SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 2 - Março de 2004

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DUAS NOITES DIFERENTES E IGUAIS: Contextos e conflitos em diferentes adaptações de Dois Perdidos Numa Noite Suja

Reinaldo Cardenuto Filho

 

 

Roberto Bontempo e Débora Falabella em cena de Dois Perdidos Numa Noite Suja, (2003) a nova versão da peça de Plínio Marcos feita por José Joffily.

 

Autor de textos marcadamente relacionados ao universo marginal, Plínio Marcos estreou no teatro em 26 de dezembro de 1966 com a primeira montagem profissional de Dois Perdidos Numa Noite Suja, peça inspirada no conto “O Terror de Roma”, de Alberto Moravia.

 

No enredo, dois homens que dividem um desolado quarto de pensão vivem um intenso conflito de valores, estruturando suas relações em torno de um simples par de sapatos. Imigrante que se mantém atrelado aos laços familiares, Tonho acredita que sua vida poderá mudar caso adquira um novo calçado. Apesar dos estudos, informação que repete incansavelmente, mas que não tem oportunidades de demonstrar, possui plena consciência de que somente encontrará um bom emprego se conseguir causar uma impressão satisfatória. Para o personagem, falta-lhe exatamente o mais essencial em um mundo regido pelas aparências: o aspecto visual. Paco, por outro lado, não possui ou não explicita qualquer vínculo familiar ou o desejo consciente de estar inserido no mecanismo social. Aparentemente egoísta e mesquinho, demonstra uma clara rebeldia frente ao mundo. Como nunca foi ajudado por ninguém, também não ajuda o outro, sobrevivendo unicamente graças a seus esforços.

 

Bastariam essas diferenças de personalidades para que ambos, enclausurados em um quarto, tivessem uma experiência baseada na discórdia. Afinal, a principal diversão de Paco é importunar continuamente Tonho, cuja revolta contra a situação passa de gritos e tapas inofensivos a lamentos fervorosos contra a existência. Plínio Marcos, entretanto, introduziu na já problemática vivência dos personagens um elemento que intensifica o cotidiano caótico: Paco possui um novo par de sapatos, maior desejo de Tonho. Enquanto o último demonstra a provável importância do calçado, implorando que seu companheiro o empreste por um dia; o primeiro somente utiliza o “pisante” como acessório, descartando por completo qualquer possibilidade de empréstimo. Instaura-se um jogo de poder que dura até o final da peça, quando eclode uma violenta inversão que termina com o dramático assassinato de Paco.

 

O texto de Plínio Marcos, ao esboçar criticamente a ausência de união e empatia entre os representantes de uma classe marginalizada, constatando friamente a improvável formação de uma “classe por si”[1][1] que possa fazer frente ao poder do Capital, chamou a atenção da crítica especializada. A boa acolhida, no entanto, não renderia somente possíveis discussões ou acepções sobre as questões sócio-culturais brasileiras, mas também, o reconhecimento da peça como importante para delinear o mal-estar que se fazia presente nas relações autoritárias entre indivíduos que, de certa forma, sofriam dos mesmos males. Em plena época na qual muitos intelectuais exaltavam os menos favorecidos, dotando-os de uma imagem caricatural em que prevalecia “o ingênuo sujeito preocupado com o coletivo, cuja alienação advém unicamente dos mecanismos intrínsecos à sociedade capitalista”[2][2], Plínio introduz um mal-estar nada passageiro que tende a piorar gradativamente, pois assimila até mesmo os que tentam dele escapar.

 

Esse reconhecimento rendeu, em 1971, a primeira versão cinematográfica de “Dois Perdidos Numa Noite Suja”. Dirigido por Braz Chediak, com Emiliano Queiroz e Nelson Xavier no elenco, o filme conseguiu manter o mesmo clima de decadência presente no texto original.

 

Quase completamente filmado durante à noite (com exceção de algumas cenas que não são, necessariamente, conflituosas); com a maioria das situações apreensivas acontecendo dentro de um quarto apertado e mal iluminado, cujos elementos cenográficos em destaque são todos precários ( como colchões rasgados, colchas furadas e paredes em péssimo estado); e com uma excelente interpretação dos atores principais, o que recoloca a dicotomia reinante entre Tonho e Paco; Chediak preservou o espírito de “Dois Perdidos Numa Noite Suja”.

