SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 1 - Dezembro de 2003

LONG-SHOT - ABRAM ALAS PARA O CINEMA!

ELOGIO AO CINEMA DE TARKOVSKI

Guilherme Whitaker

 

Cena de Nostalgia, de Andrei Tarkovsky (1983)

 

Ao pensar em Tarkovsky muitas referências surgem como possibilidades de um caminho a ser percorrido pela imaginação. Ao tomarmos tal poeta das imagens como modelo do que deve, pode ou merece ser dito, é preciso situar o discurso não na superficialidade dos termos e sim naquilo que estes possuem de essencial. E o cinema de Tarkovsky preza pelo essencial na Arte, na Ciência, na Religião, no próprio cinema enquanto possibilidade artística, na Poesia russa, na Solidão e no Amor gratuito ao próximo... O cinema de Tarkovsky consegue fazer pensar a presença humana enquanto QUESTÃO, mostrando um natural Silêncio dos acontecimentos e do fundamental comprometimento ético do humano com tudo que por ele é criado, transformado e morto. Em Tarkovsky os signos se presenteiam, surgem em abundância na vida que da tela emana e nos toca física e mentalmente, fazendo-nos transcender ao mundo das coisas sem nome... Fazendo-nos Ser humano.

 

Aqui o sentido querido fará questão de ser profundo. Qualquer termo (ou seja, todos) possui um determinado som com vários significados memoriais, obviamente morais e emocionais, como tudo que o humano toca e cria, inclusive – ou principalmente - os nomes. São Imagens. Algumas destas imagens são milenares, outras centenárias... O sentido destes nomes evolui com o tempo, de forma alguma se congela num espaço que, sem o cérebro, simplesmente não seria possível. Apenas por isso, porque os significados evoluem, é preciso lembrar o que pensavam os antigos, examinar os mesmos termos que eles usaram como referência de um MUNDO ainda pré-indexação chipiana, de um tempo tão diferente destes idos contemporâneos que mais parece outro mundo. Por isso a necessidade de se usar imagens como Physis, Ethos e Logos , porque são termos que carregam toneladas de história e querem dizer muito mais do que ‘apenas’ (e resumidamente) a Natureza, a Cultura e a razão, respectivamente. Nos sete filmes de Tarkovski tais enredos (principalmente a Physis e o Logos) circulam sem cessar, o que é digno de elogio.

 

A visão de Tarkovsky sobre o que é ou seria a lógica da habitação humana, mundana, solar, está repleta de questão. Questão, aqui, não é uma pergunta a ser respondida objetivamente, mas um esforço pelo entendimento micro e macro daquilo que se esta querendo dizer, no caso, as questões que o cinema de Tarkovsky aborda. Não foi, entretanto, tarefa fácil ser Tarkovsky, assim como segue não sendo fácil a tarefa dos seres comprometidos com a ÉTICA (no Brasil, então, estes são a minoria e a tarefa é ainda mais difícil e demorada, porque muito se errou e ainda erra neste país... ). A filosofia da arte produzida por Tarkovski é esteticamente atávica à contemplação da natureza e à permanente busca (e não apenas manipulação) do belo, fazendo da beleza um universal que através da arte é evidente a todos. Para saber o que é o belo pense. Se você foi capaz de se interessar em ler um texto sobre o cinema de um russo chamado Tarkovsky você com certeza saberá idealizar o que seja belo e a Ética que em sua natureza habita.

 

O belo, no entanto, revela-se aos poucos e jamais o faz por completo. Vai depender de tudo. Sobre este belo idealizado pelos éticos Truffaut já dizia: o primeiro dever do artista é provar a beleza daquilo que se julgava feio e vice-versa. Sendo uma situação e não um objeto estático, o filme, assim como a própria vida, faz parte de um contexto maior, necessário para sua existência enquanto realização. Em grego a palavra PHYSIS quer significar, também, o lugar onde a Terra acontece, inclusive ou principalmente o ocultamento daquilo que É naquilo que Está, do invisível (mais do que meros nomes ainda não inventados para coisas ainda não descobertas...) no visível (que a História tratou e trata de indexar). Sendo a Linguagem a morada do Ser (Heidegger), este precisa do pensamento para sobreviver enquanto tal, assim como precisa dos dedos, dentes e olhos, mas sem o pensamento o citado Ser não é, apenas paira no nada, que por sinal existe sim, ao menos idealmente, o que já é suficiente para ser mais que nada. Em última (ou quarta, quinta ou milésima) instância, os filmes de Tarkosvky colocam o Pensamento em questão, através dos diálogos e movimentos de seus personagens, nas atitudes que estes participam de forma total, no tempo que o filme passa a preencher.

