SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 1 - Dezembro de 2003

VER COM OLHOS LIVRES

O ÚLTIMO CINEASTA AMADOR

Fernanda Baroni

E toda a história abaixo começou com esta pequena câmera, a Pathé-Baby...

 

É incrível como uma jogada de marketing viraria mote para uma forma de amor ensandecido pelas imagens em movimento.

 

Assim como as camcorders em vídeo, as filmadoras em bitolas menores — cuja pioneira foi a célebre Pathé-Baby (9,5mm), criada em 1922 —  foram criadas para que qualquer cidadão pudesse registrar suas próprias imagens familiares, como álbuns de família a 24 quadros por segundo. Os fabricantes só não sabiam que estavam criando a mais fértil sementeira de cineastas em botão (cujo exemplo mais clássico é Humberto Mauro: Valadião, o Cratera, seu 1º filme, em parceria com Pedro Comello, foi feito em 9,5mm.) até o fim do formato.

 

Mais ainda: não sabiam que estavam criando apaixonados pelo Cinema amador. Um deles se chama Aloísio Araújo. A história deste fanático por Cinema amador — dono de um respeitável acervo de imagens em 9,5mm e 8mm — está neste texto de Fernanda Baroni, publicado originalmente no Casarão (Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense) nº 26 (1998) e, com mais detalhes e emoção, num documentário em vídeo em que participou como produtora e co-roteirista, Amador, de Guilherme Sarmiento e Márcia Bessa (Acervo IACS-UFF).

 

Uma sala de cinema em que os espectadores têm de levar suas próprias cadeiras. Um gerador elétrico que abastece exclusivamente esse ambiente, enquanto o resto da cidade vive à luz de lampiões. Foi nesse cenário que nasceu a grande paixão de Francisco Aloísio Fontenelle de Araújo pelo cinema. Aos 6 anos de idade, ele assistiu ao seu primeiro filme e aos 18 registrou suas primeiras imagens. Hoje, aos 86 anos, seu Aloísio acumula a experiência de quem se dedicou ao cinema amador por 60 anos e coleciona equipamentos e literatura especializada desde 1928.

 

A infância de Aloísio foi marcada pelo cinema. O menino vivia com os pais e sete irmãos na cidade de Camocim, litoral do Ceará. “Vi meu primeiro filme em 1916. Ir ao cinema era a grande diversão dos moradores da cidade. Eu assistia a umas comédias francesas, com o cômico Bertoldinho, em que uma criança subia pelas paredes e andava pelo teto da casa. Tinha também dramas franceses e italianos e alguns filmes de guerra. A sala de projeção ficava num prédio arrendado de meu pai, o gerador também pertencia à nossa família. Foi aí que nasceu a minha mania de cinema.”

 

Dois anos depois, Aloísio mudou-se com a família para o Rio de Janeiro. O menino cresceu e, junto com ele, o amor pelo cinema. Em 1928, trocou o projetor de brinquedo, que ganhara aos 9 anos, por sua primeira câmera amadora - uma Pathé Baby francesa. «A câmera era usada e junto com ela um projetor para filmes de 9,5 mm e quatro filmes para exibir para a família - um deles, inclusive, era de Carlitos.

 

Seu Aloísio relembra com riqueza de detalhes as histórias de cada filme que fez. Manuseando o projetor que ele próprio adaptou, exibe algumas das fitas numa tela colocada na parede da sala. São filmes de ficção estrelados por ele, sua mulher Ivone e os cinco filhos, alguns desenhos animados e documentos de viagens ou passeios em família. Histórias simples, criadas e produzidas por ele, que teve livros e revistas sobre cinema amador como suas únicas fontes de aperfeiçoamento técnico.

 

Ao longo da vida, seu Aloísio foi comprando novas câmeras amadoras, e hoje se orgulha de ter filmado em todas as bitolas cinematográficas. "Sempre comprava as câmeras de segunda mão, que eram mais baratas. Às vezes vendia uma ou outra para comprar uma melhor. Acho que cheguei a filmar em todas as bitolas que existiram no Brasil para amadores. Comecei com a Pathé Baby de 9,5 mm, e ao longo dos anos, fui armazenando filmes também em 8 mm standard, 16 mm, Super-8 e até no formato dos filmes profissionais de hoje, ou seja, em 35 mm, só que, no meu caso, também para amadores."

