SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 1 - Dezembro de 2003

LONG-SHOT - ABRAM ALAS PARA O CINEMA!

A ESCRITA COMO ANTI-ESPETÁCULO: O CINEMA DE BRESSON

Moacy Cirne

Cartaz de Pickpocket, de Robert Bresson (1959)  

Há uma velha história que não sabemos se é verdadeira. Pode ser que não o seja. Mas que nos parece perfeita para ilustrar as reflexões que pretendemos fazer hoje, aqui e agora, no próximo mês ou no próximo ano.

Dizem que, numa certa ocasião, em Paris, Orson Welles teria entrado num cinema sem ter visto o cartaz do filme, que inclusive já teria começado a ser exibido. Depois de cinco minutos de projeção, Welles levantou-se irritado, comentando aos berros, antes de ir embora: “Mas este é um filme de Bresson!”

 

Era um filme de Bresson...

De fato, nada mais antiwellesiano do que um filme do autor de Um condenado à morte escapou. Se o Cinema de Welles é dionisíaco em sua exuberância formal, o Cinema de Bresson, mesmo não sendo necessariamente apolíneo em sua concepção de mundo, é marcado por uma religiosidade interna, para além do espetáculo cinematográfico, que o faz generoso, que o faz reflexivo, que o faz intimista. Decerto, a grandeza personalíssima de Welles não se identifica com a espetacularidade de Hollywood, por exemplo, mas sim com uma certa tradição da escrita cinematográfica americana. Bresson investe em outro tipo de escrita, igualmente pessoal. Tão pessoal que pôde ser percebida por Welles depois de cinco minutos de projeção.

Decerto, a revolução cinematográfica chamada Orson Welles não tem nada a ver com o Cinema de Bresson. Queremos, com isso, dizer que aqueles que estão comprometidos com as inovações formais rejeitam — ou podem rejeitar — o Cinema de Robert Bresson? Queremos, com isso, dizer que aqueles que, de um modo ou de outro, estão comprometidos com as experimentações do discurso artístico não aceitam  a secura cinematográfica do autor de O processo de Joana d’Arc? A reação de um Orson Welles seria comum a todos? Claro que não. Entre a experimentação, a maestria e a competência artesanal são múltiplos os caminhos da arte, da música ao Cinema, ao teatro e à literatura.

No Cahiers du Cinéma de fevereiro de 1960, fazendo o balanço cinematográfico do ano anterior, ano esse que vira filmes como Hiroshima meu amor, de Resnais, e Os Incompreendidos, de Truffaut, um jovem cineasta que iria marcar o Cinema francês com obras inaugurais (como inaugural tinha sido Cidadão Kane de Welles) consideraria Pickpocket, de Bresson, como o melhor filme do ano. Em janeiro de 1965, de igual maneira no Cahiers du Cinéma , o mesmo diretor apontaria Pickpocket como um dos cinco maiores filmes franceses realizados a partir de 1945. Muitos já perceberam que este cineasta, que revolucionou a história do Cinema mundial — e que sempre admirou o Cinema de Bresson — não é outro senão Jean-Luc Godard, que, exatamente em 1959, realizara Acossado.

Aliás, ainda para o Cahiers, em maio de 1957, Godard escrevendo alguns verbetes para um Dicionário de cineastas franceses, iria anotar: “No mundo de hoje, não importa qual seja o campo, a França, a partir de agora, não pode brilhar senão por obras excepcionais. Robert Bresson ilustra esta regra quanto ao Cinema. Ele é o Cinema francês como Dostoiévski é o romance russo, como Mozart é a música alemã”. Decerto, a melhor fase de Jean Renoir — outro gigante da cinematografia francesa — já passara. Mas as palavras de Godard, mais de 40 anos depois, devem ser levadas em consideração quando nos voltamos para este diretor que, nascido em 1907, faleceu recentemente. Longe do espetáculo e dos arroubos formais, seu Cinema — que prima pela mais rigorosa coerência estilística — não é um Cinema qualquer. Não é um Cinema que aposta na vulgaridade, na banalização do pensamento. Ao contrário.

