para examinar à luz de outra perspectiva este meu caso com a dita cuja:

Que pensam eles estarem fazendo ao vetarem um filme como esse? Será que acreditam poderem sepultar a História, como se nada tivesse acontecido? Enganam-se: mais cedo ou mais tarde, todos os cadáveres serão exumados e exibidos, podres, aos olfatos e às consciências de seus algozes.

Pergunto-me por que os espartanos são tão arrogantes, prepotentes, superiores aos simples mortais (!). Certamente têm razões bastante convincentes para sê-lo: metralhadoras, tanques de guerra, mísseis e contingentes inteiros de cães amestrados, humanos ou não (nos quartéis lhes ensinam antigas lições), além do pacto funesto com a força da grana.

Eu só tenho a minha arte. E a certeza de que Esparta sempre vencerá Atenas no corpo a corpo. Poetas nunca foram bons em artes marciais, salvo exceções raras. Eu só tenho a minha arte, que é o meu trunfo, meu poder. E o espírito do povo é a minha seara. O povo sempre acorda, um dia, sequioso por ajustar contas com os dobermans que lhe vitimaram os filhos. É o medo desse dia que tira o sono ao verdugo. Não há o que eles possam fazer para sufocar a rebelião, a grande rebelião que habita o peito do homem, seu sonho de liberdade e justiça, que vive com ele, mesmo no escritório burocrático (em que quase se esvai), nas fábricas, construções, ruas; e que recrudesce apesar do terror. Não há o que apague esse fogo que Prometeu nos trouxe, no princípio. Jesus, Giordano Bruno, Danton, Tiradentes, Conselheiro, Gandhi, Guevara, Lamarca... E a multidão anônima dos que lutaram e deram suas vidas por um ideal nobre – esta a metáfora da PORTA DE FOGO.

Sete de setembro. De manhã eu ia ver a parada, de bandeirinha na mão e calças curtas. Hoje não vou mais. Não há o que comemorar. Não sou livre, minha pátria não é independente, a não ser de Portugal. Hoje a rua é para um desfile uniformizado, impecável, em que Esparta comemora uma independência fossilizada, ao som de dobrados e aplausos de ufanistas inconscientes, marchando seu tropel majestoso sobre despojos de um povo derrotado.

Sete de setembro. Não há conciliação possível entre poetas e milícia. Falamos línguas diversas. Mas quero dizer na minha língua: Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós!

Isso foi há 20 anos. Maravilhosa utopia a que tivemos, acreditando que tudo se resolveria com o fim da ditadura militar. Desejamos ardentemente a redemocratização e, quando esta veio, vimos que ainda teríamos que esperar muito. Sarney, Collor, Itamar e FHC (por duas vezes seguidas!)... Sucederam-se governos conservadores (quando não corruptos) que nunca deram testa aos sempiternos interesses econômicos, mudando apenas de cara mas perpetuando o mesmo estado das coisas.

Hoje, apesar de conseguirmos eleger o governo de nossos sonhos, temos visto suas melhores intenções para atender às demandas do povo se estiolarem, mais uma vez sacrificadas ao todo poderoso Senhor Sifrão, na obediência, ainda, aos cânones de uma cartilha econômica antiga e perversa. Assim, vivemos assolados por uma falta de verba crônica, ocupados que estamos em pagar rios de dinheiro aos senhores do mundo, banqueiros internacionais. Não podemos esquecer que o golpe de 64 foi orquestrado pela maior ditadura econômica do planeta, paranóica em relação à ameaça do comunismo, que havia logrado um tento com a revolução cubana e poderia, caso não fosse contido, alastrar-se pela América Latina.

No meu caso, o que posso dizer é que, infelizmente, tantos anos depois, encontro-me mais uma vez refém de um silêncio compulsório: rodado há 2 anos, EU ME LEMBRO - o último filme que realizei, continua parado; e não faço idéia de quando poderá ser visto pelo público, a quem se destina. O que não deixa de ser uma forma de veto, de censura. Não mais representada pelo método retrógrado dos militares, mas (poupados apenas os que têm certa articulação ou talento para a tal captação de recursos) pela tal mencionada falta crônica de verba que nos assola, blá, blá. A sensação é de que estamos caminhando em círculo e vamos nos esbarrar sempre com o mesmo recorrente problema. Tenho vivido pra ver o dia em que tudo isso vai mudar, de verdade. Acreditando que os interesses escusos e as vaidades humanas não se sobreporão aos ideais nobres que amávamos cultivar.

 

EDGARD NAVARRO é cineasta. Um dos mais destacados representantes do movimento Super-8 dos anos 70, tenta finalizar agora seu longa-metragem Eu me lembro. O texto acima foi publicado (com cortes) em A Tarde de 1 de abril de 2004.  

 

© 2004 – Edgard Navarro

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