SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 9 - Maio de 2012

LONG-SHOT - CINEMATECA DE LETRAS OU BIBLIOTECA DE IMAGENS: CINEMA E LITERATURA
 

O ROMANCE BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO REVISITA HOLLYWOOD: O CASO CIDADE DE DEUS, DE PAULO LINS

Héder Júnior dos Santos

"Dadinho é o c#r%lh*! Meu nome agora é Zé Pequeno!" Leandro Firmino da Hora em cena de Cidade de Deus (2002) filme de Fernando Meirelles e Katia Lund, sobre o romance de Paulo Lins.

“O romance anuncia a profunda

perplexidade de quem a vive” (Walter Benjamin) [1]

.

 

Ao longo dos anos, o cinema adquiriu autonomia e especificidade, encontrando-se hoje na condição de disponibilizar uma série de recursos, que muito contribuem para o alargamento do poder expressivo, inclusive da literatura. Nesse horizonte, esse trabalho analisa as relações entre cinema e literatura, a partir do romance contemporâneo Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins. Perseguiremos as colaborações de alguns recursos narrativos próprios da composição cinematográfica, que fundamentam o eixo expressivo da obra em questão (como a forma de representação naturalista de Hollywood, a reentrância da montagem apegada ao “campo-contra-campo”, a composição de um plano direto de movimentação, além de um narrador esteticamente encurtado), buscando destacar suas inserções, desdobramentos e articulações na ficção literária brasileira. Para isso, partiremos das reflexões de Walter Benjamin (1987), Theodor Adorno (2003) e Ligia Leite (2002) sobre a configuração do narrador na modernidade e na contemporaneidade, da interpretação de Roberto Schwarz (1999) sobre a movimentação das personagens na obra de Lins e também dos estudos de Ismail Xavier acerca da linguagem cinematográfica (1997).

Ao examinarmos as relações existentes entre literatura e cinema nos deparamos, em primeira análise, com múltiplos desdobramentos. Entre a superfície em branco da página e o espaço vazio da tela, há laços mais estreitos do que nos é dado suspeitar à primeira vista. Inegavelmente, a literatura tem sido referencial em muitas circunstâncias para o cinema, desde sua linguagem à sua estrutura narrativa. Nesse primeiro contato entre diferentes formas de expressão, o que estava em questão era a formação da linguagem cinematográfica, que se constituiu acompanhando as firmes pegadas das artes consagradas (literatura e teatro). No entanto, ao longo dos anos, a sétima arte adquiriu autonomia e especificidade e hoje “encontra-se na condição de disponibilizar uma série de recursos que muito tem contribuído para o alargamento do poder de expressão inclusive da literatura” [2].

Nesse sentido, se estabeleceu um comércio interativo, que se, de um lado forneceu ao cinema mecanismos literários que lhe facultaram contar histórias, hoje dota a literatura de técnicas cinematográficas que colaboram para revigorar sua capacidade de expressão, particularmente no que tange às produções romanescas. No romance Cidade de Deus, notamos como eixo fulcral de sua estruturação, duas técnicas cinematográficas que merecem respaldo na construção do plano expressivo da obra: o plano direto da movimentação e a estética encurtada do narrador.

A estrutura narrativa de Cidade de Deus se dá em três décadas nas quais se entrelaçam as trajetórias de três personagens centrais, Marreco, Bené e Zé Pequeno, que, junto a outras “duas centenas e meia” (articuladas ativa ou passivamente com a criminalidade), permeiam e constituem a economia interna da obra. Na movimentação desta infinidade de personagens, busca-se delinear as transformações ocorridas na vida daquela comunidade, utilizando como mediação a manipulação do tempo/espaço ficcional que, junto com outros elementos, buscam unir forma e conteúdo por meio do “impacto emocional” do leitor.

Cidade de Deus é uma obra fechada constituída por uma sequência de contos sobrepostos que se entrecruzam assumindo dois níveis de profundidade: o nível do entendimento aparente e o nível de entendimento não imediato (história subjacente em que sobressaem determinadas personagens). Estes níveis de profundidade também se articulam de forma distinta no decorrer do romance, assumindo um papel particular na narrativa. No deslocamento do tempo ficcional, o narrador, que se aproxima do “momento presente”, torna-se cada vez mais “contemporâneo” da ação ficcional ao percorrer o intrincado dos particulares, os quais vão ganhando equivalência, na medida em que, quanto mais distantes do passado, a própria vida não os tenha ainda hierarquizado através da práxis.