O teórico Jean Mitry chegou a observar que Bresson é “o estilista mais jansenista do Cinema francês, com tendência à abstração e à universalização”. Neste sentido, é interessante observar como Pickpocket encerra um rigor moral que “atinge um ponto-limite da procura de Bresson”, como disse o crítico Joel Magny. Uma procura que, a rigor, em sentido moral, é igualmente intelectual. Não, Pickpocket não é um filme fácil, com sua leitura de objetos e ruídos que moldam, cinematograficamente, o comportamento de um batedor de carteira. Já se disse que é um filme que parafraseia Crime e castigo, de Dostoiévski; preferimos dizer que é um filme que torna visível o invisível. E aqui já estamos dialogando com Jean-Claude Carrière, que em A Linguagem secreta do Cinema nos coloca diante de uma questão que faz pensar: “Tornar visível o invisível: seria esta a verdadeira função de todas as linguagens? O Cinema jamais caminhou sozinho. Ninguém, por mais que esteja absorto na solidão, mesmo convencido de que está só, jamais se desloca sem companhia. Intencionalmente ou não, o Cinema coexistiu, às vezes do modo mais ávido, com todas as outras formas”. E o Cinema de Bresson, dialoga com o teatro e a própria pintura. Aliás, o próprio Bresson assim se expressava, em suas Notas sobre o cinematógrafo: “O cinematógrafo é uma escrita (ou uma pintura) com imagens em movimento e sons”.E mais: “Um filme não pode ser um espetáculo, porque um espetáculo exige a presença viva. Entretanto ele pode, como o teatro fotografado ou Cinema, ser a reprodução fotográfica de um espetáculo”. De qualquer modo, voltamos à idéia, em Bresson, de um Cinema que faz da escrita o seu mais profundo sentido de texto fílmico como anti-espetáculo.

E é como anti-espetáculo que vamos aproximá-lo de um cineasta que, em sentido materialista, trabalha a austeridade sígnica com absoluta precisão formal. E assim, sendo: um, materialista; o outro, espiritualista, terminam convergindo para as mesmas preocupações cinematográficas: “Se um filme não serve para abrir os olhos e os ouvidos das pessoas, para que serve?”, perguntava Jean-Marie Straub em 1970. mais adiante completava, sintetizando um pensamento que servia — e serve — para definir o seu Cinema, assim como serve para definir o Cinema de Bresson: “Antes de mais nada é preciso tentar que a camera não seja um olho mas mais precisamente um olhar. É esse o trabalho. É preciso sobretudo não ter a impressão que é um olho que se desloca, mas precisamente que é um olhar. E saber a distância moral e material, entre o que se mostra e a camera... Julgo que o que é preciso é uma idéia. Uma idéia que não seja uma intenção simbólica, nem psicológica. Uma idéia moral, portanto política...”

E assim os dois cineastas se encontram no espaço da escrita que, mais do que uma aventura cinematográfica, é uma aventura da interioridade, seja moral e política, no caso de Straub, seja moral e religiosa (no sentido mais amplo de religiosidade), no caso de Bresson. Afinal como se anuncia no início de Pickpocket, o estilo deste filme não é o de um thriller. O Cinema de Bresson — como o de Straub, como o de Ozu, como o de Rivette, como o de alguns poucos outros marcados pela limpeza significante — investe na reflexão. E como espectadores felizes, mais do que como críticos, saibamos apreciar os múltiplos caminhos do Cinema, de Welles a Bresson.

 

MOACY CIRNE é poeta, especialista em história em quadrinhos e ficção científica... e cinéfilo. O texto foi escrito para o curso Cinema Francês e  Nouvelle Vague, promovido pelo Curso de Cinema da UFF e a Casa França-Brasil no Rio de Janeiro e coordenado pelo Prof. João Luiz Vieira, do Departamento de Cinema & Vídeo da UFF no segundo semestre de 2000.