SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 9 - Maio de 2012

LONG-SHOT - CINEMATECA DE LETRAS OU BIBLIOTECA DE IMAGENS: CINEMA E LITERATURA

HOJE TEM FILME DE CARLITO: CINEMA E POESIA MODERNISTA

Antonio Paiva Filho

 

Não chores, meu bem: Carlos Drummond de Andrade me disse que hoje tem filme de Carlitos. E um belo filme: Luzes da cidade (1931), de Charles Chaplin.

Não sou literato, embora ame os livros. Nem poeta, embora ame a poesia e, por amor a ela na adolescência, tenha cometido os meus versos. (Mais tarde, dei mais uma prova de amor à poesia: parei de cometer versos...) Nem mesmo poeta do Cinema, embora ame também poetas da imagem, como Humberto Mauro.

Em todo o caso, sabemos que o Cinema e a Literatura — em prosa — sempre se deram muito bem, obrigado. Mas e a poesia? Como ela e o Cinema se entenderam? Ou perguntando melhor: como o Cinema lidou com a poesia? E como os poetas do século XX lidaram com o Cinema e seus ícones?

Bem, por mais que seja tentador, não tenho mãos e conhecimentos suficientes para um levantamento completo da relação entre os versos e a imagem em movimento no século XX, nem este trabalho tem esta ambição. O que posso fazer neste texto é lançar alguns apontamentos a respeito da relação Cinema-poesia na cultura brasileira — em especial, depois de 1922.

 

1- TÃO MODERNO COMO UMA CADILLAC

 

O modernismo, além da ânsia e esforço de demolição — uma ponta de lança contra o “mármore de Carrara” da literatura praticamente oficial da época — cultuaria a máquina como símbolo de modernidade: o automóvel (não por acaso, a primeira revista modernista brasileira, Klaxon, tomaria emprestado o seu nome da buzina externa dos automóveis da época), a locomotiva, a indústria. E, é claro, o Cinema, considerado a criação artística mais representativa do século. Logo, não é surpresa que as publicações literárias modernistas — pelo menos, algumas das comandadas pelas alas mais radicais lideradas e/ou animadas por Oswald de Andrade (a Revista de Antropofagia, de 1928 a 29, e O Homem do Povo, de 1930 a 31) — tivessem seções dedicadas a essa tal de sétima arte. Nem tampouco que alguns destes poetas e escritores modernistas exercessem, em algum tempo, o breve papel de críticos cinematográficos — seja por gosto, seja por necessidade financeira.

O problema aqui proposto é saber até que ponto o Cinema e seus mais freqüentes ícones influíram na criação literária — em especial, a poesia. Sim, porque a relação entre os escritores e poetas modernistas e o Cinema, além de se dar no nível estético, também se realizou no nível do imaginário de cada um.

Estes ícones, obviamente, vinham do cinema dominante — o Cinema americano. Na mesma época, nesta mesma Paulicéia Desvairada em que os modernistas faziam suas estripulias, uma atividade cinematográfica precária, até mesmo aventureira, onde se destacavam nomes como Gilberto Rossi, José Medina, Arturo Carrari, Nicola Tartaglione etc. e tal.[1] E um ignorava solenemente o outro e vice-versa. Talvez pela distância social entre ambos: enquanto que a Semana de Arte Moderna e seus desdobramentos tiveram o auxílio luxuoso de membros mais esclarecidos da elite cafeeira paulista, a força motriz do Cinema mudo paulistano foram pessoas majoritariamente oriundas das classes populares—quase sempre, imigrantes italianos.

O único encontro — ou tentativa de encontro — entre um e outro, por mais paradoxal que pudesse parecer — foi nas páginas de Klaxon — ou melhor em sua seção de Cinema, através de uma crítica ao filme Do Rio a São Paulo para Casar — produção da Rossi Film, dirigido por José Medina, a partir de argumento do então estudante de Direito Canuto Mendes de Almeida.

 

A empresa Rossi apresenta uma tentativa de comedia. Applausos. Transplantar a arte norte-americana para o Brasil! Grande beneficio. Os costumes actuaes do nosso paiz conservar-se-hiam assim em documentos mais verdadeiros e completos do que todas as “coisas-da-cidade” dos chronistas.

Photographia nitida, bem focalizada. Aquellas scenas noturnas foram tiradas ao meio-dia, com sol brasileiro... Filmadas à tardinha, o rosado não sendo photogenico, a producção sahiria sufficientemente escura. Isso emquanto a empresa não conseguir filmar á noite.

O enredo não é máu. Fôra preciso extirpal-o de umas tantas incoherencias.

A montagem não é má. Fôra preciso extirpal-a de umas tantas incoherencias.

O galã, filho de uma senhora aparentemente abastada, por certo teria o dinheiro necessário para vir de Campinas a S. Paulo. A sala e o quarto de dormir da casa campineira brigam juntos. Aquella burguesa, este pauperrimo. Accender phosphoros no sapato não é brasileiro. Apresentar-se um rapaz á noiva, na primeira vez que a vê, em mangas de camisa, é imitação de habitos esportivos que não são nossos. E outras coisinhas.

É preciso comprehender os norte-americanos e não macaqueal-os. Aproveitar delles o que tem de bom sob o ponto de vista technico e não sob o ponto de vista dos costumes. Artistas regulares. Porque não usam pó de arroz azul? De quando em quando um gesto penosamente ridículo... Num film o que se pede é vida. É preciso continuar. O apuro seria preconceito esterilizante no início de empreitada tão difficil como a que a Rossi Film se propõe.

Applauso muito sincero. Seguiremos com enthusiasmo os progressos da cinematographia paulista.