 

Em Tarkovsky pouco ou nada é desnecessário, suas sequências, seus diálogos, os acontecimentos de cada novo foco, de cada novo som ou sombra, esbanjam um realismo e um lirismo tão angustiantes e (por vezes) trágicos como nos filmes de BERGMAN e Antonioni. Não é pouca coisa. Tudo em seus filmes é fundamental e carrega um tempo próprio, onde qualquer linearidade se desmonta.

 

O artista assume-se, também, como ‘Lembrador’ daquilo que ontem era nada aos menos atentos. Seu toque transformador faz do mundo uma só coisa, todo o universo um só ambiente que na obra de arte ganha representação. Para se nomear é preciso saber e para saber é preciso ver, não apenas com os olhos físicos (não estamos aqui falando de máquinas ou para máquinas, mas de/para seres vivos recalcantes/recalcados...), mas ver com os olhos do ESPÍRITO, do Pensamento que a Consciência carrega ao existir, ao Ser. É da condição humana de Ser perceber o mundo, o Haver, da forma humana, o que para alguns é razão suficiente para argumentar que a verdade possível pertence à Razão e que fora dela (e da Linguagem) nada existiria de fato nada, pois não teria um nome, não seria identificável e não provocaria diferença alguma na multiplicidade havida. Para os que assim pensam lembro que é o cérebro que faz parte do mundo material e não o mundo material que faz parte do cérebro (Bergson). Também lembro Boff, para quem todo ponto de vista será sempre a vista de um ponto.

 

Para se gostar dos filmes de Tarkovsky ou pelo menos entendê-los de alguma forma é preciso certa pré-disposição de quem assiste. É preciso querer ver no ritmo de seus filmes a universalidade das questões fundamentais de nossa espécie, a saber: quem somos, o quê somos, por quê somos o que somos e qual nosso ‘papel’ (e o ‘papel’ da Arte, da Ciência, da Religião, da TÉCNICA e da História... ) nesta habitação cósmica, neste tempo físico e metafísico que compomos cada qual à sua maneira. Estamos no mesmo barco (existencial) e remar é preciso cada vez com mais força, a guerra é declaradamente contra a má política praticada, há décadas – ou seriam séculos? - em nossa democracia.

 

O crítico Hélio Nascimento descreveu o estilo de Tarkovsky como "construído basicamente sobre planos de longa duração, o que talvez cause estranheza no espectador. A sua preocupação com o humano não permite o aparecimento de qualquer concessão. O cineasta procurou utilizar o cinema não apenas como um espetáculo, mas como um caminho de expressão de idéias, de formulação do pensamento. NÃO é o cinema de todos os dias, certamente, mas é uma proposta desafiante e, sem dúvida, uma maneira de expressão que se posiciona contra o estabelecido."

 

Para mim Tarkosvky fala e mostra, em seus filmes, que um Ser humano, qualquer que seja sua identidade, sua nacionalidade, idade e cor, representa a todos. Esta generalização assumida nivela todos os seres humanos num patamar nada medíocre. É um crédito de confiança e nem todos sabem o que fazer com ele. Tarkovsky aponta que o esforço de nossa civilização (ocidental ? , acidental ?) em dominar cientificamente a natureza (e os outros humanos) muitas vezes (alguns diriam sempre) a transforma em COISA (natureza=coisa), para que seja mais facilmente manipulável. Mas se a matemática aplicada a tudo avança cada vez mais ávida e velozmente rumo ao mais leve, rápido e eficaz, o mesmo não se pode dizer das ciências e assinaturas sociais, políticas e obviamente econômicas. Neste ambiente superficial os espertos se dão muitas vezes ‘bem’ , porque o bem neste caso não é virtude, mas indiferença ideológica, ignorância política e arrogância monetária. O que importa é ter dinheiro, com ele se pode parecer bonito, feliz, bom... A maioria acredita.

 

Em sua arte o artesão, o técnico, é capaz de compor tais sentimentos reais e ideais de forma que haja a ruptura com o ‘esperado’, seja com os tradicionais mecanismos de submissão ao mais forte, ao mais rico, ao mais prolixo (pouco adianta escrever ou ler ‘ordem e progresso’ na bandeira quando na realidade não é nada disso que se pratica e estimula... Viva Tiradentes !!!), seja com a criação e na reprodução da sua obra: um poema, uma melodia, um FILME, uma foto, um beijo.

 

(Aqui preciso duvidar que tais valores citados, ordem e progresso, sejam exatos e imutáveis, como se não