O CINEMA DE MEUS OLHOS

Vinícius de Moraes

Vinícius de Moraes e, ao lado, seu grande herói no cinema: Charles Chaplin, como Adenoid Hynkel, prestes a dançar com o globo, em O Grande Ditador (The Great Dictator, 1940)


III Congresso Brasileiro de Escritores, 1952. B.J.Duarte — um dos mais melhores críticos de Cinema da época (e um dos primeiros pesquisadores de Cinema a redescobrir a obra de Humberto Mauro ) — discursa indignado, protestando contra as deficiências gramaticais (leiam-se: erros de Português) encontrados nos artigos e resenhas publicadas na imprensa. E para provar a sua afirmação, começa a ler um texto — que, segundo ele, é um péssimo exemplo:


“Eu amiga ver Tarzan Ritz. Amiga bonita. Tarzan mais bonito e forte que eu. Azar meu. Amiga mais bonita que Jane. Jane chata. Jane cara burra. Namorada mais inteligente que Jane. Rainha preta linda. Eu Tarzan passava Jane para trás boas condições. Rainha preta uva. Toda boa. Tarzan dá pulo. Macaca Chita faz macacada tempo todo. Chita melhor atriz fita longe...”

Bastou isso para que a platéia, até então atenta e concordando com o orador, começasse a rir a bandeiras despregadas, deixando Duarte com cara de tacho. Ele só entendeu quando Ribeiro Couto, José Lins do Rego e outros escritores presentes começam a defender o autor daquela crítica mal-escrita: um tal de... Vinícius de Moraes...

Na verdade, poucas pessoas sabiam que Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes (1913-1980) tinha exercido o nobre ofício de crítico de Cinema (naquela época; hoje — com tantos escribas de aluguel na grande mídia exercendo esta atividade sem a cultura ou o estofo necessário para tanto — já não é tão nobre assim...). Pelo menos até que em 1991 Carlos Augusto Calil organizasse um volume de textos do Poetinha sobre o assunto, O Cinema de Meus Olhos (São Paulo, Cia. Das Letras / Cinemateca Brasileira, 1991). E textos sobre Cinema é um termo bem mais exato para defini-los. Em verdade, Calil nos informa que Vinícius não exerceu uma atividade propriamente crítica sobre Cinema: ele não foi propriamente crítico, mas cronista de Cinema.

E Vinícius entra na crítica (ou crônica?) de Cinema por um motivo bem próximo de nós, comuns mortais não-poetas: a falta de dinheiro. Em 1941, recém-casado com Tati e recém-chegado de uma Europa se matando a tiros, bombas e campos de concentração (cortesia da II Guerra Mundial), Vinícius foi nomeado para o Serviço de Censura Cinematográfica. O cargo era bom para um cinéfilo como Vinícius (e cinéfilo desde o tempo do Cinema mudo), mas não para um chefe de família, com mulher e filha (Suzana de Moraes, futura cineasta) para sustentar. Daí, para defender uns caraminguás, começa a escrever para a seção de Cinema do jornal A Manhã. Foi o começo de uma atividade de crítico (ou cronista?) cinematográfico — iniciada com uma tardia mas proveitosa polêmica entre o Cinema mudo e o Cinema falado — que passou por vários jornais cariocas e por uma revista chamada Filme — que se prolongaria até 1957/58, quando o Poetinha colabora na adaptação de sua peça Orfeu da Conceição para a telona (cujo resultado final foi Orphée Noir / Orfeu do carnaval , de Marcel Camus, 1959).

Ainda é possível encontrar O Cinema de Meus Olhos em algumas livrarias ou sebos. Para aguçar sua curiosidade, tomamos a iniciativa de transcrever alguns textos do Poetinha sobre Cinema.

O primeiro, claro, é "UH- UH UH UH UH- UH UH UH UH" — o texto que fez B.J. Duarte pagar mico no III Congresso de Escritores. Mais do que uma crônica sobre um filme em cartaz, é uma peça de fino humor e ironia sobre os filmes de Tarzan — a esta altura, sem Johnny Weissmuller a encarná-lo, futuramente destinado a intérpretes da “escola porta de madeira” de interpretação: bela estampa mas pouco talento.

O segundo, "Deu terra?" faz parte de um capítulo, Terra de Cinema, onde estão reunidos textos falando sobre o Cinema brasileiro. Aqui, a ironia novamente faz presença.