 

O texto é assinado por um certo “R. de M.” — daí, um estudante de Letras meio distraído pode pensar que o autor pode ser Rubens Borba de Morais, outro companheiro do movimento modernista. Mas nós achamos que é de Mário — principalmente se nos lembrarmos de que seu nome completo é Mário Raul de Moraes Andrade, e se prestarmos atenção ao fato de que o criador de Macunaíma (que por sinal, viraria um ótimo filme nas mãos de Joaquim Pedro de Andrade) era o único cinéfilo modernista que se interessava pelo pobre Cinema paulistano dos anos 20:[2] de acordo com que se ouviu de uma testemunha ocular da História: “A propósito, Rubens Borba de Morais companheiro de Mário na revista, lembra que ele assistia com o maior interesse aos filmes nacionais. Motivo pelo qual, aliás, era alvo de grandes caçoadas dos amigos, que não entendiam que interesse se poderia encontrar nos “simplesmente abomináveis” filmes nacionais.”[3]

Apesar de Mário, esta foi a única vez em que se falou de Cinema brasileiro (ou melhor, de filme paulistano) em Klaxon. Enquanto a revista existiu, sua seção de Cinema falou somente de poucos e selecionados filmes estrangeiros — quase sempre americanos — onde estavam os ícones de seu imaginário. E estes ícones eram quase sempre os mesmos: o cowboy — personagem clássico de um gênero igualmente clássico, o western — os cineastas preferidos (Stroheim, Murnau, Eisenstein etc.), as divas do Cinema (em especial, uma sueca chamada Greta Garbo)... e, obviamente, Carlitos, o nobre vagabundo criado por Charles Chaplin. Este, aliás, era o ícone comum entre os modernistas, enquanto que os outros eram particularizados. É sobre Chaplin — ou melhor, sobre o clássico O Garoto (The Kid), que transcrevo aqui outro artigo de Mário sobre Cinema em Aqui, ele se dedica a refutar críticas desabonadoras de uma poetisa, uma tal de Celina Arnauld (quem é esta senhora?), justamente sobre uma das seqüências mais belas e líricas do filme, o sonho de Carlitos, na vila pobre, depois que levam seu filho adotivo (o garoto do título).

Vale a pena lê-la, apesar de um tanto extensa.Aqui, sem perder a coerência de sua argumentação — e descontando-se a irreverência típica da primeira geração modernista — Mário mostra uma coisa em comum com vários de seus confrades modernistas: uma paixão incondicional pelo Cinema lírico-humorístico de Chaplin.

(Em tempo: na edição original de onde este artigo foi transcrito, há uma parte danificada, indicada por [...].)

 

O Garoto por Charlie Chaplin é bem uma das obras primas mais completas da modernidade para que sobre elle insista mais uma vez a irriquieta petulância de Klaxon. Celina Arnauld, pelo último número fóra de série da revista Action, commentando o film com bastante clarividência. Denuncia-lhe dois senões: o sonho (...) e a anedocta da mulher abandonada que por sua vez abandona o filho. Talvez haja alguma razão no segundo defeito apontado. Effectivamente o caso cheira um pouco a sub-literatura. O que nos indignou foi a poetisa de "Point de Mire" criticar o sonho de Carlito. Eis como o percebe: "Mas Carlito poeta sonha mal. O sonho objectivado no film choca como alguns versos de Casimiro Delavigne intercaladas ás Illuminations de Rimbaud. Em vez de anjos alados e barrocos, deveria simplesmente mostrar-nos ‘pierrots’ enfarinhados ou ainda outra cousa e seu film conservar-se-ia puro. Mas quantos poemas ruins tem os maiores poetas."

Felizmente não se trata d’um máu poema. O sonho é justo uma das páginas mais formidáveis de "O Garoto". Vejamos: Carlito é o maltrapilho e o ridículo. Mas tem pretenções ao amor e á elegancia. Tem uma instrução (seria melhor dizer conhecimentos) superficial ou o que é peior desordenada feita de retalhos colhidos aqui e além nas correrias de aventura.

É profundamente egoísta como geralmente o são os pobre, mas pelo convivio diurna na desgraça chega a amar o garoto como a filho. Além disso já demonstrara sufficientemente no correr da vida uma religiosidade inculta e ingênua. Num dado momento conseguem emfim roubar-lhe o menino. E a noite adormecida é perturbada pelo desespero de Carlito que procura o engeitado. Chupado pela dor, Carlito vae sentar-se á porta da antiga moradia. Cae nesse estado de sonolência que não é o somno ainda. Então sonha. Que sonharia? O lugar que mais perlustrara na vida, mais enfeitado, ingenuamente enfeitado com flores de papel, que parecem tão lindas aos pobres. E os anjos apparecem. A pobreza inventiva de Carlito empresta-lhes as caras, os corpos conhecidos de amigos, inimigos, policiais e até cães. E os incidentes passados misturam-se ás felicidades presentes. Tem o filho ao lado. Mas a briga com o boxista se repete e os policiais perseguem-no. Carlito foge num vôo. Mas (e estaes lembrado do sonho de Descartes) agita-se, perde o equilíbrio, cahe na calçada. E o sonho repete o acidente: o policial atira e Carlito alado tomba. O garoto saccode-o, chamando. É que na realidade um policial chegou. Encontra o vagabundo adormecido e saccode-o para accorda-lo. Este é o sonho que Celine Arnauld considera um mau poema. Como não conseguiu ella penetrar a admirável perfeição psychologica que Carlito realizou! Ser-lhe-ia possível com a mentalidade e os sentimentos que possuia, no estado psychico em que estava, sonhar "pierrots" enfarinhados ou minuetes de aeroplanos! Estes aeroplanos imaginados pela adorável dadaísta é que viriam forçar a intenção da modernidade em detrimento da observação da realidade. Carlito sonhou o que teria que sonhar fatalmente, necessariamente: uma felicidade angelical perturbada por um subconsciente sabio em coisas de sofrer ou de ridículo. O sonho é o commentario mais perfeito que Carlito poderia construir de sua pessoa cinematographica: não choca. Commove immensamente, sorridentemente. E, considerado a parte, é um dos passoa mais humanos de sua obra, é por certo o mais perfeito como psychologia e originalidade.