Mas isto é realizado com coerência de andamento e ritmo ao longo da obra. Selecionando elementos cotidianos próximos da realidade, a narrativa busca construir uma ficcionalização literária para a aproximação do “consciente íntimo” daquela comunidade, que é cuidadosamente articulado com a fluidez das personagens na construção da trama. Esta fluidez de três décadas busca atualizar a vida vivida, do “quase morro” à “Neofavela”; do malandro autônomo e relativamente dono de seu tempo à divisão social do trabalho na empresa capitalista do tráfico de drogas; da contemplação reflexiva do baseado artisticamente bem bolado à paranoia delirante do consumo das carreiras de cocaína; das tardes de guerra de mamonas das crianças à efemeridade da vida na guerra real (ainda lúdica, mas agora fatal) de mais crianças; em síntese, da aceleração das relações recíprocas das personagens.

É importante destacarmos que Cidade de Deus foi escrito em meados da década de 90, período onde a guerra do tráfico já se encontrava cristalizada no imaginário da sociedade brasileira. Atrocidades provocadas por esta guerra já estampavam nossos jornais há anos e, ao tratar das três décadas anteriores construindo o histórico do conflito, o livro se faz relevante pelo “interesse explosivo do assunto, o tamanho da empresa, a sua dificuldade, o ponto de vista interno e diferente, tudo contribui para a aventura artística fora do comum. A literatura no caso foi levada a explorar possibilidades robustas, que pelo visto existem” [3]. A forma como isso é tratado no livro também deve ser levantada para podermos ter uma idéia melhor da relevância que a obra possui.

 

[…] a amplitude e o mapeamento da matéria, o ânimo sistematizador e pioneiro, que conferem ao livro o peso especial, têm a ver com a vizinhança do trabalho científico, e também do trabalho em equipe: na página final, dos agradecimentos, o autor dá crédito a dois companheiros pela pesquisa histórica e de linguagem, à maneira do cinema. São as energias artísticas da atualidade, que não cabem na noção acomodada de imaginação criadora que a maioria dos escritores cultiva. [4]

 

Consoante ao ensejo cinematográfico presente na citação acima destacada, a narrativa de Cidade de Deus tem um início notoriamente cinematográfico. Dispensando os rodeios próprios à criação de uma atmosfera capaz de propiciar ao leitor uma ambientação ao enredo que se desenvolve, o texto de Lins surpreende as personagens em plena ação fílmica. Nota-se, nesse procedimento, a clara intenção do narrador de começar seu relato não apenas pelo gesto habitual de empunhar a caneta sobre o papel, mas especialmente pela tentativa de ligar uma câmara cinematográfica e, como acontece aos cineastas, recortar uma porção de vida/ação/história que é atirada nas páginas de seu romance.

É interessante observar como a compressão do espaço/tempo ficcional ocorre paralelamente à aceleração das relações recíprocas das personagens. Este movimento não acontece apenas no interior dos planos narrados, mas também na própria redução e contraposição frenética destes. Nos fragmentos seguintes é possível observar como, em poucas linhas o narrador onisciente desloca o foco da ação de plano em plano, aproximando o leitor do tempo em que a ação se efetiva.

 

 

Lá no posto policial, Lincoln e Monstrinho se armavam, iriam com mais seis policiais, em dois camburões. A diligência seguiria para os Apês para tentar surpreender os inimigos. [5]

 

Lá em Cima, membros da quadrilha de Galinha estavam reunidos na casa de Dancinha, que relatava o ocorrido na cela do posto policial. [6]

 

Lá na Frente, Laranjinha dizia a um rapaz de dezoito anos que cachaça era água de brigão, quem bebia cachaça mijava e fazia cocô nas calças. Coisa de otário. O negócio era fumar um fino pela manhã, um depois do almoço e outro à noite. [7]

 

A quadrilha de Lincoln, quase despercebida, encafuou-se no morrinho, depois de entocar as viaturas no mato. Um vigia da obra dos apartamentos do Morrinho ficou assustado, mas o próprio Lincoln fez sinal e lhe devolveu a calma. Dali, com o auxílio de binóculos, dava para ver toda a movimentação nos Apês. Sargento Geraldo deduziu que na certa eles estariam na área de Galinha. O negócio era esperar. [8]

