SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 3 - Abril de 2004

LONG-SHOT - HUMBERTO MAURO (ou: O DIA EM QUE DERAM MESCALINA A UMA MÁQUINA DE FILMAR)

 

O TESOURO ESQUECIDO

Sheila Schvarzman

 

A equipe do INCE trabalhando: filmagem na biblioteca da Casa de Rui Barbosa. Da esquerda para a direita, Humberto Mauro, Mateus Colaço, Beatriz Bojunga (filha de Roquette-Pinto, folheando os documentos para a câmera) e Manoel Ribeiro (na câmera). Foto de José de Almeida Mauro, CTAV-Funarte

 

Em 1936, Humberto Mauro e Roquette-Pinto (1884-1954), dois homens de horizontes muito diferentes, foram reunidos num órgão oficial, o Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince). Ali, procuraram dar forma à utopia de transformar o Brasil por meio do cinema: Do encontro entre o intelectual, o artista  surgiu uma produção de mais de 300 filmes documentários, que durante muitos anos foi deixada à margem da obra de Mauro. Uma visão mais detida desse período – que se estende até 1967, quando o cineasta se aposenta do Instituto – talvez possa mostrar que essa parte da obra maureana está longe de ser mera produção de sobrevivência, ainda que a questão da sobrevivência não seja alheia a ele.

Embora tivesse acabado de realizar seus dois filmes mais populares, Favela dos Meus Amores e Cidade Mulher, a falta de perspectivas do cinema brasileiro em 1936 mudou os rumos da carreira de Humberto Mauro. Naquele momento; quando foram produzidos apenas:cinco filmes de longa-metragem,já se transformara em vendedor de enceradeiras. Foi nesse papel, até onde se sabe[1], que conheceu Edgard Roquette-Pinto, na época diretor do Museu Nacional. O antropólogo, que estava engajado na criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo, conseguiu o diretor de filmes que procurava.

Até aquele momento, Mauro tinha sido um raro exemplo de carreira bem-sucedida como cineasta no Brasil. Seus filmes, a partir de 1925, vinham configurando um novo patamar para o cinema brasileiro, onde pensar e mostrar o Brasil era um elemento fundador. O sucesso, no entanto, não evitou que Mauro fosse obrigado a ter o emprego de vendedor de eletrodomésticos – aspecto esclarecedor sobre a natureza da atividade cinematográfica no Brasil[2]. Já no Ince, Mauro é chamado pelo Instituto de Cacau da Bahia para dirigir O Descobrimento do Brasil, e pede a Roquette-Pinto que o auxilie.

Roquette-Pinto havia sido convidado por Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde, para dirigir um órgão oficial que produzisse filmes educativos. Médico de formação, antropólogo, depois de participar de expedição de Rondon, em 1912, escrevera alguns de seus livros fundamentais, como Rondônia e Seixos Rolados. Ali, pensa a questão da formação da raça e da cultura brasileira não em termos de uma combinação genética pobre, resultado de "três raças tristes", como faziam muitos de seus contemporâneos.

Para ele, o atraso era uma questão sociaI e sua solução, a educação do povo, visão de forte inspiração positivista. Inventor, entusiasta dos progressos técnicos, organizador da primeira filmoteca brasileira, em 1909, com o material das expedições de Rondon, introdutor do rádio no Brasil em 1922, era um visionário para quem o cinema e o rádio seriam os veículos avançados contra o atraso, "a escola dos que não tinham escola". Esta crença era partilhada por educadores como Femando Azevedo, Lourenço Filho e outros ligados ao movimento da Escola Nova, que, desde o início dos anos 20 já se mobilizavam pelo uso pedagógico do cinema. Esta crença na pedagogia da fascinação pela imagem seduzia, na época, inúmeros detentores de poder. Getúlio Vargas, em 1935, fala do cinema como um meio da unificação nacional “o livro das letras luminosas”, que "aproximará os diferentes núcleos humanos, dispersos no território vasto da República"[3].

Se a produção de filmes educativos estava na ordem do dia, o limite entre a educação e a propaganda era muito tênue. É dentro limite estreito e de expectativas salvacionistas que surge o Ince.

Os temas dos filmes produzidos incluíram medicina, física, mecânica, higiene e prevenção de doenças, séries sobre vultos pátrios (músicos, poetas, escritores, políticos), fatos relevantes da história do Brasil, educação rural e o cancioneiro popular. A idéia que norteava toda esta produção era a do.cinema como um meio que ensina independentemente da vontade de aprender, cujas imagens são expressão do progresso, pois têm a capacidade de reproduzir fielmente o real, desencadeando o avanço pelo exemplo do que se pode ver nelas. Assim, vence as resistências da ignorância, do poder local e do atraso.