Os dois últimos textos falam de Carlitos, o genial vagabundo — um ícone cinematográfico quase que universalmente cultuado. Mais ainda pela geração de Vinícius — inclusive Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e outros poetas e escritores modernistas — que aprendeu a amar Carlitos no escurinho dos cines “poeira” e o cultuou como gênio. O primeiro é "Chaplin no Brasil..." Neste texto, Charles Chaplin — prestes a ser gentilmente convidado a se retirar dos EUA por conta da histeria macartista — torna-se mote para uma reflexão acridoce, de um humor amargo, quase pessimista, em relação a esta Ilha de Vera Cruz e sua elite econômica e intelectual. Para cortar este pessimismo, terminamos com "Luzes da Cidade: O Grande Amoroso", uma lírica e emocionada crônica sobre um dos melhores filmes de Chaplin, City Lights/Luzes da cidade (1931) — certamente, um grande impacto na geração de Vinícius de Moraes. E por tabela, para quem ainda tem um mínimo de sensibilidade para com a difícil condição humana.
 
UH- UH UH UH UH- UH UH UH UH
 
Eu amiga ver Tarzan Ritz. Amiga bonita. Tarzan mais bonito e forte que eu. Azar meu. Amiga mais bonita que Jane. Jane chata. Jane cara burra. Namorada mais inteligente que Jane. Rainha preta linda. Eu Tarzan passava Jane para trás boas condições. Rainha preta uva. Toda boa. Tarzan dá pulo. Macaca Chita faz macacada tempo todo. Chita melhor atriz fita longe. Comissário inglês cara cretino. Gostei bandido matou ele metralhadora. Eu gosto bandido fita americana. Chita rouba relógio comissário. Relógio toca musiquinha. Tarzan voa no cipó daqui a avenida Presidente Vargas. Tarzan bacano. Tarzan ama Jane. Besteira. Jane cara panqueca solada. Rainha preta sim. Boa boa.
Fita boba. Eu gostei. Amiga ao lado essa coisa. Fita muito pedaço roubado outras fitas África. Não tem briga de bicho. Pena. Tarzan luta planta carnívora. Índios lutam bem jiu-jitsu, catch-as-catch-can, capoeira, fazem qualquer negócio. Índio mau mascarado. Rainha preta também mascarada mas toda boa.
Weissmuller melhor. Maureen O’Sullivan antiga Jane muito melhor que nova. Weissmuller muito gordo. Eu também um pouco. Weissmuller muito velho fazer Tarzan. Weissmuller cara muito burra mas falava língua Tarzan espetáculo.
Tarzan cai cachoeira, atira faca certeira, cabeça cobra mecânica, mata sete cada vez feito alfaiate contos carochinha. Tarzan vê Jane dormindo faz olho morno. Aí Tarzan! Jane empalamo completo. Jane devia ser mulher comissário inglês assassinado e rainha preta mulher Tarzan. Isso sim. Mulheres mal distribuídas.
Tarzan e Jane brincam jogos aquáticos pura patifaria. Chita assiste, tapa os olhos, ri sem-vergonhamente. Jacaré vem vindo. Tarzan joga água Jane. Jacaré vem vindo. Jane joga água Tarzan. Jacaré vem vindo. Tarzan diz com licença, com licença, com licença. Bola fraca.
Cada um deve levar sua Jane ver Tarzan. Tem rapto Sabinas no fim com pileque geral tribo inimiga. Muito sensual para brotos e macróbios.
Perfil amiga lindo escuro cinema.
 
Última Hora, 08 / ago / 1951
 
 
DEU TERRA?
 
Não é por nada, não, mas acontece que estando eu num lotação, ou melhor, num microônibus, ou melhor, num corre-corre, ou melhor, num morre-morre, e sendo a a tarde amena e propícia ao pensar, pus-me a fazê-lo com grande desenvoltura. Pensamento vai, pensamento vem, de repente começaram a desfilar na tela da minha imaginação nomes de filmes brasileiros do passado e do presente. Lembrei-me dos tempos silenciosos e falados, e recordei várias películas confesso que não sem uma certa ternura. Ganga Bruta, Brasa dormida, Argila, Cascalho, Terra violenta, Barro humano, Flor do lodo, Terra é sempre terra – todos estes nomes me ocorreram no trajeto fatídico do Leblon à avenida Presidente Vargas, em meio a desmaios de senhoras, imprecações de cavalheiros e distúrbios gerais de vago-simpático entre os condenados presentes.
Pouco a pouco a incidência destes nomes me fez ponderar. Pois não é que todos eles tinham qualquer coisa a ver com terra, ou produto de terra? Coisa engraçada esse complexo por assim dizer geológico dos nossos homens de Cinema, de deitar terra em tudo ou quase tudo o que fazem. Por que será? Fiquei assuntando enquanto a lotação se encolhia como uma sanfona para passar entre um ônibus e um caminhão, o que conseguiu galhardamente embora à custa de cinco anos de minha vida e de um ataque cardíaco de um ancião sentado no último banco.