 

Uma das primeiras filmagens de seu Aloísio foi uma passagem bem rápida da chegada do presidente americano Herbert Hoover ao Rio de Janeiro, em 1928. Encostado a uma árvore, para evitar que sua pequena Pathé Baby tremesse (a câmera era movida a manivela), registrou o auto oficial com o visitante ilustre.

 

Além de autodidata em filmagem, seu Aloísio montou um laboratório em sua casa onde ele próprio revelava seus filmes e fazia adaptações nos projetores para conseguir melhores exibições. Não foi por acaso que foi um dos primeiros brasileiros a adaptar uma lente de cinemascope à sua câmera e ao projetor. "Eu comprei uma lente usada de 16mm para cinemascope. Na hora de filmar, colocava a lente na frente da câmera e ia filmando, depois, colocava novamente a lente no projetor na hora de exibir o filme. Era uma lente anamórfica que aumentava em duas vezes a largura da tela normal. Infelizmente, a influência da TV foi tão grande no cinema mundial que acabou com o cinemascope."

 

Seu Aloísio nunca chegou a ser um cineasta profissional. "Eu não tinha possibilidade de me profissionalizar. A dificuldade era muito grande, de maneira que fui levando assim, filmando a família, que eu gostava muito, e fazendo filmes sobre a paisagem, a natureza. Tinha vontade de fazer filmes melhores, mais perfeitos... Todas as vezes que surgia a oportunidade de filmar, fazia da melhor maneira possível. Era difícil, porque sempre comprei tudo usado, mas eu fiz o máximo que pude, fiz o possível."

 

O trabalho como técnico agrícola e, mais tarde, como veterinário no antigo estado da Guanabara, sustentou a família e rendeu a aposentadoria, que hoje nem é suficiente para as despesas. "É uma vergonha, minha aposentadoria não dá para nada. Hoje estou sendo ajudado por um irmão meu."

 

Seu Aloísio parou de filmar em 1988. "O cinema amador existiu no Brasil entre 1924, quando chegaram as primeiras câmeras amadoras, e 1988. Nessa época já não conseguia mandar revelar filmes Super-8, e a dificuldade para comprar filmes virgens e equipamentos foi aumentando cada vez mais. De modo que acabaram com o cinema amador".

 

Hoje, seu Aloísio divide o tempo entre as poucas gravações em vídeo que ainda faz da família e a pintura a óleo, que iniciou em 1973, após a morte da mulher - as paredes de seu apartamento, em São Francisco, estão forradas de telas suas. Apesar da qualidade seus quadros também nunca foram fonte de renda. “No começo eu vendia alguns quadros, mas a maioria eu doei. Tem quadro meu até no estrangeiro. Além desses aqui de casa, todos os meus filhos e irmãos têm alguns quadros meus. Dei muitos para os amigos também".

 

Quanto à câmera de vídeo, ela serviu mesmo para passar todos os filmes para o sistema VHS, de modo que a família pudesse ter cópias do material "Tive uma Panasonic, comprada em 1951, que troquei por uma JVC, pequenina porém mais aperfeiçoada há uns dois anos. Só sinto que o vídeo dure tão pouco, não sirva para a memória. São muito fininhos, muito fraquinhos, duram uns 10 anos agora. A facilidade é que não precisa revelar o filme, mas não serve para museu. O cinema foi inventado há mais de 100 anos e até hoje você encontra filmes originais, é como a fotografia, serve para a posteridade."

 

Seu Aloísio também pode ser considerado um colecionador. Vinte e quatro filmes de Carlitos, todos de pequena metragem, filmados a partir de 1914, nos Estados Unidos, dividem a estante com seus próprios filmes e outras raridades. E mais as 17 câmeras que guardou desde 1928 - das quais 15 ainda funcionam - cuidadosamente arrumadas junto com livros e revistas sobre cinema, alguns projetores e equipamentos de iluminação, completam seu acervo.

 

Quem imagina que terminou por aí, engana-se. Planos para o futuro? Sua primeira produção em vídeo: Seu Aloísio pretende gravar a história de quando veio pequeno, aos 8 anos de idade, para o Rio de Janeiro. Sorte de quem tiver a oportunidade de conferir.

 

Formada em Comunicação Social / Jornalismo pela UFF, FERNANDA BARONI é jornalista. Foi co-roteirista de Amador (1998), documentário sobre Aloísio Araújo.

 

© 1998 – Fernanda Baroni

  © Casarão 26 - 1998 – Instituto de Arte e Comunicação Social/Universidade Federal Fluminense

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