SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 4 – Janeiro-Fevereiro-Março de 2005

LONG-SHOT - LE GRAND THÉÂTRE LUMIÈRE

VONTADE DE CRÔNICA SOBRE O CIRCO PIOLIM SOLIDAMENTE ARMADO À PRAÇA MARECHAL DEODORO

Paulo Emílio Salles Gomes

 

Piolim, em cena de Tico-Tico no Fubá (1953). 

 

"iiiiiiiiii!!!"

Piolim

 

A interjeição piolinesca para os momentos de grandes embrulhadas, posta como epígrafe, reflete os apuros do autor diante da responsabilidade que assumiu de escrever uma crônica de Circo. Muita gente já escreveu histórias de Circo. Mas por enquanto só houve um cronista de Circo no mundo – o espanhol Ramon Gomez de La Serna. Mas ele também não é muita vantagem; Ramon Gomez de La Serna tem a alma cristalina como a alma dos palhaços .

Só há uma coisa mais perigosa do que escrever uma crônica de Circo; é, para querer encurtar caminho, atravessar a pista do Circo durante o intervalo. A pista do Circo é sagrada, e seu guardião intrépido é a Galeria. Não há ninguém que resista a uma vaia da Galeria do Circo. E é melhor não tentar resistir. Os recursos da Galeria do Circo são infinitos.

Aviso quase-prévio e de grande importância: não é possível conversar Piolim com quem não viu Piolim. E muito menos ainda se aprende Piolim com leituras. Não adianta. O conjunto de homens, mulheres e crianças que viram e ouviram Piolim formam uma maçonaria. Há uma cumplicidade misteriosa entre as pessoas que viram Piolim, e os não-iniciados são inflexivelmente afastados.

No Circo Piolim não há só Piolim. Há uma porção de outras coisas e eu vou contar tudo.

Eu sei de uma coisa que não sei se é minha mas que em todo caso é verdade. Diferentemente das outras artes, pintura, escultura, música, cinema, em que as coisas podem ser ótimas, más, regulares e péssimas na Acrobacia tudo é sempre bom e ótimo. Porque se não for, os artistas levam um tombo. Um pianista quando erra um compasso, o piano não avança para ele com sua alva e temível dentadura. Ora, direis, a vaia é muito pior. Ora, o que é a vaia perto de um acidente de pirâmide de quatro andares? Aí sim, a moça gorda do segundo andar pode cair em cima de um dos alicerces ou então o garotinho louro do pináculo pode partir a testa no chão. Mas nunca há nada disso. Não há acidentes de Circo fora de fitas de cinema. E nas fitas de cinema em que há desastres de Circo é sempre devido a sabotagem. E nunca essa sabotagem é culpa do Circo, é sempre por causa do enredo, de maneira que os acrobatas fazem sempre coisas que a gente não sabe fazer, nunca erram, e são muito bons. Bem, quer dizer, às vezes eles erram, não é, mas seria melhor para os inimigos do Circo que eles não errassem. Ha! que lição que os acrobatas dão quando erram. Querem ver? – Já foi armada a gangorra na Pista do Circo Piolim. O Raul – é claro que não vou apresentar o Raul, espero que estejamos entre gente que conheça o Raul - o Raul, pois, sobe numa torre armada no lado levantado da gangorra e prepara-se para saltar com todo seu peso e seu ventrão de atleta aposentado sobre esse lado da gangorra. Do outro lado o mocinho magro, aquele que dorme e sonha em cima de um bicicleta, deverá ser lançado ao ar, dar uma cambalhota, e cair de pé em cima do ombro do espanhol, o palhaço espanhol mesmo, aquele que está o tempo todo na pista para lembrar que, apresente-se o que se apresentar na pista, cantores mexicanos, sapateadores, declamadores (se a Galeria deixar), para lembrar, pois, que apresente-se o que se apresentar, está-se num Circo. O Raul dá pois o pulo em cima da gangorra, o garoto vai para o ar e erra. Uma vez, duas vezes. O público do Circo, que é, de todos os públicos de todas as artes, o mais solidário com seus artistas, espera excitado mas confiante. Os acrobatas usam dessa solidariedade com extrema discrição, confabulam um pouco e voltam, O filho de Piolim substitui Raul no alto da torre, um rapaz de olhos puxados, certamente o filho da japonesa, substitui o garoto magro. Um homem, será possível que eu esqueci quem é? sobe no ombro do Raul. Tárárá rárárárá. O garoto de olhinhos puxados vai para os ares e cai em pé sobre os ombros do Raul. As palmas entusiásticas são interrompidas pelo aparecimento de um pau muito comprido com uma cadeira lá em cima. A gangorra é preparada novamente, tudo está pronto. Tárárá. Pum. O garoto sobe, dá duas voltas completas no ar e senta-se na cadeira com a calma com que um representante da General Motors se instala numa poltrona do hall do Esplanada. Delírio. Os acrobatas homens sorriem com os braços rijos abertos, e os acrobatas mulheres se desmancham em agradecimentos. Larálaritintintan. Lalaraitantan. Outro número.