 

Entre os planos que constituem a trama central, existem ainda certas rupturas de furor extremo. Talvez o exemplo mais evidente seja o dos planos consecutivos ainda na primeira parte do livro após o “assalto do motel”, nos quais são narrados – com uma frieza ácida – o esquartejamento de um bebê que é entregue em uma caixa de sapato a sua mãe pelo assassino, seguido de outro plano que narra a vingança de um marido traído que decepa a cabeça do amante e a joga no colo da esposa adúltera. É claro que estes planos serão posteriormente interligados ao eixo central quando são noticiados no “jornal da segunda-feira”, mas poderiam ser facilmente suprimidos se não tivessem, naquele momento, a dupla função de, a um só tempo, chocar o leitor e quebrar a sequência narrativa que decorreria após o assalto. Estes planos intermediários de ruptura tornam-se gradativamente mais rápidos e comuns nas páginas finais, quando o ritmo é frenético, tornando a violência e os assassinatos cada vez mais previsíveis, gratuitos e corriqueiros.

De tais recortes, notamos a clara influência da representação cinematográfica naturalista de Hollywood na qual tudo “caminha em direção ao controle total da realidade criada pelas imagens – tudo composto, cronometrado e previsto” [9], onde a palavra de ordem é “parecer verdadeiro”, montando um sistema de representação que busca anular sua presença como trabalho de representação. Sobre esse “parecer real”, vale lembrar as palavras do narrador de Cidade de Deus logo no início da trama: “Mas o assunto aqui é o crime, eu vim aqui por isso” [10].

Em diálogo com a construção do romance, apoiado na estética cinematográfica de Hollywood, encontramos já no princípio da trama, a concepção do espaço diegético, cujo esforço se dá na direção de uma reprodução fiel das aparências imediatas do mundo físico; podemos destacar que no seguinte recorte, existe a primazia do narrador em descrever, e dessa descrição, notamos seu envolvimento com a sociedade narrada, onde conta do descobrimento da terra pelos homens brancos à construção cinza dos cimentos, que se tornariam os becos e bocas da favela de Cidade de Deus:

 

Antigamente a vida era outra aqui neste lugar onde o rio, deixando o coração bater em pedras, dando areia, cobra-d´agua inocente, risos líquidos e indo ao mar, dividia o campo em que os filhos de portugueses e da escravatura pisaram.

Couro de pé roçando pele de flor, mangas engordando, bambuzais rebentando vento, uma lagoa, um lago, um laguinho, amendoeiras, jamelões enegrecendo a língua e o bosque de Eucaliptos. Tudo isso do lado de lá. Do lado de cá, os morrinhos, casarões malassombrados, uma fonte: negra lavara roupa, cavalo bebera água na noite. Primavera arriscara flor, flor arriscara cor, cor arriscara dia que o sol riscara nos céus sobre a boiada pra lá e pra cá na paz de quem não sabe da morte.

Em diagonal, os braços do rio, desprendidos lá pela Taquara, cortavam o campo: o direito, ao meio; o esquerdo, que hoje separa os Apês das casas e sobre o qual está o poente por onde escoa o tráfego da principal rua do bairro, na parte de baixo. E, como o bom braço ao rio volta, o rio, totalmente abraçado, ia ziguezagueando água, esse forasteiro que viaja parado, levando íris soltas em seu leito, doando mililitros para os corpos que o ousaram, para as bocas que morderam seu dorso. [11]

 

Ao atravessarmos as páginas do romance de Lins, no que tange a construção das cenas, encontramos um aspecto típico da narrativa cinematográfica de ação: a alternância do “campo-contra-campo”, “ação seguida de ação”, ou melhor, de uma montagem paralela conforme demonstramos anteriormente. Essa ocorrência no romance se dá com cortes abruptos da narrativa: com o espaçamento de uma linha, somos transportados asperamente de uma situação (cena) à outra, nos deparamos com a finalização momentânea de uma situação que virá a ser apresentada posteriormente e o início, ou continuação de outra ocorrência, é onde notamos a movimentação da trama e a influência da técnica cinematográfica na composição da exposição dos fatos. A título de exemplificação dessa mudança de campo, podemos destacar também o momento em que Marreco, após realizar um pacto com o “demônio”, deve matar uma pessoa por semana, com o intuito de oferenda. Entretanto, qualquer outra personagem pode ser sua vítima, assim como Laranjinha, que é jurado de morte apenas por não querer “ficar de papo com ele”, pois devia encontrar-se com sua mãe recém-hospitalizada.