 

Além disso, os elementos presentes no longa-metragem, mais do que tentar uma aproximação fiel aos significados propostos por Plínio Marcos, são estruturados a partir de uma opção técnica/estética claramente teatral. Não é gratuita, portanto, a utilização de longos planos-sequências nos interiores (representação do palco), de uma interpretação dramaticamente exagerada, assim como a presença preponderante dos diálogos, e nunca das imagens.

 

Envolvidos por uma narrativa com desenvolvimento linear, este conjunto de fatores está presente em quase todos os momentos do filme. Nas discussões dos protagonistas, por exemplo, o nervosismo contínuo é reiterado por um plano-seqüência cujo enquadramento coloca os protagonistas nos limites horizontais da tela. Filmados em plano aberto, os dois parecem pólos de uma balança na qual o peso tende ora para um lado e ora para outro. O diálogo expressivo e áspero é quem comanda o desequilíbrio. Tal construção fílmica fica evidente logo na primeira discussão entre Tonho e Paco, quando ambos estão em suas camas, com os espaços da direita e da esquerda preenchidos e do centro esvaziado.

 

Pela complexidade e por ser parte essencial da narrativa, o tratamento recíproco dos dois personagens merece uma discussão maior. Tonho e Paco são pessoas solitárias. O primeiro, vindo do interior, mantém um estreito laço com a família, preservando um retrato e enviando, quando pode, correspondências com notícias. Já o segundo, nem tal ligação possui. Vindo de um orfanato onde aprendeu a tocar flauta, não tem namorada nem amigos. “Perdidos na noite”, são completamente excluídos dos vínculos sociais existentes entre os companheiros do mercado em que trabalham como carregadores. Tonho não se importa. Ele toma sopa sozinho, transporta caixas calados e, quando atormentado pelo “negão”, tenta resolver a situação longe dos códigos instituídos por aquela comunidade, ou seja, na conversação e não na violência. Paco, por sua vez, se importa. Independente de gostar ou não do companheiro de quarto, tenta desesperadamente ser aceito como parte do grupo dos carregadores. É por tal razão que espalha infâmias sobre Tonho e o incita a matar quem o blasfema, apostando que tal empreendimento possa lhe render um espaço. O discurso, todavia, falha. A conseqüência é a continuidade da exclusão.

 

Tal marginalismo e a necessidade de vínculos é, por conseguinte, o que mais une os protagonistas. Tonho explicita sua indisposição em relacionar-se com os trabalhadores, porém, quando Paco lhe nega o empréstimo do sapato, fica claramente magoado e desapontando, imaginando que duas pessoas, como em uma família, devem se ajudar. Desenvolve-se então uma dualidade repulsiva de poderes. Enquanto o órfão mantém-se próximo do imigrante, humilhando-o com a finalidade de descartá-lo assim que cumprir seu objetivo; o outro se deixa humilhar, já que enxerga em Paco o único que pode preservar possíveis laços simbólicos de parentesco.

 

Falta para ambos a sensibilidade da aproximação. Eles não conseguem perceber o quanto são complementares. Tonho parece refletir sobre isso, parece acreditar na possibilidade de uma amizade, mas suas ações colocam em dúvida tal idéia. Além de ser, muitas vezes, violento, quer o calçado emprestado com o único desejo de ir embora, de abandonar exatamente quem mais precisa.

 

A ironia de Plínio Marcos aparece na seqüência final, quando há uma inversão na dualidade de poderes. Paco, aquele que aparentemente era o que menos respeitava o outro, demonstrando menor alteridade, começa a aceitar a companhia de Tonho assim que este propõe um assalto. A ação, agressiva e bem sucedida, desencadeia nele novos ideais: irá mostrar para o mundo que é “maluco e perigoso”. Junto de seu companheiro irá barbarizar os namorados do parque, tornando-se um famoso bandido procurado. Neste diálogo evidencia-se a primeira tentativa real de aproximação. Para Paco, não interessam mais os carregadores, mas sim, aquele que sempre esteve dormindo na cama ao lado. O oposto, entretanto, não acontece. Numa fúria insana, reavaliando os valores burgueses tradicionais, Tonho desespera-se. A decadência de seu sistema é evidente. Não arranjou emprego, foi humilhado apesar de querer ser amistoso, roubou, foi cúmplice de um possível assassinato e agora era aceito como parte de uma dupla de ladrões. O único modo de ser rearranjado em seu próprio universo de valores é acabar com quem o seduziu, assassinando-o. Em um sentido metafórico, fica presente a ausência de cumplicidade entre indivíduos de uma mesma classe.