Os homens fardados que guardam a cortina donde sai toda essa gente extraordinária trazem umas cadeiras e colocam sobre elas três bonecos mortos. Surge um cavalheiro de smoking; já foi embora. Tem mais.

O mágico é o único cínico do Circo. Ele surge de turbante e chambrão oriental. Mas vai logo tirando. Os espertos, sempre os há nos circos, podem pensar que é no turbante e no chambrão que estão escondidos os coelhos e as pombas. Os espertos também acham que a secretária do mágico tem as pernas bonitas para desviar a atenção do público, de maneira que eles, os espertos, não olham para as pernas da secretária para não perder um instante os gestos cabalísticos do mágico. O mágico é o martírio dos espertos. A secretária entra na caixa cheia de furos e o mágico começa a enfiar as espadas. Os espertos se cutucam logo e cochicham - as lâminas são recolhidas dentro da bainha. Só falta o espadagão do alto que é enfiado com certa dificuldade. Abre-se a caixa, a secretária desapareceu. Os espertos não se dão por vencidos - isso é jogo de espelhos. Adiante.

Os cachorrinhos: uns lulus meio amarelos, não se sabe se é pó ou se são bastardos. No meio um viralata descarado, peladão, com umas manchas pretas, balançando a metade de rabo. Tarárárá. Ninguém tinha percebido uma escada de corda imensa que vai até em cima. Um cachorrinho sobe, cauteloso' olhando para os lados, para baixo, hesitando, experimenta o terreno (coitadinho está com medo), chega lá em cima, põe duas patinhas de fora, se arrasta todo e se atira finalmente no pano-rede que o espera em baixo. Ufff! Nem trapezista tem rede. Mas outro cachorrinho já está subindo pela escada, lampeiro, apressado, e com a mesma displicência e entusiasmo tenta andar no vácuo. O viralata não parou um instante de latir, dar saltos cá embaixo. Agora deve ser a entrada de Piolim e Raul.

É sim. Raul, muito branco de pó de arroz, com seus calções, nos coloca na plena tradição secular do Circo. Piolim agradece as palmas com meneios cheios de gentileza feminina. Piolim, assim como Charlie Chaplin, pode ser gentil e feminil porque não é nunca equívoco. Piolim passa despreocupado e vê Raul com um funil na mão e uma moeda na testa. Dá uma espiada e continua o caminho. Pára, olha mais um pouco, quer continuar a andar mas não resiste "O que éééé isso hhheem?" Pronto, lá vai Piolim cair no conto do funil. E vem uma do repertório acumulado de mais de cem anos de Circo. Piolim interpreta a "Imagine se as vacas voassem", quando chega o "mas não era barrrro", parece que nada mais é possível. Mas Piolim faz hipóteses sobre os detalhes do acontecido - "E o passarinho pulava de galho em galho. Ele quis pular num galho um pouco distante, precisava fazer mais força, juntou as asas e a ahuhuhu, sesgrassssççççado". Piolim vai embora, mas ele volta logo. Já deve estar na hora do intervalo. Não, ainda tem um número.