 

A mesma conclusão posso tirar, pelo menos, dos textos poéticos que consegui garimpar na pesquisa da obra de alguns poetas modernistas: Mário e Oswald de Andrade, Vinícius de Moraes, Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade. Claro, deve-se levar em conta que, por problemas pessoais que não vem aqui ao caso, não foi possível realizar uma pesquisa mais completa. Mas dos poucos exemplos que pude apreender, me veio uma conclusão que me deixou meio decepcionado: apesar de amarem o Cinema, poucos foram os poetas modernistas que pesquisei que o levaram para a sua poesia — mesmo como tema.

De Mário, o crítico severo mas esperançoso de Do Rio a São Paulo para Casar, só achei um verso referente ao Cinema: na sua Ode ao Burguês. E ainda assim, não foi nada favorável a ele — pelo menos, enquanto ligado à diversão de uma burguesia conservadora:

 

Morte ao burguês-mensal!

ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!

 

De Oswald de Andrade, muito menos. E olha que o Cinema aparece em alguma prosa sua. Em Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) — ele próprio um romance de estrutura quase que de roteiro cinematográfico —, ele está presente nos quase rocambolescos episódios envolvendo o herói (?) e Rolah, em torno de uma empresa de cinema que acaba falindo; e em Serafim Ponte Grande (1928, publicado em 1933), com referências a uma amante do herói, Dorotéia, e o filme que ela interpreta, "Amor e Patriotismo".[4] Na poesia, nada — pelo menos, nos livros publicados até hoje. O mais perto que podemos nos aproximar de um ícone cinematográfico — a diva de Cinema — pode estar no poema reclame, de Pau-Brasil (1924):

 

RECLAME

 

            Fala a graciosa atriz

            Margarida Perna Grossa

Linda cor — que admirável loção

Considero linda cor o complemento

Da toalete feminina da mulher

Pelo seu perfume agradável

E como tônico do cabelo garçone

Se entendam todas com seu Fagundes

Único depositário

Nos E.U. do Brasil

 

Ainda assim, quem é a graciosa atriz Margarida Perna Grossa? Uma estrela do incipiente Cinema mudo brasileiro? Não creio. Uma atriz de teatro ligeiro? Possível. É claro que muitas atrizes de teatro também trabalharam em Cinema — mas nem todas.

A poesia de Murilo Mendes está ligada à ala mais católica e espiritualista do Modernismo. Mas antes de se render às coisas do espírito, escreveu um livro nada cristão de poemas chamado História do Brasil (1932) — uma história satírica do Brasil, ao estilo do Barão de Itararé e de Mendes Fradique,[5] que ele acabaria renegando.[6] Não deveria.

Mas que diabos o Cinema tem a ver com isto? Bem, num dos poemas — o sétimo, Divisão das Capitanias — há um trecho em que Murilo Mendes põe o Cinema americano na jogada, através de sua função principal: a de vendedor do modo de vida... e dos produtos da terra do Tio Sam, o que justifica toda a estratégia de domínio do mercado exibidor — via agrados, ameaças, manobras de bastidores e, é claro, uma copiosa produção anual de filmes. Dêem uma olhada no trecho, onde o cowboy (figura do imaginário do Cinema americano) aparece:

 

A sexta aos americanos

Trazem fitas de cow-boy

Os colonos vêem a fita

Ficam logo entusiasmados,

Fazem negócio com eles.

 

Um dos poetas mais ligados ao Cinema foi Vinícius de Moraes — aliás, triplamente: como cronista cinematográfico, como aspirante a cineasta e, por algum tempo (ninguém é perfeito mesmo...), como censor. Sobre este último, temos que pensar que o Poetinha não devia gostar de passar a tesoura no celulóide, só encarando o trabalho pelo leite das crianças. Isso pode ser bem entendido em dois versos de O Falso Mendigo (Novos Poemas):

 

Fala com o Presidente para fecharem todos os cinemas

eu não agüento mais ser censor.

 

            O cineasta Vinícius não chegou a vingar, por mais que ele assim o desejasse e assim o colocasse em uma pequena autobiografia em versos para os célebres Arquivos Implacáveis de João Condé:

 

Dizem-me poeta; diplomata

Eu o sou, e por concurso

Jornalista por prazer

Nisso tenho um grande orgulho

Breve serei cineasta (Ativo). Sou materialista.

Deito mais tarde que devo

E acordo antes do que gosto.

Fui auxiliar de cartório Censor cinematográfico Funcionário (incompetente) Do Instituto dos Bancários. Atualmente sou segundo Secretário de Embaixada. Formei-me em Direito, mas Sem nunca ter feito prática. Infância: pobre mas linda Tão linda que mesmo longe Continua em mim ainda.[7]

 

Tudo bem: o poeta se vingou solenemente bem desta frustração:

 

O cinema é infinito

- Não se mede.

Não tem passado nem futuro.

Cada imagem

Só existe interligada

A que a antecedeu e a que a sucede."

 

(Vinícius de Moraes - Livro de Sonetos)

 

Já ao cronista deve-se uma façanha incomum em plenos anos 40: a célebre polêmica entre o Cinema mudo e o Cinema sonoro, a quem cantou também em verso:

 

"O silêncio dos grandes momentos da vida,

dos grandes momentos do amor;

O silêncio do Cristo orando no horto;

O silêncio da música de Bach;

O silêncio das ruas de mulheres,

onde tantos gritos, risos e amuadas se contrapõem,

criando um indivísivel

silêncio...

e o silêncio de Beethoven surdo,

criando na sua surdez...

E o silêncio do imortal Carlitos...

É qualquer coisa assim o silêncio em cinema;

O mais íntimo, o mais permanente,

o mais poderoso da imagem.

Uma espécie de espaço essencial,

onde todos os seus elementos componentes

vão milagrosamente se congregar, se dispor e se harmonizar em emoção e beleza.