Desse ideário ambicioso, o Ince consegue preencher apenas partes. A maioria das escolas não tem projetores, a eletrificação na época é precária, assim como os transportes e as ligações entre os Estados. Os filmes são mais retirados no Distrito Federal, Estado do Rio e em Minas Gerais. São Paulo dá as costas.

Em 1942, Lourival Fontes, diretor do Departamento de Informação e Propaganda (DIP), descontente com a autonomia do Ince, já que este não caminhava de passo com a propaganda, e ávido por mais estrutura material, reclama a Vargas da falta de unidade no setor e faz redigir um decreto em que previa a total incorporação do Ince pelo DIP. Roquette-Pinto reage, insistindo na diferença entre propaganda e educação, e mantém sua autonomia. Após o episódio, as mudanças perceptíveis são a diminuição no número de filmes e a distribuição, pelo DIP, de alguns filmes de "caráter popular", em salas de cinema. Por outro lado, sempre houve, entre os filmes do Ince, a cada ano, alguns títulos de caráter indiscutivelmente oficial. Filmes de cerimônias, como O Dia' da Pátria, feito de 1936 a 1939, Juramento à Bandeira (1937) ou O Estado Novo organiza a Juventude (1942).

Em 1939 foram feitas três edições de um Jornal do Ince, em que eram exibidos filmes do Cine Jornal Brasileiro de responsabilidade do DIP, filmes de atualidades estrangeiras, como "Daladier Visita à Tunísia", e filmes do Ince sobre "Homenagem, aos Mortos de 27 de Novembro de 1935". A série, entretanto; não tem continuidade[4].

Destes filmes de "atualidade" pode-se ver hoje apenas O Dia da Pátria de 36, Acampamento de Escoteiros ou Pedra Fundamental do Edifício do MES (1937), em que Roquette-Pinto, ladeado por Gustavo Capanema e Carlos Drummond de Andrade, seu chefe de gabinete, discursa, exaltando os ideais culturais do novo governo, que se afirmavam, dizia ele, na construção do revolucionário edifício.

O que é interessante notar nestas imagens é a inapetência de Mauro para a exaltação dos homens públicos e do oficialismo das cerimônias. As filmagens diretas são canhestras, pobres. Mauro sequer ia aos locais de fIlmagem. Como disse mais tarde o embaixador Roberto Assumpção, que trabalhou no Ince nessa época, "era preciso mostrar serviço". As imagens confirmam esta afirmação. Pode-se ver em sua falta de empenho as marcas da encomenda, como se procurassem afirmar, assim, a distância entre educação e propaganda.

Essas imagens oficiais estão bem distantes da inventividade alegre de Um Apólogo (1939), filme sobre Machado de Assis que encena o conto A Agulha e a Linha, e em que Mauro ambientou, com ajuda de trucagem, a ação dos personagens no interior de uma caixa de costura.

O ideário dos filmes do Ince era em grande medida o ideário de Roquette-Pinto, mesclado com sugestões de Mauro e de especialistas. Os filmes não são pensados especificamente para a sala de aula ou acompanhando programas escolares. A noção de educação que emerge dos filmes se: aproximava mais do conceito de cultura como criação de hábitos, de um saber próprio do homem brasileiro, do que da instrução em sentido estrito. Os filmes sugerem soluções técnicas, exaltam descobertas, introduzem a inovações científicas, imbuídos da crença no progresso. Falam de flores, plantas ou peixes brasileiros cuja existência "nos alteava frente aos outros povos" (conforme narram alguns deles), cidades históricas ou da produção de nossos "vultos", concebidos como heróis da nacionalidade.

Roquette-Pinto era profundo admirador de Goethe e Euclides da Cunha e, por estas vias, a natureza e o "homem brasileiro" aparecem de forma grandiloqüente nos filmes. É esta grandiloqüência, expressa nas narrações dos filmes, que parece se sobrepor ao trabalho de Mauro, como se este fosse, não raro, apenas o artesão de idéias alheias.

 

A questão não é tão simples. Mauro e Roquette-Pinto se encontram na visão romântica do culto à natureza, na preocupação com as raízes, no interesse pelos avanços nacionais, no gosto das invenções técnicas que cada filme demandava e, sobretudo, na busca constante para fazer do cinema o veículo deste conhecimento transformador.É aí, de novo, é na própria concepção fílmica de Mauro que a grandiloqüência das narrações, muitas vezes vizinha do oficialismo, pôde ser rompida.