Mas o que é isso? Um casal de mexicanos vai cantar. Mas... a mulher não é mulher, é homem vestido de mulher. A galeria se agita. O guardião não quer confusões na pista imaculada do Circo.

 

Intervalo. É melhor não ir fazer pipi porque precisa entrar na fila. A pantomima.

 

Quando Piolim é ruim é que a gente vê como ele é bom quando ele é bom.

No "Peso pesado", uma de suas burletas mais medíocres, Piolim deixa de lado os recursos imensos de mímica que possui; mesmo de seu fabuloso repertório de maneiras diferentes de andar, de parar, ele não lança mão. Ele é um homem que tem e dá um peso horroroso. É tímido de gestos, humilde, acachapado. Ele tenta sair de seus lineamentos clássicos e é ruim o tempo todo, quase o tempo todo porque subitamente deparamos com a seguinte cena: Piolim depois de inutilmente procurar emprego volta para casa, tira o paletó e vai para o quintal. Um amigo vem procurá-lo e surpreende Piolim em pleno trabalho. Esse momento é admirável, Piolim surge em cena sem paletó, suas calças imensas seguras pelos seus incríveis suspensórios, tristonho e sorridente, esfregando a mão esquerda na calça para limpar um pouco, e segurando na mão direita uma pobre gaiola enferrujada com os araminhos todos entortados. Piolim coloca a gaiola cuidadosamente em cima de uma mesa e começa a prosear com o amigo.

Num dado momento este pergunta a Piolim o que está fazendo atualmente. Piolim, entre benevolente com seu destino melancólico e satisfeito em informar (Piolim adora informar) explica: - "Eu agora estou trabalhando no conserto de gaiolas quebradas".

 

Piolim membro da "Sociedade de guerra às mulheres levianas" é surpreendido pela família numa casa suspeita, bêbado, fantasiado com um vestidinho muito curto, sem mangas e com um pandeiro. É uma cena que procura diretamente o grotesco e que no entretanto não anula a inatingível ingenuidade essencial que Piolim possui.

 

Que coisa terrível quando Piolim encontra um gago! Se torce, se belisca, dá voltinhas em torno de si mesmo, pensa que o gago está dizendo coisas feias, faz sugestões, erra sempre, irrita o gago, começa a gaguejar também. Piolim detesta gagos, mas Piolim é freqüentemente sereno: - "O senhor é gago mas é um homem honesto" .

 

Piolim dá detalhes sobre sua família e a origem de seu nome - "Minha mãe era Piola e o meu pai Piolão".

 

Quadrinha da "noite de São João"; marcha militar do "Reservista Ventura"; tango do "delicias da vida conjugal". Piolim bailarino.

 

Como disse não sei quem foi, ser poeta é impor suas gafes. Piolim poeta.

 

Alerta Piolim heróico, vencedor em todas encrencas e de todos inimigos. O mais terrível você ainda não liquidou - é o Teatro.

 

 

Texto inédito de PAULO EMÍLIO SALLES GOMES (1916-1977), publicado somente em CALIL, Carlos Augusto e MACHADO, Maria Teresa (org.). Paulo Emílio: Um intelectual na linha de frente. São Paulo, Brasiliense / Embrafilme, 1986.

Citado pelo próprio Paulo Emílio em "Um discípulo de Oswald em 1935", in GOMES, Paulo Emilio Salles, Critica de cinema no Suplemento Literário, Rio de Janeiro, Paz e Terra / Embrafilme, v. 2, 1982, p. 442.

 

 

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