SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 8 – Abril de 2012

VER COM OLHOS LIVRES

VENHA PARA O TRISTE MUNDO DE MARLBORO

Marcelo Marchi

 

Eli Wallach, Marilyn Monroe, Clark Gable e Montgomery Clift em Os desajustados (The misfits, 1961), de John Huston.

O Velho Oeste é a região onde o norte-americano cravou as raízes de seus mais heroicos ideais. Ali, em um mundo de paisagens áridas, planícies verdes, cavalos selvagens e liberdade, os EUA viveram suas Ilíadas e suas Odisséias, e exercitaram o bushido de samurais que duelavam usando Colts em vez de espadas. O Oeste indomado foi a África e a Índia de uma nação que colonizou apenas seu próprio território.

Nem por isso essa mitologia esteve a salvo de ser desmistificada, desconstruída e reconstruída sucessivamente, em um movimento que passa pelos westerns spaghetti – de diretores como Sergio Leone, e de mocinhos mais rápidos, brutos e mortais do que seus pares do Novo Mundo - por Clint Eastwood e seu Os Imperdoáveis e por Robert Rodriguez e a trilogia do Mariachi, e culmina em O Segredo de Brokeback Mountain, onde a paixão entre a dupla de cowboys é impulsionada justamente pela solidão daqueles vastos campos verdejantes.

Em 1960 encontramos um dos primeiros exemplares desses westerns desiludidos: Os Desajustados (The Misfits), de John Huston. A trama mostra uma mulher recém-divorciada (Marilyn Monroe) sendo disputada por três homens – interpretados por Clark Gable, Montgomery Clift e Eli Wallach – que já viveram dias melhores (será mesmo?), em meio à desolação (geográfica e espiritual) do estado de Nevada.

Acredito que uma obra artística deva ser boa por si só, independentemente do momento histórico ou das condições de sua criação. Mas, se a noção do contexto em que ela se insere torna-a ainda melhor, vamos relaxar e curtir, não? Assim como torcemos mais por Mickey Rourke em O Lutador ao sabermos como a vida do personagem encontra eco na de seu protagonista, ou por um Tony Stark - o super-herói alcoólatra de Homem de Ferro - interpretado por um Robert Downey Jr. que conhece bem o demônio na garrafa, Os Desajustados merece ser julgado de acordo com o histórico de seus realizadores e protagonistas.

Encabeçando o elenco estava o quase sexagenário Clark Gable, que via seu status de galã sendo levado pelo vento para um passado já distante. Seu sorriso, seus olhares, seu charme não convenciam mais. Até o bigodinho parecia deslocado em uma era veloz, que começava a abandonar mesmo os tão modernos topetes e costeletas de James Dean e Marlon Brando. Doente, Gable morreria no ano de lançamento do filme. Já Marilyn Monroe estava em uma forma física considerada abaixo do padrão característico, no decorrer de uma fase descontrolada (com álcool e pílulas no estômago e na cabeça, andou nua por um hotel e penteou os pelos púbicos durante uma entrevista) e a dois anos de sua morte estranha. Montgomery Clift acabara de recuperar-se do acidente de carro que destruíra seu rosto (pros padrões hollywoodianos), competia com Monroe em termos de birutices (e certamente ganhava), lutava para manter sua homossexualidade no armário e morreria em seis anos. E Arthur Miller? Ele, um dos maiores dramaturgos dos EUA, roteirista do filme e marido de Monroe, via desmoronar o sonho de todo nerd quatro-olhos, o de possuir a garota mais gostosa da escola. Estava prestes a separar-se dela. O roteiro é ao mesmo tempo um presente de despedida, através do qual a esposa poderia enfim realizar o seu desejo de ser levada a sério como atriz, e uma alegoria tanto do casamento que se desfazia quanto da personalidade contraditória e conturbada de Monroe.

No formol que é o preto-e-branco, vemos o “desajuste” entre o que os personagens aparentam ou pretendem ser e o que são na verdade. Tem o grande peão de rodeio que cai e machuca-se feio, passando parte do filme com a cabeça enfaixada. O grande pai de família adorado por filhos que nunca aparecem, mas que o levam a protagonizar uma cena de auto-humilhação intensa e perfeita. O grande aviador, ex-combatente da Segunda Guerra, que usa tal mérito na tentativa de impressionar a garota… A sequência final, da caçada aos cavalos selvagens – brutal e dolorosa, tanto para homem quanto para animal - por si só ilustra e amarra o sentimento que permeia toda a obra. Em tempos que já não eram os mesmos dos cowboys canônicos, os cavalos capturados não serviriam como meio de transporte ou ferramenta de trabalho, mas como ração para cachorro. Huston parecia registrar que a era do heroísmo chegava ao seu crepúsculo, e que outra, bem mais complexa, anunciava-se no horizonte sem fim de Nevada.

Depois de ver Os Desajustados dá para acreditar que talvez o mundo de Marlboro nunca tenha verdadeiramente sido aquela maravilha que nos era vendida. Quem sabe, por isso, o cowboy-símbolo tenha se acabado em seus cigarros envenenados.

 

MARCELO MARCHI é Bacharel em Comunicação Social - Radialismo pela UNESP. É roteirista, autor do livro O Safári Doméstico (Agbook) e ministra oficinas de roteiro cinematográfico.