É terra que ta-parta – é ou não é? Mas está longe de ter explorado todas as possibilidades desse nome que é também o do planeta onde se desgastam nossas pobres vidas. Falta, por exemplo: Minha terra não tem parreiras – que daria um excelente título para um musical interpretado por minhas amigas Luz del Fuego e Elvira Pagã; Minha terra tem Parreiras, ótima cinebiografia a fazer do famoso mestre acadêmico; Sonho que aterra, sobre, por exemplo, a batalha em torno do Instituto Nacional do Cinema, de Alberto Cavalcanti; Terrorismo, a propósito de cangaço político ultimamente em voga; Terramicina, em louvor da milagrosa droga; e mais: Terremoto, Terrina, Inglaterra, Terraço, e terras quantas haja, roxas, crescidas, caídas, de Siena, firmes, novas (em homenagem à raça canina), pretas e refratárias. Muita terra, muita terra, terrivelmente terra. Capaz de aterrar o quintalzinho d’água que ainda resta à nossa linda Guanabara.
 
Última Hora, 15/jun/1951.
 

CHAPLIN NO BRASIL...
 

A notícia de que um grupo de capitalistas brasileiros estaria tentando trazer Charlie Chaplin para o Brasil, caso a Estátua da Liberdade lhe desse sinal vermelho à entrada do porto de Nova York, porquanto fantástica, criou em mim uma certa melancolia. Estava eu sem fazer nada, a tarde era abafante, tinha passado por mim um bando de mulheres feias, eu me sentia meio gordo... Enfim, Chaplin se incorporou a uma paisagem triste e sem perspectivas...

Chaplin no Brasil... Imaginei a chegada do maior artista do mundo na avenida Rio Branco apinhada de ponta a ponta, as carioquinhas a se precipitarem sobre o carro dele, a beijá-lo, a se disputarem os trapos de sua gravata e seu paletó, depois a inevitável intervenção da polícia, gritos, correrias, cabeças quebradas, quem sabe mesmo uma ou duas mortes em meio ao pânico criado.
Depois... Chaplin no Catete... Chaplin no Quitandinha... Chaplin no Vogue... recepção a Chaplin em casa do Senhor e senhora... Quem? A quem caberia o privilégio da primeira recepção grã-fina? Que grande dama da sociedade brilharia primeiro nos braços do Homenzinho do Chapéu-Coco do baião?

Depois...
 -- Ih, você sabe, minha filha, ele pode ser um gênio, mas te disseram o que ele falou outro dia em casa daquela nossa amiga que não prima pela elegância? Nem te conto!
-- Ih, foi? Mas que cafajeste!
-- Pois é. Eu estou absolutamente disposta a esnobar ele. Eu acho que a gente deveria simplesmente começar a ignorar ele.

-- E a mulher dele, você viu? É possível mais sem graça?
 
Depois... Chaplin na mão dos intelectuais. Recepção a Chaplin na ABI. Chaplin no “Maxim’s”.
 
-- Você viu como ele só prestava atenção àquela bicha horrível?
-- Uai. Pois você não sabia que ele era?
 
Depois... Chaplin almoçando no Bar Recreio, feijoada completa.
 
-- Não, escuta aqui, velhinho: o homem passou completamente acabado. E além do mais, puxa, ele não deixa ninguém falar. Espera um pouco...
 
Chaplin no Grande Ponto.
 -- Eh, José, como é? Põe uma dose direita aí pro homem, seu!
-- Alô, Charlie old boy !
-- Não vou já não, vou pegar uma carona do velho para Copacabana.
 
Chaplin no Bonfim.
-- Dê dois ovos com presunto aí pro velho que está caindo pelas tabelas. Como é, velho, acorda, como é chato!
 

-- Escuta, querida, você não pode arrumar alguma coisa para o velho Chaplin? Um programinha de rádio, qualquer coisa. É favor de amigo, porque eu não agüento mais o velho; palavra. É facada todo dia.
 
-- Não vamos passar pelo Vermelhinho, não porque a esta hora o velho Chaplin deve estar lá enterrado na batida. Aquele café dá uma sorte pra chato, puxa! Você se lembra do Bernanos? Não desgrudava...
 
Até que um dia, numa esquina carioca, um patético vagabundo surge entre a gente que passa apressada. É um vagabundo velho. Os olhos no fundo, os pulmões roídos de tuberculose. Há qualquer coisa quenele que lembra um outro, o do final de um fabuloso filme que se chamava Luzes da Cidade. Mas não deve ser o mesmo, pois não há nenhum jornaleiro para lhe atirar chumbinho, nenhuma florista bem-amada para lhe dar a esmola de uma rosa.
 
