SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 5/6 – Novembro-Dezembro de 2005

LONG-SHOT: CINEMA E SEXUALIDADE(S), À LUZ DO MIX BRASIL 2005.

MENINA SANTA: COMO NUM TOQUE DE THEREMIN

Aristeu Araújo

 

Maria Alché, em cena de Menina Santa, de Lucrecia Martel.

 

Há em Menina Santa, segundo filme da argentina Lucrecia Martel (de O Pântano), uma contemplação sobre a fronteira entre o lícito e o proibido. Em um filme em que os temas centrais são o corpo e a religiosidade, a câmera busca em duas meninas em início de puberdade, seu foco narrativo. No entanto, parece pouco tentar aprisionar uma obra deste porte em apenas duas palavras: corpo e religião. Menina Santa não se resume apenas a isso, porque a todo o tempo o filme parece fugir do maniqueísmo e das explicações fáceis.

No início de Menina Santa, ouvimos uma música sacra. Voz e piano. Uma mulher canta e chora. As lágrimas interrompem de tempos em tempos seu canto. Não sabemos o porquê de seu choro e não iremos descobrir. Podemos, desse modo, apenas lançar hipóteses mal acabadas. É assim que Lucrecia Martel apresenta o início de sua história. Nos pomos nos lugares das duas jovens que cochicham procurando uma explicação para aquilo que acontece. Não é banal. O filme se inicia deixando claro quais sãos as regras. Assim, aos poucos o espectador vai se acostumando a não procurar as respostas na própria película.

Amália e Josefina são as garotas que conversam aos cochichos. Ambas exercem com fervor a fé praticada nas aulas de catequese. Ambas estão a um passo da descoberta de suas sexualidades. Amália mora com a mãe em um hotel antigo e barato. Divide com ela a mesma cama e está acostumada com a pouca privacidade e com o pouco espaço.

Um hotel é um lugar fadado ao efêmero. Tentar transformar esse ambiente de eterna mutação em um lar, é assumir para si relações sociais passageiras e inconstantes. É crer no que não há tempo de se consolidar. É viver acostumado ao entra e sai das faxineiras e aos olhares curiosos dos clientes. Lucrecia Martel escolhe esse ambiente para contar sua história.

Em paralelo, Menina Santa desenvolve a passagem do médico Jano, um psiquiatra que está hospedado ali para participar de um congresso científico. Os dois terão seus caminhos cruzados quando ambos dirigem-se a uma pequena concentração, onde um músico entoa Debussy através de um theremin.

Theremin é um instrumento estranho. Apontado como o primeiro dos eletrônicos, foi criado por volta de 1919 pelo russo Leon Theremin. O theremin emite notas sem que o músico o toque. É um instrumento não tátil. Suas notas são produzidas a partir de modificações no campo eletromagnético que o aparelho musical gera. E o músico faz suas melodias com as mãos no ar. Esse theremin irá, a partir daí, permear e pontuar a narrativa do filme.

É ouvindo a apresentação desse músico que Amália percebe a aproximação do psiquiatra. Ele se aproveita da aglomeração para encostar seu sexo na garota. Cria-se em Amália um misto de paixão e compaixão.

A inclusão do theremin surge como metáfora. O instrumento está ali para lembrar, para sublinhar sobre o toque, o tato. Para acrescentar à narrativa algo sobre a proibição daquele contato entre o homem e a menina. O som que um theremin entoa tem algo de etéreo, nada parecido com a brutalidade da atitude daquele médico. O theremin surge para falar da contradição do amor que Amália irá sentir, seja um amor sacro ou profano. Lícito pela vontade de redenção cristã-católica que Amália quer impor ao homem; ilícito pelo óbvio desejo sexual da descoberta.

Menina Santa falará sobre o não toque e sobre a descoberta; sobre a ingenuidade das meninas e sobre a perversidade dos adultos. Irá explorar sempre dois eixos de discussão, sempre sem separá-los. A dualidade de Menina Santa permeia não só o seu discurso, mas transborda para sua própria estratégia narrativa.

Logo no início, quando a menina está deitada na cama com a mãe, há um facho de luz do sol que corta o leito. Enquanto que o quarto permanece numa certa penumbra, aquela luz marca com força a presença do dia. É o mesmo sendo dito de outra forma, misturado na mise-en-scène, na ação. Além disso, o sol penetra naquele quarto através de uma fresta. As frestas, por conseqüência, também serão comuns e necessárias ao longo da película. Lucrecia Martel é responsável por uma câmera precisa. A decupagem (modo de enquadrar e mover a câmera) é feita com extremo rigor, porque o olhar da câmera está sempre em busca do que é privado e proibido. Daí a presença das frestas, dos espelhos que refletem ao acaso, das mesas que ocultam o que por baixo acontece. A câmera de Martel parece sempre estar presente ao acaso, parece sempre descortinar o que é privado sem intenção de fazê-lo. Da mesma forma que os sons do filme não se restringem aos seus ambientes.

Nas aulas de catequese, Josefina e Amália estudam a vocação. Amália, compenetrada em descobrir sua missão, acredita que está no médico o seu destino. Toma para si o dever de mudar aquele homem, de salvá-lo. Amália entende que poderá salvá-lo através de seu amor, mais uma vez um conceito que está imbuído de duplicidades e poucas respostas. Outros focos de discussão vão sendo levantados em cada personagem que o filme acompanha. Josefina mantém um relacionamento de descobertas sexuais com um parente próximo. Pode-se entendê-lo como um irmão ou um primo. O roteiro não deixa claro, como se quisesse fazer-nos trabalhar várias questões morais ao mesmo tempo, porque uma coisa é uma jovem e o sexo precoce, outra é o incesto. Para Josefina, no entanto, há pouco (ou nada) de anormal naquele ato. Assim como Amália não vê nada de estranho no seu amor platônico pelo homem, embora façam segredo de seus atos.

Menina Santa vai apresentando cada uma dessas (des)vias morais. Pouco a pouco vai construindo e descontruindo os conceitos. De tal forma que nas seqüências finais, sem perceber, há uma completa empatia do público com o que começa a se descortinar. A mãe Helena, o médico Jano, as garotas Amália e Josefina: intrincados todos numa história de amor, de não toque, de proibições e culpas. No fim, entretanto, sobra-nos as duas meninas que, de tão santas, parecem não perceber os rumos que tudo tomou. Elas estão felizes e livres.

 

 

ARISTEU ARAÚJO é editor da revista Moviola (www.revistamoviola.com). Antes, editava o blog Quebra de Eixo, onde este artigo foi originalmente publicado.

 

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