Coisa misteriosa essa de silêncio." [8]

 

E, é claro, também tinha suas admirações em relação ao Cinema. Carlitos, claro, é uma delas, mas desta só achei uma interessante crônica cinematográfica de 1952 Chaplin no Brasil..., imaginando o que aconteceria se Chaplin viesse viver no Brasil, caso fosse expulso dos EUA — o que acabaria acontecendo naquele ano.[9] Outra admiração é Eisenstein, a quem dedicou o Tríptico na Morte de Serguei Mikhailovich Eisenstein, escrito em 1948, quando o cineasta morreu:

 

I

 

Camarada Eisenstein, muito obrigado

Pelos dilemas, e pela montagem

De Canal de Ferghama, irrealizado

E outras afirmações. Tu foste a imagem

 

Em movimento. Agora, unificado

À tua própria imagem, muito mais

De ti, sobre o futuro. Boa viagem

 

Camarada, através dos grandes gelos

Imensuráveis. Nunca vi mais belos

Céus que esses sob que caminhas, só

 

E infatigável, a despertar o assombro

Dos horizontes com tua câmara ao ombro...

Spassiva, tovarishch. Khorosho.

 

II

 

Pelas auroras imobilizadas

No instante anterior; pelos gerais

Milagres da matéria; pela paz

Da matéria; pelas transfiguradas

 

Faces da História; pelo conteúdo

Da História e em nome de seus grandes idos

Pela correspondência dos sentidos

Pela vida a pulsar dentro de tudo

 

Pelas nuvens errantes; pelos montes

Pelos inatingíveis horizontes

Pelos sons; pelas cores; pela voz

 

Humana; pelo Velho e pelo Novo

Pelo misterioso amor do povo

Spassiva, tovarishch. Khorosho.

 

III

 

O Cinema é infinito — não se mede.

Não tem passado nem futuro. Cada

Imagem só existe interligada

À que a antecedeu e à que a sucede.

 

O Cinema é a presciente antevisão

Na sucessão de imagens. O Cinema

É o que não se vê, é o que não é

Mas resulta: a indizível dimensão.

 

Cinema é Odessa, imóvel na manhã

À espera do massacre; é Nevski; é Ivan

O Terrível; és tu, mestre! Maior

 

Entre os maiores, grande destinado...

Muito bem Eisenstein. Muito obrigado.

Spassiva, tovarishch. Khorosho.

 

Mesmo tendo exercido atividades ligadas ao Cinema, Vinícius só perde para outro poeta ligado ao Cinema: Carlos Drummond de Andrade.

Ao contrário de Vinícius, a única ligação de Drummond com o Cinema sempre foi como espectador. No entanto, o espectador Drummond sempre trouxe o cinema para uma boa parte de sua obra. E rica em ícones do cinema. O próprio Cinema — a reminiscência cinematográfica de sua juventude em Belo Horizonte — rendeu uma série de poemas em Esquecer para lembrar - Boitempo III (1979), na parte Mocidade Solta: "A Difícil Escolha", "O Grande Filme, "O Lado de Fora", "Orquestra", "Rebelião" e "O Fim das Coisas". Pequenos e belos, que valem a pena serem lidos, mas não posso transcrever aqui, senão este trabalho vira uma tese de mestrado...

O primeiro ícone que aparece é, sem dúvida, a estrela de cinema — no caso, Greta Garbo, admiração platônica imorredoura do poeta. Ela inspiraria, alguns anos mais tarde, uma ficção deliciosa, Garbo: Novidades (em Fala, Amendoeira), uma suposta visita incógnita da diva à Belo Horizonte, lá pelos idos de 1929.

Mas também certamente deve ter inspirado um dos poemas de A Rosa do Povo (1945): O Mito. Quem seria Fulana — o mito que o poeta destrincha e desnuda neste poema, depois de cair de quatro por ela? Seria uma dama da alta sociedade? Ou uma estrela inatingível de Cinema, a quem ele questiona sua "quase-divindade" para depois tentar destruí-la?

 

Amo fulana tão forte,

Amo Fulana tão dor,

Que todo me despedaço

E choro, menino, choro.

 

Mas Fulana vai se rindo...

Vejam Fulana dançando.

No esporte ela está sozinha.

No bar, quão acompanhada.

 

E Fulana diz mistérios,

Diz marxismo, rimmel, gás.

Fulana me bombardeia

No entanto sequer me vê.

 

(...)

 

Sou eu, o poeta precário

Que fez de Fulana um mito,

Nutrindo-me de Petrarca,

Ronsard, Camões e capim;

 

Que a sei embebida em leite,

Carne tomate e ginástica,

E lhe colo metafísicas,

Enigmas, causas primeiras.

 

Mas, se tentasse construir

outra Fulana que não

Essa de burguês sorriso

E de tão burro esplendor?

 

Mudo-lhe o nome; recorto-lhe

um traje de transparência;

já perde a carência humana

e bato-a; de tirar sangue.

 

(...)

 

E nessa fase gloriosa,

De contradições extintas,

eu e Fulana, abrasados,

queremos... que mais queremos?

 

E digo a Fulana: Amiga,

Afinal nos compreendemos.

Já não sofro, já não brilhas,

Mas somos a mesma coisa.

 

(Uma coisa tão diversa

da que pensava que fôssemos.)

 

E, é claro, Carlitos. Em O Amor Bate na Aorta, de Brejo das Almas (1934), o filme de Carlitos é um elemento comezinho no desalinho amoroso de juventude que o poema evoca:

 

Meu bem, não chores,

hoje tem filme de Carlito.

 

Mas Carlitos acabaria tendo a sua grande homenagem de Drummond no Canto ao Homem do Povo Charles Chaplin (A Rosa do Povo, 1945), uma filmografia poético-evocativa de Chaplin até aquela época (isto é, até O Grande Ditador, 1940). Em especial, alguns de seus melhores longa-metragens. Nele, o ícone de Carlitos aparece permeado pela preocupação social e inclinações para a esquerda, presentes em A Rosa do Povo.

Veja como o poeta vê o solitário Natal de Carlitos em Em Busca do Ouro (1922):

 

O próprio ano novo tarda. E com ele as amadas.