 

Laranjinha matou o baseado em silêncio, jogou a ponta no chão, esfregou o pé em cima para não dar bandeira, falou amenidades. Deu as costas para o puxa-saco como se fosse embora, voltou-se com a mão fechada no rosto do porta voz de Marreco. – Nunca gostei de moleque de recado! Vai você, Marreco, tudo pra puta que o pariu! – disse Laranjinha, antes de continuar seu caminho. O moleque de recados subiu cambaleante pela rua do Meio. Laranjinha caminhou para a casa de Acerola, no intuito de fazer uma presença para o amigo. Fumaram um baseado numa quebrada perto do Mercado Leão, onde Laranjinha relatou ao parceiro o que estava se passando com ele. O amigo o aconselhou a dar um tempo fora do conjunto. Laranjinha objetou: – Aí cumpádi, não vou ficar correndo de bandido maluco, não, morou? Não fiz porra nenhuma para ele, vou ficar aí mesmo, ta sabendo?

 

Marreco deixou o motel preocupado. Quando ele se lembrou do Demônio já passava da meia-noite. Era a primeira vez que dava furo com o homem. Acreditava que não teria problemas com o chefe do inferno, pois já lhe dera diversas vezes almas de quebra. A madrugada era deserta. Desembarcou do táxi Lá na Frente. Vinha andando apressado pela rua Principal dando um confere nos ferros. Laranjinha e Acerola bebiam cerveja no bar do Pingüim. Marreco só andaria cem metros para avistá-los. Ao passar em frente á casa de Laranjinha, pensou em invadi-la e matar o maconheirozinho de merda em sua própria cama, mas que nada, seria melhor matar o Paraíba e prender sua mulher pra sempre. [12]

 

Notamos dessa passagem, que a composição e montagem romanesca segue os preceitos do filme policial, onde por meio da câmera, conhecemos o que cada personagem está fazendo em seu raio de ação, posicionando-se como nossa cúmplice no relato dos acontecimentos. Colaborando com essas observações, podemos destacar que em Sequências Brasileiras, Roberto Schwarz ressalta que o romance de Lins realça a visibilidade das ações à maneira do filme de ação, isso porque sua estrutura é toda construída a partir da movimentação das personagens, “sem prejuízo da repetição constante dessas seqüências, o movimento vai crescendo, numa direção que é o problema a encarar, ou ainda que é o presente inextricável.” [13]

É curioso notarmos, que as sentenças que compõem os períodos acima e também aquele que será posteriormente transcrito, são curtas e em sua maioria com predominância de verbos de ação. Esse encurtamento faz com que o ritmo frenético da narrativa seja estabelecido ao leitor, assim como as ásperas mudanças de campo do filme de ação, porém a intensidade e o perigo das ações, bem como a nitidez do cenário, como que concebido sob encomenda, criam uma certa empatia, entretanto a brutalidade monstruosa logo tira o sabor de aventura e sobra uma espécie de compreensão atônita e voraz.

 

Uma rajada da metralhadora de Touro esburacou sua cabeça. O anônimo estrebuchou sobre a água de um esgoto entupido que chocalhava. Touro desprezou os outros e foi determinado atrás de Cabeleira. O bandido ganhou a beira do rio correndo em ziguezague. Antes de percorrer a primeira quadra, entrou na perseguição. O policial militar, mesmo em disparada, avisou ao detetive que aquele podia deixar com ele. Touro, a contra-gosto, retomou a captura de Pretinho, Pelé e Pará. Cabeleira, ouvindo somente os tiros de 38, calculou corretamente que Touro não estava mais no seu encalço, resolveu devolver os tiros. [14]

 

