SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 8 – Abril de 2012

VER COM OLHOS LIVRES

CINEMA DE UMA NOTA SÓ

Marcelo Marchi

 

  

João Gilberto, na capa do seu primeiro LP (Chega de Saudade) parece concordar com o autor do texto...

(A seguir: cartaz de O homem que desafiou o diabo (2007), de Fábio Barreto; Mariana Ximenes e ... em A máquina (2006), de João Falcão)

 

Há algum tempo, depois de tentar assistir à A Máquina, de João Falcão (2006), percebi que já não tenho paciência para esse “lirismo nordestino” que faz os cineastas brasileiros suspirarem. Ok, O Auto da Compadecida é muito legal, Lisbela e o Prisioneiro também, mas daí vêm O Homem que Desafiou o Diabo (do qual se deve fugir como o Diabo foge da cruz) e uma infinidade de longas que usam a mesma fórmula da “cidadezinha-perdida-no-sertão-nordestino-e-povoada-por-figuras-exóticas-cômicas-e-ingênuas-cheias-de-trejeitos-e-que-falam-rapidinho-mas-que-possuem-um-lado-poético-e-encantador-que-faz-com-que-elas-sejam-mais-felizes-do-que-as-pessoas-da-cidade-grande”. Conferir um tom de fábula ao cotidiano do sertão pode ser uma boa ideia, mas, depois de uns cinquenta filmes nessa linha, começo a ter certeza de que as minhas opiniões sobre o protecionismo intelectual brasileiro não são só fruto de alguma suposta má vontade para com o cinema nacional. Já ouvi muitas vezes a velha máxima de que o cinema americano se alimenta dos mesmos clichês. E os filmes brasileiros, não? Por que o malandro de bom coração, a mocinha sonhadora, o prefeito sacana, o padre atrapalhado são menos clichê do que o tira durão, o veterano do Vietnã indestrutível, as líderes de torcida e os capitães de futebol americano que zoam os geeks? Ah, o primeiro grupo “faz parte da nossa cultura”. Bem, se é assim, o segundo grupo faz parte da cultura americana. Ficar colocando na balança a nossa cultura e a cultura deles é, no mínimo, um bairrismo enjoativo.

Não é de hoje que bato na tecla de que o cinema nacional PRECISA virar indústria. Não concorda? Então pense comigo: você sai de casa para ir ao cinema, decidido a ver um filme brazuca. Só que seus gêneros preferidos são terror, ficção científica, ação, policial e suspense. Sinceramente, ou você vai acabar trocando o cineminha por um chopp no boteco, ou vai repensar a decisão de assistir a uma produção nacional e abraçar Hollywood, pela pura falta de opções que fujam da comédia nordestina ou “copacabanense” e do drama de problemática social. O cinema americano é uma indústria? Fabrica filmes feito uma linha de produção da Ford? Com certeza. Por outro lado, democratiza os gostos, abre o leque de um jeito que o cinema brasileiro não faz, talvez por medo, talvez por puro preconceito. As pessoas que mandam na produção cinematográfica nacional aparentemente acreditam que, se “abrir a porteira”, como dizem no interior, para o cinema de massa, a verdadeira arte será esmagada pelas produções de apelo mais popular. Parecem não perceber que, nos EUA, há espaço pro novo blockbuster do Will Smith e pro novo drama existencialista bergmaniano do Woody Allen. Tem pra todo mundo. Em maior ou menor número, mas tem. Por aqui, ou se tem a nova comédia do Didi ou a nova análise social do Sérgio Bianchi. O meio-termo entre um e outro não é recheio, mas vácuo. Com música acontece algo parecido. Há muito tempo que a Música Popular Brasileira não é popular. Popular é pagode, axé, sertanejo e funk pancadão. O meio-termo entre o complicado e o de fácil assimilação é uma terra de ninguém. E aí, pra que lado você acha que o ponteiro vai pender? Pois é, com cinema acontece a mesma coisa.

Os donos da grana por aqui não investem em uma ficção científica, por exemplo, porque há o risco de ficar tosco (temos profissionais competentes nas áreas de maquiagem e efeitos especiais, mas o público exige do resultado final uma excelência comparável a de Hollywood), e, pior de tudo, se é um filme assumidamente “de massa”, precisa fazer bonito, muito bonito, nas bilheterias. Com os filmes de “relevância social”, tanto faz a bilheteria. Tanto faz se alguém se interessará em assistir. Foi feito com dinheiro de edital. Essa falta de obrigação em atrair o público ajuda a criar uma gordura na pança da sétima arte que, como toda barriguinha, começa tímida, e quando menos se espera já dominou a silhueta. É o que está ocorrendo. Não sou contra os editais, mas acredito que eles têm que ser apenas uma das fases iniciais do desenvolvimento de uma indústria cinematográfica nacional. Depois de alguns anos, o governo precisa dar um tapinha no bumbum do nenê e deixar que ele caminhe sozinho. Porém, nesse círculo vicioso, onde só ganham incentivo os projetos que emulam o tipo de filme que já vem sendo feito desde os anos 90, a coisa vai ficar ainda por muito tempo estagnada.

Por isso, apesar de tosco, ou talvez por isso mesmo, fico feliz com iniciativas como Os Mutantes, aquela novela da Rede Record. Muita gente criticou. É claro que é podreira. Mas tem que se começar por algum lugar, afinal de contas! Quem hoje em dia sai do cinema extasiado com A Origem talvez não se dê conta de que Hollywood vem fazendo ficção científica desde o cinema mudo. Foram necessárias décadas de discos voadores pendurados por cordinhas e de monstros com zíperes nas costas para se chegar à Los Angeles repleta de andróides de Blade Runner e ao kung fu zen-cyberpunk de Matrix.

Não adianta ter uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. É preciso mais do que UMA ideia. Ou pode-se acabar fazendo um samba de uma nota só. Como boa parte dos cineastas brasileiros, que vem tentando até hoje refazer Deus e o Diabo na Terra do Sol. Eu quero é mais do que uma nota só. E quero mais do que samba. Quero polka, blues, valsa, bolero e baião. Quero poder escolher.

 

MARCELO MARCHI é Bacharel em Comunicação Social - Radialismo pela UNESP. É roteirista, autor do livro O Safári Doméstico (Agbook) e ministra oficinas de roteiro cinematográfico.