No festim solitário teus dons se aguçam.

És espiritual e dançarino e fluido,

Mas ninguém virá aqui saber como amas

Com fervor de diamante e delicadeza de alva,

Como, por tua mão, a cabana se faz lua.

Mundo de neve e sal, de gramofones roucos

Urrando longe o gozo de que não participas.

Mundo fechado, que aprisiona as amadas

E todo desejo, na noite, de comunicação.

Teu palácio se esvai, lambe-te o sono,

Ninguém te quis, todos possuem,

Tudo buscastes dar, não te tomaram.

 

Então caminhas no gelo e rondas o grito.

Mas não tens gula de festa, nem orgulho

Nem ferida nem raiva nem malícia.

És o próprio ano-bom, que te deténs. A casa passa

Correndo, os copos voam,

Te procuram na noite... e não te vêem, tu pequeno,

Tu simples, tu qualquer.

 

A cega e o rico pinguço de Luzes da Cidade (1931) e a fábrica desumana de Tempos Modernos (1936):

 

Uma cega te ama. Os olhos abrem-se. Não, não te ama. Um rico, em álcool,

É teu amigo e lúcido repele

Tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos

O que há de água, de sopro e de inocência

No fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos

que cultuamos, falsos: flores pardas,

anjos desleais, cofres redondos, arquejos

poéticos acadêmicos; convenções

do branco, do azul e roxo; maquinismos,

telegramas em série, e fábricas e fábricas

e fábricas de lâmpadas, proibições, auroras.

Ficaste apenas um operário

Comandado pela voz colérica do megafone.

És parafuso, gesto, esgar.

Recolho teus pedaços: ainda vibram,

Lagarto mutilado.

 

E, é claro, o discurso final de O grande ditador:

 

"Foi bom que te calasses

Meditavas na sombra das chaves,

das correntes, das roupas riscadas, das cercas de arame,

juntavas palavras duras, pedras, cimento, bombas invectivas,

anotavas com lápis secreto a morte de mil, a boca sangrenta

de mil, os braços cruzados de mil.

E nada dizias. E um bolo, um engulho

formando-se. E as palavras subindo.

Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.

Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopro aos exaustos.

Dignidade da boca aberta em ira justa e amor profundo,

crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores,

ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança.

 

Neste ponto — e até porque precisamos seguir adiante —, Drummond tem muito em comum com outro poeta que gosta de Cinema e de Carlitos (afinal, ainda está vivo, graças a Deus): Manoel de Barros. Ou por outra, se o Cinema e seus ícones estão bem presentes na poesia de Drummond, a de Manoel de Barros é pura imagem cinematográfica.

 

Sua poesia já se alimentava de imagens, de quadros e de filmes. Chaplin o encanta por sua despreocupação com a linearidade. Para Manoel, os poetas da imagem são Federico Fellini, Akira Kurosawa, Luis Buñuel ("no qual as evidências não interessam") e, entre os mais novos, o americano Jim Jarmusch. Até hoje se confessa um "...'vedor' de cinema. Mas numa tela grande, sala escura e gente quieta do meu lado".[10]

 

Vejamos alguns versos:

 

Sou um sujeito cheio de recantos.

Os desvãos me constam.

Tem hora leio avencas.

Tem hora, Proust.

Ouço aves e beethovens.

Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin.

 

O dia vai morrer aberto em mim.

 

(Livro Sobre Nada, 1996)

 

 

2- UMA ESTRADA DE PÓ E (ALGUMA) ESPERANÇA

 

Então continuemos. Não é tempo de homens partidos, graças a Deus...

Já observamos que a relação entre a poesia modernista e o Cinema não rendeu muitos frutos interessantes. Aí é que a coisa fica ligeiramente desigual: se a poesia pós-1922, em todas as fases do Modernismo, não se interessou muito pelo Cinema, este ficou muito interessado pela poesia... e pelos poetas.[11] Em tempo: peço desculpas se eu me esqueci de falar sobre algum filme que consta da filmografia que acompanha este trabalho. É que só posso falar dos filmes ligados ao tema que eu vi, e eu não tive o prazer (ou o desprazer, dependendo do crítico que o analisa...) de assistir alguns deles.

Há duas maneiras de fazer isso. A primeira forma é através do documentário — isto é, da abordagem da vida do poeta, acompanhada de seus versos, é claro. A segunda — mais rara porque mais difícil — é a transformação do poema em imagens. Esta última comporta duas maneiras: uma interpretação dos versos, numa tentativa de transformá-los em imagens; ou a criação de uma história baseada no poema.

Tomemos dois exemplos em torno de um mesmo poeta: Manuel Bandeira. (Em tempo: Manuel Bandeira foi um dos poetas que praticamente ignorou o Cinema do imaginário de sua poesia.) O primeiro exemplar do primeiro exemplo é Manuel Bandeira: O Poeta do Castelo (1959), um dos dois primeiros curtametragens de Joaquim Pedro de Andrade — ele mesmo íntimo de vários "monstros sagrados" do Modernismo, graças ao pai, o igualmente modernista Rodrigo Mello Franco de Andrade[12] —, financiados pelo Instituto Nacional do Livro.[13] Basicamente, a câmera acompanha o cotidiano fleumático e solitário (ainda que encenado) do poeta — a ida à padaria para comprar leite, o café (ou chá) da manhã, com torradas, o telefone que o poeta atende (em entrevista, não me lembro onde foi publicada, Bandeira lembra que este plano seu ao telefone foi "a sua melhor atuação — posto que única — no Cinema, visto que o telefone estava desligado...), o momento em que sai de casa etc — tendo como fundo sonoro a voz do próprio Bandeira recitando seus versos. Os últimos planos do filme — Bandeira andando pela rua e, em seguida, a câmera andando pela rua — casam-se bem com a voz de Bandeira recitando Vou me embora para Pasárgada: parece que o poeta, na verdade, está indo para tal terra onde é amigo do rei.