Schwarz ainda ressalta outro ponto interessante da construção do tecido narrativo de Cidade de Deus: a existência de uma “quase-padronização” das seqüências sinistramente monótonas, existindo, dessa forma, uma igualdade nos acontecimentos, como se uma realidade cíclica fosse instaurada no corpus do romance e suas personagens estivessem presas a um encadeamento. Então, “depois de uma ou outra droga ou diversão vem a saída para um assalto, com ou sem morte, para um estupro, para uma vingança amorosa, para eliminação de bandidos de outro bando, ou também de inimigos dentro do próprio.” [15]

Pensando na presença do narrador em Cidade de Deus e como ele se articula com os elementos do tecido narrativo, nos direcionamos para a obra O foco narrativo, de Ligia Leite (2002), onde após destacar os principais estudos e estudiosos do foco narrativo dentro do tecido ficcional, a autora chama atenção aos questionamentos do teórico americano Norman Friedmam, que estabeleceu uma metodologia de estudo acerca da presença do narrador e sua maneira de “contar uma história”:

 

1) quem conta a história? Trata-se de um narrador em primeira ou em terceira pessoa? Não há ninguém narrando?; 2) de que posição ou ângulo em relação à história o narrador conta? (Por cima? Na periferia? No centro? De frente? Mudando?); 3) que canais de informação o narrador usa para comunicar a história ao leitor (Palavras? Pensamentos? Percepções? Sentimentos? Do autor? Da personagem? Ações? Falas do autor? Da personagem? Ou de uma combinação disso tudo?); 4) a que distância ele coloca o leitor da história (próximo, distante, mudando?). [15]

 

Pensando nas questões levantadas por Friedman, o narrador do “catatau” de mais de quinhentas páginas de Paulo Lins, conforme denomina Schwarz, mantém na interação da terceira pessoa narrando a expansão da criminalidade no conjunto habitacional Cidade de Deus. Deste modo, instala-se no centro da narrativa, como podemos inferir quando se aproxima da vida das personagens:

 

Ainda criança Alicate jurara para si mesmo que não passaria pelas necessidades que passara com os pais. Filho caçula de uma família de seis irmãos, apenas ele arriscara correr o risco de um dia arrebentar a boa. Conseguiria esconder dos familiares seus atos criminosos. Vez por outra, arrumava emprego de servente de pedreiro nas obras da Barra da Tijuca. Tinha calos nas mãos para mostrar à polícia quando era abordado. Era titular do time de futebol do clube, respeitava todo mundo e, sempre que podia, evitava que seus parceiros molestassem os moradores. Conheceu Cleide no tempo em que era pára-quedista do Exército. – Foi amor à primeira vista! – dizia Cleide quando falava do marido para as amigas. Alicate nunca tinha matado uma vítima e jamais pensara nesta hipótese. Poderia até mesmo ser preso, mas tirar a vida de alguém só se fosse para não morrer, apesar de saber atirar bem. [16]

 

A primeira proposta de tipos de narradores apresentada por Friedman e encontrada na trama de Lins é o “Onisciente Intruso”. Sua característica é a intrusão, ou seja, seus comentários sobre a vida, os costumes, a moral, que podem ou não estar entrosados com a história narrada. Observamos este tipo quando encontramos o narrador opinando sobre a relação entre Cabeleira e sua mãe, aproveitando para salientar o que ele mesmo pensa dela, por meio do fluxo de consciência de Cabeleira: “Gostava de sua mãe, mesmo ela sendo uma piranha fofoqueira e palavruda”. [17]. Cabeleira é também objeto desse narrador, quando em uma brincadeira cotidiana de crianças revela o que se passa psicologicamente na cabeça do rapaz, emitindo uma opinião a respeito.

 

Por fim, Cabeleira, depois de fazer a bola rebolar por vários minutos, chutou-a para o alto. A bola voltaria ao seu peito numa matada perfeita, mas que nada, Cabeleira apertou o gatilho e a bola caiu já sem vida. Alicate e Marreco, gargalharam, Cabeleira, porém, ficou sério, deixando escapar um olhar irado que dava continuidade ao som do tiro. Impôs silêncio atirando suas retinas sem brilho no rosto de cada um num lance rápido, como se fossem todos culpados da desgraça que era sua vida. [18]

 

Contudo, não longe e de maior importância para a aproximação da estrutura do romance de Paulo Lins ao discurso cinematográfico, encontramos a última categoria de Friedman, o “narrador-câmera”. Essa voz tão afim do cinema se adequaria ao romance contemporâneo não pela neutralidade, mas pela montagem, resultando assim naquilo de que fala Leite: “Abre-se o romance para fora do romance, explorando seus limites e o seu parentesco com as artes visuais”. [19]

Assim, colado aos acontecimentos, o narrador, muitas vezes faz com que sua voz se confunda com a das personagens, resultando em um grande realismo e uma estreita relação entre ele e o campo social demonstrado.