Peste de história triste, gente. Até parece que eu não acredito no Brasil.
 
Publicada com título diferente em Última Hora, 04/nov/1952.

Charles Chaplin em Luzes da cidade (1931).

 

LUZES DA CIDADE : O GRANDE AMOROSO

 

Vós, cidadãos homens, representantes de um mundo a que governais e de uma civilização a que destes forma; homens de todas as classes e profissões, que fazeis governos e os derrubais, que criais culturas e as deitais por terra, que fabricais guerras e morreis delas, que vindes crescendo e vos aprimorando — ser heróico a perseguir a Lua desde a treva das origens; vós, homens do tempo, criaturas solitárias incapazes de solidão, donos da criação e escravos de vós mesmos; vós, inventores do tédio e do ressentimento, portadores da verdade e da mentiras absolutas, perseguidos da tristeza, da alegria precária e efêmera, sempre contingenciados pelo vosso limite a que, no entanto, não aceitais...

 

Vós que sufocais a mulher, que a mantendes com pulso de ferro no nível que gostais de chamar “a sua inferioridade física e intelectual”; vós que amais a mulher nas suas algemas, pórque temeis a sua liberdade para amar; vós, que, porque temeis a realidade da muler, a desprezais e maltratais, e porque a desprezais recebeis em troca o artifíco e a traição...

 

Vós, homens que não sabeis mais amar — ide ver e amar Carlitos. É tal a sua devoção pela mulher amada que decerto isso vos tocará o coração. Seu abandono ao encanto da presença amada é tão grande que, estou seguro, isso vos envergonhará da vossa reserva. Seu préstimo é tão válido sempre que se trata de proteger a mulher amada, que, não há dúvida, isso vos fará sentir pequenos em vossa indiferença e egoísmo.

 

Carlitos ama a mulher amada desde que a vê, e quando nota que ela não pode vê-lo, na escuridão de sua cegueira sem amargura, não a ama melhor porque seu amor tem um fundo de bondade. Carlitos a ama porque ela é uma mulher, um ser genuíno e belo, e talvez um pouco porque ela o cria, em sua treva, à imagem do que ele gostaria de ser. Ele vem, pé ante pé, sentar-se ao seu lado, e se perde em contemplação até que ela o acorde com um jato d’água na cara, provindo do vaso que lava. Seu amor é feito de sonho, sim; mas nunca perde contato com o real. A realidade está sempre presente para humanizar a exaltação e o sonho. Ele lhe compra flores com o último níquel que possui, leva-lhe presentes capazes de lhe minorar a necessidade — um pato depenado, umas frutas, uma couve-flor; mas não deixará que tampouco que a realidade retire à vida o seu elemento de poesia—colocará a couve-flor à lapela, num gesto que revela não só o seu sentimento de elegância como o seu profundo senso de humor e a sua imensurável bondade. Ele procura distrair sempre a mulher amada da solidão em que a mergulha sua cegueira. Ser fragílimo, vai lutar boxe para poder pagar-lhe o aluguel vencido, e o faz com um medo que é a maior coragem do mundo. Arrosta conscientemente a prisão para que ela possa ser operada dos olhos — e nos apresenta, ao sair do cárcere, uma imagem de si mesmo que é a própria estátua da miséria e do desconsolo.

 

No final, ao reencontrá-la já curada, dona de uma pequena loja de flores no eterno conto de rua do filme, passa pelo vexame de ser humilhado e ofendido à vista da mulher amada por um uns garotos jornaleiros que sempre o perseguem. E quando a vê, seu olhar traduz uma tal ternura, que aquilo toca o coração da jovem, e ela lhe oferece uma moeda e uma flor.

 

Ele aceita, de longe, com medo de tocar a mulher amada, a flor que ela lhe estende. Mas ao depositar-lhe a moeda na mão, ela o reconhece pelo tato. “É você?...”, diz ela no auge da piedade e sofrimento de quem vê todo o seu sonho de Cinderela ruir por terra.

 

O olhar final que Carlitos lhe dá — de amor, temor, esperança, e humildade totais — não é apenas um dos maiores momentos da arte de todos os tempos: é também uma mensagem,de que a vida não termina ali, de que ela segue sempre seu doloroso curso, com o sonho e a realidade eternamente abraçados, a aumentar a perplexidade dos homens e a desafiá-los a descobrir a verdadeira fórmula da vida.

 

Última Hora, 07/dez/1951.

 

© 1951/1952 – Vinícius de Moraes

O Cinema de Meus Olhos ©  - 1991 – Companhia das Letras (Editora Schwarcz Ltda.)

© 2003 – SOMBRAS ELÉTRICAS

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