No segundo caso, temos dois exemplos. Um é Tragédia Brasileira (2001), canhestra adaptação do poema homônimo por Camilo Gajardo. O outro é Eu sei que você sabe (1995), de Lina Chamie, baseado no Rondó dos Cavalinhos. Ao ar livre, no mesmo prado em que os cavalinhos estão correndo (ou melhor, saltando), foram postas mesas, garçons, maîtres e clientes da mais alta sociedade — os "cavalões" que, entre um ou outro namorico, reclamações com os garçons e outras tolices ditas e feitas, estão comendo...

Outro poeta que ignorou o Cinema em sua obra poética foi João Cabral de Melo Neto. Nem por isso os cineastas o ignoraram. Zelito Viana foi um deles, realizando Morte e Vida Severina (1975), mas como não assisti não posso falar sobre ele. Mas posso falar de Recife de dentro pra fora (1997), da diretora Kátia Mesel. Aparentemente é um documentário sobre Recife, ilustrado com versos do poeta — versos que fazem uma interpretação poética da cidade. A partir deles e das imagens, Kátia faz com imagens a sua interpretação poética, junto com os versos do poeta. Neste caso, temos um documentário não sobre o poeta, mas sobre uma poesia e o objeto dela.

Para não sairmos de Recife e da “geração de 45”, outro poeta mereceu virar filme: Carlos Pena Filho (1929-1960). Pouco tive oportunidade de ler a sua poesia, salvo um poema de Natal que eu adoro:

 

Sino, claro sino,

 tocas para quem?

- Para o Deus menino

que de longe vem.

- Pois se o encontrares

traze-o ao meu amor.

- E o que lhe ofereces

velho pecador?

- Minha fé cansada, meu vinho, meu pão,

meu silêncio limpo, minha solidão".

 

Em Soneto do desmantelo blue (1993), o diretor Cláudio Assis faz um painel multifacetado de sua poesia. Encarnado por Henrique Amaral, Carlos Pena Filho percorre uma Recife onírica, povoada por cenários, eventos (Carnaval) e personagens de sua poesia.

A Babel da Luz - Helena Kolody (1992), de Sílvio Back, se resume apenas a isso: a própria poeta falando seus versos frente à câmera. Mas Back transforma o que poderia ser chato num filme luminoso — literalmente, graças aos jogos de luz em meio ao despojamento (o cenário, basicamente consiste apenas numa cadeira, onde a própria Helena Kolody está sentada e, sobretudo, à face luminosa da própria Helena Kolody ao falar seus versos).

 

Que tal irmos agora para os poetas que eu sei que tiveram o Cinema em sua poesia?

Pobre Poetinha Vínícius de Moraes, não conseguiu se tornar cineasta. Mas o tempo e o Cinema se encarregariam de vingá-lo por não conseguir seu intento. Primeiro: sua filha primogênita, Suzana de Moraes, tornou-se cineasta (Em 1994, realizou o longa-metragem Mil e uma). Seu primeiro filme, claro, só podia ser sobre o pai: Vinícius de Moraes, um rapaz de família (1972) — basicamente, uma quase crônica familiar (o Poetinha dormindo no sofá, curando-se de um porre do "cachorro engarrafado", isto é, o uísque, recebendo os filhos e amigos em casa etc.), temperada com depoimentos e versos do próprio Vinícius.

Em 1976, um poema de Vinícius se transformava em filme de longa-metragem: pelas mãos de Luiz Fernando Goulart, a Balada das duas mocinhas de Botafogo (Novos Poemas II) virava Marília e Marina. Um filme até bonito, que se sustenta principalmente na boa atuação de duas atrizes estreantes (na época), Denise Bandeira e Kátia D'Ângelo. Mas a narrativa acadêmica demais, com influências da telenovela, diluíram muito do que havia de forte e pungente no poema original. (Ainda assim, conseguiu a façanha de ser bem superior a uma nova versão feita em 2006: o curta Balada das duas meninas de Botafogo, de Fernando Valle e João Caetano Feyer, onde Guta Stresser e Fernanda Boechat são absurdamente desperdiçadas como Marília e Marina.)

Em 1996, as irmãs Toshie e Yoko Nishio (a primeira, aluna de Cinema da UFF; a segunda, de Belas-Artes da UFRJ) fazem um curta de animação, Uma Casa Muito Engraçada, sobre um poema infantil do Poetinha.[14] A animação é um tanto minimalista: apenas a casa, transformada em ser vivo que, à medida que a música segue (interpretada por um coral de crianças), vai perdendo o telhado, o assoalho e outras coisas, até ficar apenas um rosto infantil, que chora baixinho. Toshie e Yoko devem ter achado o desfecho muito triste, pois logo após este choro silencioso, fazem com que o mesmo coro de crianças cante uma espécie de paródia do poema; a "casa" volta a rir, enquanto recupera a telha, o chão, a rede etc. No final, se metamorfoseia em Carlitos e vai-se embora pela estrada. Uma gracinha.

Por coincidência, o ano de Uma Casa Muito Engraçada, também foi o mesmo em que a câmera de Cinema se arrumou para a pedra. Em 1996, Joel Pizzini estreava como cineasta com um curta-metragem sobre a obra de Manoel de Barros, Caramujo Flor . Lembro-me de que muita gente chamava este filme jocosamente de "quem é quem no Mato Grosso"... O motivo é a presença no filme de ilustres matogrossenses, como Tetê Espíndola, Almir Sater, Aracy Balabanian e, sobretudo, Rubens Corrêa e Ney Matogrosso, que encarnam o poeta em fases diferentes da vida. Piadinhas à parte, sua imagem mais recorrente, justamente, é a do caramujo — símbolo da ligação da poesia de Manoel de Barros com a terra. Uma imagem obsedante, num filme belissimamente poético. Ou por outra: onde Pizzini faz poesia com a imagem, baseado nas imagens de um poeta.