 

Lá no Porta do Céu, uma pequena multidão olhava o corpo de Wilson Diabo ao deus-dará. Alguns sorriam e não deixavam que acendessem velas. O bruto não merecia luz. A mãe do Diabo deu graças a Deus pela morte do filho, que batia nela, nos irmãos e no pai aleijado. Era um jovem branco, olhos cor de ardósia, cabelo alourado. Estuprava e assaltava no conjunto. Quando criança, não teve o trabalho de frequentar a escola, nunca assistiu a uma missa, não dava bom-dia a ninguém, enfiava cabo de vassoura no cu dos cachorros, galinhas e porcos dos vizinhos na favela do Escondidinho. [...] Até os bichos-soltos da área gostaram da morte do Diabo. Butucatu viu bem o policial caminhar na espreita pelas costas do bandido e não o avisou deixando o Diabo morrer ali no Porta do Céu. [20]

 

Nesse sentido, podemos referendar a forma como Benjamin entende o narrador moderno e as influências sociais para concepção de uma narrativa: “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes.” [21]

Nesse espaço de criminalidade e violência, o narrador não parece ser conivente com o universo dos bandidos (os bichos-soltos, como se denomina no romance) e tampouco com o universo dos policiais. Assim, não há a figura de um herói ou de uma vítima e de um agressor, isto é, tanto “os bicho-soltos”, quanto os policiais são tratados com a mesma natureza cruel, sem que haja a figura de um salvador que mantenha a segurança da comunidade. E, neste sentido, embora a forma dialogue com o naturalismo hollywoodiano, a narrativa do romance de Paulo Lins se distancia da ética fílmica hollywoodiana, onde o herói não é jamais coletivo, mas um indivíduo em dia com lei a e a ordem.

Pensando no encurtamento estético resultado da aproximação desse narrador que é intruso, onisciente e atuante como câmera para o público leitor, devemos nos atentar ao texto A posição do narrador no romance contemporâneo, de Theodor Adorno, onde o autor destaca a reificação das relações entre os indivíduos, como elemento que influencia fundamentalmente a questão do discurso narrativo contemporâneo, valendo assim remontar à formação da cultura urbana e capitalista como grande responsável pela fragmentação do ser, que por meio da perda da experiência e memória, torna-se um indivíduo isolado socialmente. Vale destacar que em Cidade de Deus, os indivíduos vão se isolando no desenvolvimento da narrativa, assim como o “trio ternura”, que agia em conjunto e dividia amistosamente praça com outros ladrões.

Ao se impedir a atitude de contar histórias e o compartilhar experiências por meio do silêncio trazido pelo intenso subjetivismo e pela instauração da barbárie nas relações interpessoais, não haveria espaço para o narrador épico no sentido clássico do vocábulo que, ao distanciar-se do objeto narrado, é capaz de dar testemunho de suas vivências; além dessa falta de espaço “basta perceber o quanto é impossível, para alguém que tenha participado da guerra, narrar essa experiência como antes uma pessoa costumava contar suas histórias.” [22]

O ponto de vista interno do narrador de Cidade de Deus contribui para que as relações sociais presentes no romance sejam apresentadas por meio do encurtamento estético discutido por Adorno. O narrador, portanto, não se mantém distante da matéria narrada e assimila as marcas de oralidade das personagens através do discurso indireto livre, ou seja, o discurso do narrador recria o aspecto oral da fala marginalizada dos personagens e promove um constante jogo de se colocar fora e dentro das personagens.

 

O negócio era matar antes de morrer. Pegou seus dois revólveres, que estavam tomando calor no motor da geladeira para dar um banho de querosene. (...) ´Bandido sem revólver é como puta sem cama´. Lembrou-se dessa lição cavernosa e simples que sua alma, ainda menina, aprendera com a sua mãe quando ela estava sem quarto na zona e o pai sem um revólver para assaltar. [23]

 

Ainda que haja essa fusão entre o discurso do narrador e das personagens, as diferenças entre eles ficam claras. O narrador não é um apresentador que se põe à parte da violência presente no romance, mas nem por isso é simpático a ela. Isso pode ser evidenciado no seguinte trecho.

