SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 5/6 – Novembro-Dezembro de 2005

LONG-SHOT: CINEMA E SEXUALIDADE(S), À LUZ DO MIX BRASIL 2005.

 

A DIFÍCIL ARTE DE VOAR

Mariana Kant

 

A jovem Flávia (qual é o nome da atriz, povo do Mix Brasil?), em Borboleta (2004), de Yan Yan Mak.

 

A propósito de Borboleta (Butterfly / Hudie): foi realizado por Yan Yan Mak em Hong Kong, no ano da graça de 2004. Não por acaso. Pelo acordo entre Inglaterra e China, que devolveu a cidade à segunda, em 1997, Hong Kong vai manter, por um período de 50 anos, o sistema capitalista – o que é um bom negócio da China, no melhor sentido da palavra. Se eles mantém a liberdade de expressão, aí já são outros quinhentos. Mas é bem melhor não perguntarmos isso. Pode não ser bom, para a saúde.

O que sabemos é que, na China, não é muito bom para um sossego de um chinês (ou chinesa) ser homossexual. E falar sobre homossexualidade também. Informa-nos o catálogo do l3º Mix Brasil (muito bonito, por sinal), na página da mostra Mundo Mix - Queer China: "O Festival de Cinema Gay & Lésbico de Pequim é o único evento a reunir filmes gays e lésbicos da China e vem sendo realizado com sucesso há dois anos." Vinha sendo: sua terceira edição, que seria em 2005, seria proibida em cima da hora pelo governo chinês. (Sabem como são os regimes autoritários: em nome de um falso-moralismo, seus dirigentes proíbem aos seus cidadãos tudo o que eles fazem na surdina...)

Desta forma, tanto "Borboleta" quanto os outros cinco filmes trazidos para o Mix Brasil' assumiram a forma de um protesto. Se por um lado, era o que cabia ser feito, por outro lado é uma pena, pelo menos no caso de "Borboleta": de certa forma, evita que nós vejamos este filme como um filme. E tem muita coisa de bom para se ver nele.

Claro, há o pano de fundo histórico e político – o massacre da Praça da Paz Celestial, os protestos na véspera da devolução de Hong Kong à China - mas isso deixo para outros comentaristas. O que me interessa são duas coisas: a dramaturgia e o elenco.

Borboleta se passa no passado e no presente de Flávia (não me pergunte o nome da excelente atriz que a interpreta: nao anotei o nome dos creditos – falha  minha - e o catálogo do Mix Brasil não traz a ficha técnica completa dos filmes – falha deles), numa narrativa paralela em que um e outro se alternam. No passado, era uma estudante secundária e, depois universitária, que vive um romance com outra colega, que terminou de modo abrupto; no presente, é uma professora de literatura chinesa, casada e com uma filha récem-nascida, que, de vez em quando, vai a Macau (ex-território português - aliás, foi o mais antigo território estrangeiro na China - devolvido três anos depois de Hong Kong nas mesmas bases) visitar a ex-namorada - que, da jovem rebelde do passado, tornou-se uma monja budista - e que, acidentalmente, conhece uma jovem cantora, por quem se apaixona. O dilema se instala: o respeitável casamento ou a paixão?

Se você pensou na palavra "melodrama", acertou. Assim como o cinema de Almodóvar, Borboleta dialoga com o melodrama cinematográfico clássico – este mesmo que, às vezes, corre o grande risco de resvalar para o dramalhão mais açucarado. Felizmente, não é a única coisa em comum entre Almodóvar e Yan Yan Mak: ambos também conseguem a façanha de driblar este abismo de formas diferentes. No caso de Borboleta, é a tradição de sutil e contida paciência própria da cultura chinesa: os planos mais longos, o ritmo mais lento, o desempenho mais contido e interiorizado dos atores – e, com isso, uma emoção mais viva, autêntica.

O elenco, aliás, é um show à parte. Para além de um filme lésbico (se quisermos achar que ele é só isso), Borboleta é um filme onde (com perdão da redundância do pleonasmo), o feminino predomina. Até porque é um filme de atrizes – ótimas atrizes, por sinal. As personagens femininas são majoritárias e bem ativas na trama – Flávia no passado e no presente, sua namorada do passado, a cantora por quem ela se apaixona, a mãe, duas alunas de Flávia que se amavam etc. A participação masculina é minoritária, inclusive o marido de Flávia, que só toma algum vulto na crise final do casamento.

Daí, se Yan Yan Mak se propõe, mais do que a contar uma história de amor, a caracterizá-lo e às pulsões do desejo são femininas – e daí usar a borboleta como imagem e metáfora de todo e qualquer amor –, isso faz algum sentido.

Se alguém se lembra da Biologia que aprendeu no colégio, lembra bem do processo de formação de uma borboleta. Primeiro, é uma lagarta, que se arrasta pelas folhas e se alimenta delas. Depois, o casulo e a metamorfose. Finalmente, a borboleta.

É, faz muito sentido. A jovem Flávia, apaixonada por sua colega, é na verdade uma lagarta – quiçá uma taturana-de-fogo, que queima caso a toquem. O casamento dito seguro é o casulo. O encontro com a jovem cantora e o novo amor – o amor que a faz romper o casulo – é a metamorfose. Finalmente, a borboleta-Flávia, o amor, sai do casulo e voa. Não é um pássaro, mas é rebelde – e ninguém o pode prender.

 

MARIANA KANT é atriz e diretora de teatro.

 

© 2005 – SOMBRAS ELÉTRICAS