 

Finalmente, Drummond. O Cinema brasileiro também retribui, aos poucos, a sua presença nos versos do poeta, através de três curtas (não tive o prazer de conhecer Quadrilha , de Mariângela Grando, portanto só o citarei) e dois longas.

Em 1973, o escritor Fernando Sabino ainda tentava se firmar também como um homem de negócios. Depois de duas editoras, a Editora do Autor (sócio de 1960 a 1966) e a Sabiá (vendida para a José Olympio em 1972), sua próxima empreitada é uma produtora de documentários, a Bem-Te-Vi Filmes, em parceria com o cineasta David Neves.

Entre outras produções, a Bem-Te-Vi faz uma série de documentários cinematográficos "Literatura Nacional Contemporânea", sobre dez escritores brasileiros — se não me falha a memória, para a série Globo-Shell Especial. Um dos escritores, claro, foi Drummond, tema de O fazendeiro do ar (1974). Como Sabino e Drummond se conheciam bem, o filme tem um aspecto quase familiar, com direito a uma brincadeira de esconde-esconde do poeta nas colunas do Palácio Gustavo Capanema, onde trabalhou por muitos anos[15] — brincadeira tanto dele quanto da montagem — que termina com um riso moleque — raro num homem visto como tímido e fechado. Como bom mineiro.

Dois filmes de longa-metragem foram feitos com base ou inspiração em poemas seus. Destes, um é clássico do Cinema brasileiro moderno: O Padre e a Moça (1965), de Joaquim Pedro de Andrade, baseado no poema homônimo — ou quase, pois se chama "O padre, a moça" (Lição de Coisas, 1962). Sobre esta fuga metafísica e quase blasfema de sacerdote e mulher, antes dela, Joaquim Pedro cria uma história fortíssima, envolvendo o desejo e a paisagem social da região onde foi filmado, antes de se ocupar com a fuga propriamente dita, lá para a última meia hora. A solução não poderia ter sido mais feliz, sobretudo por conta da mise-en-scène rigorosa de Joaquim e da interpretação de Paulo José (o padre) e Helena Ignez (a moça).

Assim como O Padre e a Moça, Manhã (1989), de Zeca Pires e Norberto Depizzolatti, baseado em Morte do leiteiro (A Rosa do Povo, 1945), transfere o cenário para uma cidadezinha da serra catarinense (os diretores eram alunos de Comunicação Social da UFSC, que produziu o filme). O filme opta por transcrever a ação do poema quase que literalmente, acrescentando alguns detalhes diferentes: o jovem leiteiro tem família (um tio) e uma namorada; o homem que o mata não é um chefe de família apavorado por ladrões, mas um homem casado que vai com sua amante (numa relação em crise, pois os dois vivem brigando) para uma casa na cidadezinha, que se apavora com um barulho nos fundos, pensando que é o marido da mulher... Fora estes detalhes, até que é bem feito e simpático.

O outro longa-metragem, que ainda será reconhecido como um clássico, é Cabaret Mineiro (1980), de Carlos Alberto Prates Correia. Oficialmente, a sinopse diz que o filme se baseia no poema homônimo (Alguma Poesia, 1930). Na verdade, o diretor se baseia em outros textos da literatura mineira, na música popular e folclórica, para contar — se é que isto é possível, já que é um filme que manda a linguagem acadêmica do Cinema clássico-narrativo ir lamber sabão — a viagem de um jogador de cartas, chamado sintomaticamente de Paixão, por cidades do norte de Minas Gerais, (em especial da região ao redor de Montes Claros, universo mítico de Prates), às voltas com situações amorosas e insólitas. Um dos episódios do filme pode realmente se basear no poema: do meio para o final, Paixão encontra Avana, a dançarina espanhola de Montes Claros — uma dançarina bem mais glamurosa que no poema, pois quem a encarna é uma Tânia Alves jovem e belíssima — fogem para Grão-Mogol, vivem por algum tempo, até que Paixão se cansa e vai-se embora com outra mulher... pobre dançarina...

 

CONCLUSÃO

 

A conclusão deste filme, quer dizer, desta história? Talvez seja pretensão minha dizer que o Cinema foi mais generoso com a poesia moderna do que esta com ele. O melhor que podemos dizer é que, se a poesia modernista não trouxe mais o cinema para seus versos, foi porque outras coisas também a mobilizaram de 1922 para cá. O Cinema brasileiro moderno (isto é, dos anos 60 para cá) parece compreender esta falta e parece compensá-la com juros. Talvez porque poetas e cineastas tenham algo em comum: mesmo confrontados com uma dura realidade, ambos preferem olhar o mundo com as lentes do sonho—seja um sonho intangível, seja um sonho com os pés no chão. Mas sem sonho, parecem que eles não podem funcionar.

 

São Paulo, 2 de janeiro de 2002.

 

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Carlos Drummond de. - Poesia Completa e Prosa – Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1988.

                                                        - A Rosa do Povo – Rio de Janeiro, Record, 1987.

                                                        - Boitempo III – Rio de Janeiro, José Olympio, 1974.

ANDRADE, Mário de. - Poesias Completas – São Paulo, Martins, 1974.

                                    - Texto sobre O Garoto, de Chaplin – Klaxon n. ... – São Paulo, setembro de 1922. Transcrito em Contracampo n. 15 – www.contracampo.com.br.

ANDRADE, Oswald de – Pau-Brasil – São Paulo, Editora Globo, 1990.

BANDEIRA, Manuel – Estrela da Vida Inteira – Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005.

BENTES, Ivana – Joaquim Pedro de Andrade: a revolução intimista – Rio de Janeiro, Relume-Dumará / RioArte, 1999.

CÉSAR Ana Cristina – Literatura não é documento – Rio de Janeiro, Funarte, 1977.

GALVÃO, Maria Rita – Crônica do Cinema Paulistano – São Paulo, Ática, 1974.

MACHADO, Rubens – "O Cinema paulistano e os ciclos regionais sul-sudeste" – in História do Cinema Brasileiro – São Paulo, Art Editora, 1987.