 

Poesia, minha tia, ilumine as certezas dos homens e os tons de minhas palavras. É que arrisco a prosa mesmo com balas atravessando os fonemas. É o verbo, aquele que é maior que o seu tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele cambaleia baleado. (...) Massacrada no estômago com arroz e feijão a quase palavra é defecada ao invés de falada. Falha a fala. Fala a bala. [24]

 

Por fim, algo muito peculiar ao cinema, ocorre com o término da narrativa de Cidade de Deus e já mencionado nesse trabalho: o surgimento de duas páginas intituladas “Notas e Agradecimentos”, onde o autor agradece o fomento às pesquisas coordenadas por Alba Zaluar que inspiraram Paulo Lins a escrever sua obra, além das pessoas que colaboraram para a própria confecção da mesma. Isso se assemelha muito ao término de um filme quando as famosas “pequenas letras” sobem a tela. Assim, em face de um projeto romanesco desse tipo, a obra de Lins é naturalmente um romance cujo universo narrativo não fica fora da cidade comum e de toda a sua problemática, dificultando qualquer distanciamento estético por meio de um encurtado narrador e a movimentação em plano direto, e exigindo uma leitura engajada. Dessa maneira, os assuntos levantados no catatau fazem parte da realidade atual e, mal ou bem, os leitores do romance participam dela.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

ADORNO, T. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Notas de literatura I. São Paulo: 34 Letras, 2003.

BENJAMIN, W. O narrador. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, Arte e Política. 3ªed. São Paulo: Brasiliense, 1987

LEITE, L. O Foco Narrativo. São Paulo: Ática, 2002.

LINS, P. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

SCHWARZ, R. “Cidade de Deus”. In Seqüências Brasileiras. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

OLIVEIRA, M. E a tela invade a página: laços entre cinema e literatura em João Gilberto Noll. Salvador: Universidade Federal da Bahia, mimeo, 2002. (dissertação de mestrado).

XAVIER, I. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. (Coleção Cinema; v. 4).

 

HÉDER JUNIOR DOS SANTOS é Mestrando em Letras na FCL da UNESP/ Assis, bolsista do CNPq e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Cinema e Literatura na FFC da UNESP/ Marília.

heder_eu@hotmail.com)

 

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NOTAS

 

[1] BENJAMIN, Walter, O narrador. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, Arte e Política. 3ªed. São Paulo: Brasiliense, 19871987, p. 201.

[2] OLIVEIRA, M. E a tela invade a página: laços entre cinema e literatura em João Gilberto Noll. Salvador: Universidade Federal da Bahia, mimeo, 2002, p. 2.

[3] SCHWARZ, Roberto. “Cidade de Deus”. In Seqüências Brasileiras. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 163.

[4] SCHWARZ, Roberto, op. cit., p. 168.

[5] LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 480.

[6] LINS, Paulo, op. cit., p. 480.

[7] LINS, Paulo, op. cit., p. 481.

[8] LINS, Paulo, op. cit., p. 483.

[9] XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977 (Coleção Cinema; v. 4), p. 31.

[10] LINS, Paulo, op. cit., p. 22.

[11] LINS, Paulo, op. cit., p.16

[12] LINS, Paulo, op. cit., p. 149-150.

[13] SCHWARZ, Roberto, op. cit., p. 165.

[14] LINS, Paulo, op. cit., p. 85.

[15] FRIEDMAN, Norman, apud LEITE, Ligia. O Foco Narrativo. São Paulo: Ática, 2002, p. 25.

[16] LINS, Paulo, op. cit., p. 42.

[17] LINS, Paulo, op. cit., p. 51.

[18] LINS, Paulo, op. cit., pp. 26-27.

[19] LEITE, Ligia, op. cit., p. 63.

[20] LINS, Paulo, op. cit., pp. 162-163.

[21] BENJAMIN, Walter, op. cit., p. 201.

[22] ADORNO, T. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Notas de literatura I. São Paulo: 34 Letras, 2003, p. 56.

[23] LINS, Paulo, op. cit., pp. 159-160.

[24] LINS, Paulo, op. cit., p. 23.