SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 5/6 – Novembro-Dezembro de 2005

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A MONTANHA DOS SETE ABUTRES: COM AS ASAS DOS URUBUS

Aristeu Araújo

Kirk Douglas e Jan Sterling no cartaz original de Ace in the hole (A montanha dos sete abutres - EUA, 1951), de Billy Wilder.

A Montanha dos Sete Abutres é um filme de 1951 que ainda mantém uma atualidade gritante. Ok, é um filme feito há mais de cinco décadas, rodado em preto e branco e protagonizado por Kirk Douglas – na época em que ele ainda fazia papel de mocinho. Ou seja, essa fita de Billy Wilder carrega um estilo imagético já superado pela indústria cinematográfica. Mas o seu discurso não envelheceu em nada, sobretudo quando lembramos que vivemos em tempos de George W. Bush. O filme trata de um assunto exaustivamente discutido nas universidades de comunicação, a credibilidade e imparcialidade jornalística.

Em A Montanha dos Sete Abutres, Kirk Douglas vive o jornalista Charles Tatum, que saiu desempregado dos grandes centros por causa de sua conduta pouco ética. E ele só consegue emprego em um pequeno jornal de uma província do Novo México. Tatum está com o ego ferido. Acostumado com o glamour de Nova Yorque, ele sente-se rebaixado no novo trabalho. Mesmo assim, se mantém no jornal, cobrindo pequenas notícias. Tudo o que ele espera é o dia em que acontecerá um grande acontecimento por aquelas banda. Dessa forma, ele planeja catapultar seu nome de volta à elite da imprensa americana.

E o dia chega quando ele descobre um homem soterrado em uma antiga mina. Tatum vai utilizar aquele incidente da forma que mais lhe convém. Ele manipula a família do homem e faz uma matéria sobre o caso. No dia seguinte, o homem ainda está soterrado. Os curiosos começam a chegar no local e, como ele esperava, a imprensa de Nova Yorque. O jornalista fará de tudo que estiver ao seu alcance para se manter na linha de frente daquela cobertura, inclusive mantendo a vítima do incidente soterrada por mais alguns dias. Como um abutre que circunda em espera do animal moribundo, ele planeja a melhor forma de degustar a refeição futura.

A Montanha... denuncia o que há de mais infame no jornalismo: a manipulação da informação e, o que é pior, a manipulação do fato em si. Tatum finge ajudar a família da vítima e convence o xerife local a ajudá-lo em sua farsa. É uma alegoria que discute até onde vai o poder da imprensa, até que ponto devemos fazer vista grossa para o dito “jornalismo marrom”.

Entretanto, o que há de mais cruel no longa metragem de Billy Wilder é a noção de que praticamente todos estão colaborando de alguma forma para o circo que é literalmente armado em volta daquela tragédia (chegam a montar um parque de diversões, obviamente atraídos pela multidão de curiosos que acampa próximo à mina). Apenas três pessoas parecem não querer aproveitar (de forma lúdica ou financeira) aquela situação: o dono do pequeno jornal, o pai e a mãe do homem soterrado. A própria esposa da vítima, que no início da história ensaia uma fuga com os poucos dólares da caixa registradora do pequeno comércio que são donos, retrocede de sua empreitada ao perceber que poderia ganhar muito dinheiro com o acontecimento. E ganha. Além dos muitos hambúrgueres que vende aos famintos curiosos, ela chega a cobrar a entrada no local.

Dessa forma, A Montanha dos Sete Abutres levanta um questionamento que ultrapassa a mera crítica à imprensa. Billy Wilder afirma em letras garrafais que o problema está é no ser humano. Tatum é apenas o estopim para que essas pessoas se prontifiquem a transparecer alguns dos piores traços de caráter imagináveis. Ele demonstra isso claramente com a corrupção da polícia, com a ganância da esposa ou com a covardia do empreiteiro (que cede à chantagem do xerife que o obriga a fazer o resgate da forma mais difícil e demorada).

De qualquer modo, o filme deixa no fim uma luz de redenção, embora tardia. Ao término da fita, o homem que está soterrado não resiste e morre de pneumonia. Tatum cai em si. O jornalista que fora capaz de enganar tantas pessoas; manter um homem preso em uma mina durante sete dias; capitalizar perversamente o seu “furo” jornalístico, não resiste a culpa de seus atos. É uma conclusão cristã, pois o pecador se pune em busca de algum perdão. É Tatum quem anuncia à multidão a morte do homem. Na mesma penitência, ele desiste de escrever a matéria que o devolveria à elite jornalística. E, por fim, na última seqüência ele retorna cambaleante à redação do pequeno jornal que abandonara. E como São Francisco de Assis que se expropria de toda a riqueza dos pais, Tatum oferece seus serviços de graça ao antigo chefe. A queda do personagem, no último plano do filme, é a metáfora do homem derrotado e humilhado.

 

 

ARISTEU ARAÚJO é editor da revista Moviola (www.revistamoviola.com). Antes, editava o blog Quebra de Eixo, onde este artigo foi originalmente publicado.

 

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