MENDES, Murilo – História do Brasil (1932) – in Poesia Completa e Prosa – Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1990.

MORAES, Vinícius de, e CALIL, Carlos Augusto (org.) – O Cinema de Meus Olhos – São Paulo, Companhia das Letras / Cinemateca Brasileira, 1991.

 

FILMOGRAFIA SELECIONADA

 

FILMES (Curtas e longas)

 

Manuel Bandeira:

 

Manuel Bandeira, o poeta do castelo (Manuel Bandeira).

Direção: Joaquim Pedro de Andrade

Produção: Saga Filmes / Sérgio Montagna

RJ, 1959, p&b, 10 min, 35 mm

 

Eu Sei que Você sabe

Direção: Lina Chamie

Produção:

SP, 1995, cor.

 

Carlos Drummond de Andrade:

 

O fazendeiro do ar (Carlos Drummond de Andrade)

Direção: Fernando Sabino e David Neves

Produção: Bem-te-vi Filmes

1974, cor, 10min. 35 mm.

 

Quadrilha (Carlos Drummond de Andrade)

Direção: Mariangela Grando

 

Manhã (Baseado em “Morte do leiteiro” de Carlos Drummond de Andrade)

Direção: Zeca Pires e Norberto Depizzolatti.

1989 35 mm.

 

O Padre e a Moça (a partir de um poema de Carlos Drummond de Andrade)

Direção: Joaquim Pedro de Andrade

1965, P&B, 90 min., 35mm.

 

Cabaret Mineiro (baseado, entre outros textos, no poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade).

Direção: Carlos Alberto Prates Correia

1980, Cor, 85 min., 35mm.

 

Vinícius de Moraes:

 

O Mergulhador (Vinícius de Moraes)

Direção: Ana Maria Magalhães

 

Vinícius de Moraes, um rapaz de família.

Direção: Suzana de Moraes

 

Marília e Marina

Direção: Luiz Fernando Goulart

1976

 

Balada das Duas Mocinhas de Botafogo

Direção: Fernando Valle e Joao Caetano Feyer

Elenco: Alexandre Borges, Fernanda Boechat, Guta Stresser, Malu Valle

2006 - 35mm – 14 min.

 

Manuel de Barros:

 

Caramujo Flor (Manuel de Barros)

Direção: Joel Pizzini

SP, 1996, cor, 22 min. 35 mm.

 

João Cabral de Mello Neto:

 

Recife de dentro pra fora (João Cabral de Melo Neto)

Direção: Kátia Mesel

Produção: Arrecife Produções

PE, 1997, cor, 22 min, 35 mm.

 

Morte e Vida Severina

De Zelito Vianna

RJ, 1977, 85 minutos

 

Outros poetas:

 

O velho, o mar e o lago (homenagem a Mário Lago).

Direção: Camilo Cavalcanti

PE, 2000, p&b, 20 min., 35 mm.

 

Soneto do desmantelo blue (Carlos Pena Filho)

Direção: Cláudio Assis

PE, 1993, p&b, 8 min., 35mm.

 

A Babel da Luz - Helena Kolody (Poeta paranaense)

Direção: Silvio Back

RJ-PR, 1992, cor, 10 min., 35mm.

ANTONIO PAIVA FILHO é editor de SOMBRAS ELÉTRICAS.

 

© 2002 – Antonio Paiva Filho.

© 2012 – SOMBRAS ELÉTRICAS



[1] Sobre este assunto, recomendo GALVÃO, Maria Rita – Crônica do Cinema Paulistano. Ver BIBLIOGRAFIA.

[2] MACHADO, Rubens – "O Cinema paulistano e os ciclos regionais sul-sudeste" – in História do Cinema Brasileiro – São Paulo, Art Editora, 1987 – pág. 106.

[3] MACHADO, Rubens, op. cit. – pág. 106.

[4] Rolah (Miramar) e Dorotéia (Serafim Ponte Grande) são as encarnações literárias de Carmen Lídia, um dos amores de Oswald.

[5] Barão de Itararé foi o pseudônimo adotado pelo humorista Aparício Torelly (1895-1971) a partir de 1930, referente ao seu “heroísmo” durante a batalha de Itararé – a "batalha que não houve", na Revolução de 1930. Já Mendes Fradique foi o pseudônimo do médico capixaba José Madeira de Freitas (1893-1944), com os quais assinou História do Brasil pelo método confuso (1919), Gramática portuguesa pelo método confuso, e um romance, Dr. Voronoff (1926).

[6] Sobre isto, ver SANT'ANNA, Affonso Romano de – A Proclamação e Murilo Mendes – in Dossiê 100 anos de República - Revista USP nº 3 – https://www.usp.br/revistausp/n3/affonso.html.

[7] MORAES, Vinícius de – Auto-Retrato.

[8] Vinícius de Moraes, sobre o cinema mudo, no diário A Manhã, 27 de maio de 1942.

[9] Ver em MORAES, Vinícius de – O Cinema de Meus Olhos – São Paulo, Cia. Das Letras / Cinemateca Brasileira, 1992.

[10] Do site Releituras (www.releituras.com/manob_arro.htm).

[11] A respeito deste assunto, recomendo CÉSAR Ana Cristina – Literatura não é documento. Ver BIBLIOGRAFIA.

[12] Historiador, Rodrigo Mello Franco de Andrade (1898-1969) organizou e dirigiu, por longos anos, o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).

[13] O outro curta é O Mestre de Apipucos, sobre Gilberto Freire.

[14] Originalmente, era um dos poemas infantis do livro Arca de Noé. Como foram musicados algum tempo depois por Toquinho, muita gente pensa que são letras de música.

[15] Sede do Ministério da Educação de 1944 e marco da arquitetura brasileira moderna. Drummond trabalhou lá duas vezes: como chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema (1933-45), embora só trabalhasse lá por um ano, já que o ministério só iria para lá em 1944; a segunda, como chefe do arquivo do SPHAN, até 1961.