É claro que  esta produção não passa imune aos ideais do seu tempo, expressos; por exemplo, em Parada da Juventude, de 1940, ou Corrida Rústica de Revezamento, de 1939) em que se manifestam preocupações com a formação física e com a própria raça, caras ao regime, e em que os negros praticamente inexistem nas filmagens. São contradições no próprio interior de pensamento,de um tempo histórico e de seus personagens.

Com a saída de Roquette-Pinto, em 1947, substituído no trabalho direto com Mauro pelo educador Paschoal Lemme, parece surgir um Mauro mais pessoal. Mas isso não é inteiramente verdade.

Mesmo com Roquette-Pinto, Mauro já fizera filmes personalíssimos, como Um Apólogo (1939), Lagoa;Santa (1940), O Despertar da Redentora (1942) ou Carlos Gomes (1942) Neste último, Mauro encena um trecho de O Guarani e tira todo o partido plástico e expressivo da relação simbiótica que estabelece entre os homens, a sua produção (no caso, a música) e a natureza concebida não apenas como fundo ou paisagem, mas como parte integrante da ação, sinal visível da pr6pria possibilidade de transcendência.

Isso é ainda mais claro em O Canto da Saudade, de 1952 seu último longa-metragem, feito fora do lnce (mas gestado a partir de 1945, quando Mauro começou a série Brasilianas, em que colocou em imagens as cantigas populares nacionais). Neste filme convivem novamente, o Mauro documentarista, o memorialista,que conta uma lenda de sua cidade, o ficcionista, integrando de forma absoluta a natureza e a música o homem e seus fazeres.

O que se vê não é um Mauro mais livre com a saída de Roquette-Pinto do Ince, apenas um Mauro mais maduro e em um momento histórico diferente daquele que partilhou com o antigo diretor.

Nesse momento, Mauro aprofunda a sua ligação com o campo e a paisagem mineira. Em 1945, retoma a Volta Grande (mesmo desse episódio Roquette-Pinto não está excluído: ambos compraram terrenos na cidade; Roquette revendeu os seus a Mauro, que ali construiu o seu Estúdio Rancho Alegre). É lá que realiza seus filmes bucólicos e rurais, num momento em que o Brasil se industrializava.

Nesse sentido, Engenhos e Usinas (1955) e Carro de Bois (1956 e 1974) são documentos eloqüentes da dicotomia entre um tempo que muda, voraz, e outro que só pode restar como poesia. Filmes como esses já são "lugares de memória", construções de um passado, em que o Brasil aparece na tela harmônico, encantado, justo, tal como, por certo, só existia mesmo nas lembranças que se tornaram filmes.

Mauro construiu uma utopia, paralela à utopia do cinema educativo: elas permanecem indissociáveis. O Mauro poeta é, em linhas gerais, o mesmo Mauro "oficial": talvez o Ince tenha sido uma face sonhadora do Estado.

 


 

SHEILA SCHVARZMAN é doutora em História  Social pela UNICAMP e Professora visitante do Curso de Pós Graduação do departamento de Multimeios do Instituto de Artes. Escreveu Humberto Mauro e as Imagens do Brasil, Editora da Unesp (no prelo). Este artigo foi publicado originalmente  no caderno Mais!, da Folha de S. Paulo de 27 de abril de 1997, dedicado ao centenário de nascimento de Humberto Mauro.

 

© 1997 – Sheila Schvarzman

© 1997 1ª publicação – Empresa Folha da Manhã

© 2004 – SOMBRAS ELÉTRICAS



[1] Segundo o depoimento de Beatriz Bojunga, filha do antropólogo que gostava de ressaltar do pai, a capacidade de reconhecer e dar chance a talentos como o de Mauro. Na verdade, os dois já se conheciam bem, pois Roquette sempre esteve ligado ao cinema por vias oficiais, tendo sido censor de filmes entre 1932 e 1934, no momento em que se procura estimular a produção de documentários educativos.(decreto 12.240 de 1932)

 
 

[2] Zequinha Mauro, seu filho mais velho e colaborador, acredita que é possível que isso tenha acontecido já que o avô Caetano, pai de Mauro trabalhava no ramo. De toda forma, quando Mauro deixa a Brasil Vita Filmes de Carmem Santos, faz alguns trabalhos para Lourival Fontes do Departamento Nacional de Propaganda.

 
 

[3] Vargas, Getúlio – Discursos, Rio de Janeiro, Cia. Editora Nacional, 1937. "Discurso aos cinegrafistas", 1935.

 
 

[4] Souza, Carlos Roberto de. Catálogo Filmes Produzidos pelo !nce. Rio de Janeiro, Fundação do Cinema Brasileiro, 1990.