 

Passados mais de 30 anos da primeira adaptação cinematográfica de “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, José Joffily dirige uma nova versão que, ao tentar contextualizar o conflito entre Paco e Tonho, desloca o conteúdo político-social analisado até o momento. Lançado comercialmente no ano de 2003, com Roberto Bomtempo e Débora Fallabela no elenco, o filme inspira-se diretamente no texto original, mas não é uma adaptação que procura sustentar as mesmas pretensões.

 

Utilizando o universo dramático criado por Plínio, Joffily realizou um longa-metragem cuja proposta caminha em outra direção. As diferenças são substanciais. Se antes o sujeito estava marginalizado em sua própria cultura, sendo excluído da sociedade em que nasceu, agora a questão torna-se mais explícita. Os personagens vivem em Nova Iorque, em uma comunidade com outros valores. Mesmo que estivessem integrados ao modo de vida norte-americano, haveria sempre um certo distanciamento, afinal, os imigrantes carregam consciente e inconscientemente a língua e os costumes singulares de seu país de origem.[3][3] Esta explicitação, não tão evidenciada no original, também aparece no relacionamento entre os protagonistas. A transformação de Paco em uma garota rebelde que se traveste em homem para conseguir vender o corpo desenvolve novos contornos na vivência deles. Se havia uma necessidade mútua ocultada e despercebida pela maneira agressiva como se comportavam, agora há, desde que se conhecem, uma desconfiança de que solitários de sexo opostos, ao se encontrarem quando distanciados de casa, tendem, com o tempo, a se relacionarem afetivamente.

 

A tese fica comprovada durante o filme. No decorrer de uma cena, depois que Tonho já observou Rita (nome verdadeiro da garota) diversas vezes com uma olhar apaixonado, ele tenta efetivamente uma aproximação. Enquanto ela se observa no espelho, começa a acariciá-la, seduzi-la. O prazer demonstrado por ambos não deixa dúvidas: há uma necessidade mútua provocada, naquele instante, pelo desejo sexual.

 

A escolha de Joffily, portanto, foi destituir a história de elementos fortemente políticos e sociais, dando-lhe uma contextualização próxima ao afetivo amoroso. Neste caso, como o objeto em foco é outro, a análise não deve se preocupar tanto com a possível fidelidade da adaptação de uma história de Plínio Marcos, como o par de sapatos não estar mais no cerne das tensões, mas sim, quinhentos dólares necessários para Tonho retornar ao Brasil. A inspiração direta e as mudanças ocasionadas por uma nova abordagem, todavia, merecem um exame atento cujo fim é perceber se o filme conseguiu, de certa maneira, preencher satisfatoriamente seus objetivos.

 

A inspiração direta em Plínio Marcos vai além de características ficcionais parecidas. Mais do que uma trama que não sofre alterações substanciais em seu núcleo, com exceção da relação amorosa e da conclusão, em que ninguém é assassinato, no Dois Perdidos de Joffily há a tentativa de restaurar o mesmo conflito entre os protagonistas. Entretanto, diferente do longa-metragem de Braz Chediak, não há uma construção satisfatória do embate. Na produção recente, Tonho é excessivamente fraco. Embora aja de modo violento quando nervoso, não consegue contrabalançar as provocações de Paco. Já este, excessivamente forte, oprime continuamente o companheiro, não lhe dando qualquer chance de expressão. Muito caricatural, tal relação sofre um desgaste tão intenso que a dupla inversão no final falha. Quando Tonho finalmente detém o poder e o espectador pode observar uma Rita humilhada e enfraquecida, soa estranho, inverossímil. Se havia um desenvolvimento gradual que sustentava esta inversão, ele desaparece aqui.

 

A falta de preparação para o desencadeamento final, todavia, não acontece unicamente pelo desenrolar sufocante da história. Como a força deste Dois Perdidos Numa Noite Suja não está concentrada nos diálogos em justaposição com uma estrutura teatral linear, as imagens adquirem uma presença maior e, conseqüentemente, influenciam mais no desenlace da narrativa[4][4]. Sendo assim, ao optar por utilizar e manter, nos interiores, um ritmo nervoso, com muitos cortes, uma câmera sempre em movimento e, principalmente, primeiros planos que ininterruptamente salientam a agressividade dos personagens, aumentando o fator dramático e psicológico do conflito, Joffily não apenas deixou de introduzir momentos de suspensão, como desgastou rapidamente um embate que deveria ser progressivamente processado.

 

Tal fator interfere também na nova abordagem. O filme não cumpre a tendência sentimental-afetiva que anuncia desde o início exatamente pela ausência de uma gradual aproximação entre os companheiros que dividem a residência. Na junção entre uma técnica e uma relação que são rapidamente desgastantes, o momento que Tonho anuncia seu amor por Rita ou a cena em que ela, logo depois de abandonada, sai na rua desprotegida a procura dele, tornam-se irrisórios.[5][5] A falta de sustentação, equilíbrio e ritmo enfraquecem as confidências, que são ditas sem preparação, de forma muito abrupta.

 

 

É fato que, nas últimas cenas, a montagem que apresenta seqüencialmente Rita travestida novamente em Paco e sozinha em Nova Iorque, enquanto Tonho caminha solitário com sua mala de viagem, objetiva contrapor duas existências que poderiam se completar, mas, mesmo assim, continuarão vazias, solitárias. Infelizmente, tal simbolismo não tem potência dramática. Para o espectador, o momento da despedida, mais do que de tristeza ou alívio político, como no Dois Perdidos original, aparece como relaxamento visual, como um dos únicos planos abertos a proporcionar um repouso dos closes e do ritmo lancinante dos cortes abruptos e da câmera em êxtase contínuo. O filme respira fundo tarde demais.

 

REINALDO CARDENUTO FILHO é pesquisador do Centro Cultural São Paulo

 

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[1] Utilizo o “Dicionário de Pensamento Marxista”, escrito por Tom Bottomore, para explicitar o significado do conceito criado por Marx: “A classe existente empiricamente só pode agir (com êxito) se adquirir consciência de si mesma (...) transformar-se de ‘classe em si’ em ‘classe por si’. Se uma determinada classe não consegue realizar totalmente esta transformação, sua ação política também fracassará”. No caso de Tonho e Paco, ambos estão alienados para a questão da luta de classes, permanecendo em um estágio muito primário da “classe em si”. Eles sequer têm consciência de suas similaridades sociais.

 
 

[2] Exemplo concreto disso é o longa-metragem episódico “Cinco Vezes Favela”. Dirigido por Marcos Farias, Miguel Borges, Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, com estréia em 1962, mantém presente a imagem caricatural da classe social menos favorecida, principalmente dos habitantes das favelas cariocas.

 
 

[3] A opção em ambientar o filme em Nova York distancia o conflito do universo brasileiro, deslocando a problemática para o exterior e dotando nosso país de um certo romantismo, já que Tonho insiste em voltar para o aconchego familiar e continuamente relembra seu arrependimento em ter emigrado para um lugar que o marginaliza.

 
 

[4] Em comparação com “Dois Perdidos” de Chediak, o de Joffily utiliza mais elementos cinematográficos e imagéticos. Enquanto o filme do primeiro é estruturado linearmente, por exemplo, o do segundo utiliza-se, a todo momento, de flashbacks. Ademais, a nova versão apresenta técnicas como a montagem paralela.

 
 

[5] Vale dizer que durante a sessão que assisti, quando Tonho confessa seu amor para Rita, muitos espectadores riram. Inicialmente, fiquei na dúvida se era um riso de nervoso, afinal era uma cena conflituosa. Porém, logo após o filme, tive a oportunidade de conversar com algumas pessoas que me confessaram terem achado o momento engraçado, já que não “combinava” com o desencadeamento da trama.