SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 4 – Janeiro-Fevereiro-Março de 2005

LONG-SHOT - LE GRAND THÉÂTRE LUMIÈRE

CINEMA E ANIMAÇÃO

Felisberto Sabino da Costa

 

O cinema, nos seus primórdios, até o início do século XX, constituía-se em diversão de freqüentadores de feira, coexistindo com outros gêneros criativos. As imagens em movimento proporcionavam o deleite desta platéia. Um pouco antes, o Kinetoscópio, de T. Edison, proporcionava ao espectador a visão  individual das imagens animadas. A Lanterna Mágica constituía-se de uma espécie de projetor de slides, um aparelho ótico que refletia e ampliava imagens a distância.  Havia os que poderiam projetar de vinte  a trinta imagens por minuto, com o recurso de sobreposições mediante o uso de lentes, em alguns casos, utilizando-se o narrador como recurso dramático, e os quadros sucediam-se sob a narração de um indivíduo.

 

Os artistas de teatro, que trabalhavam com mágicas, variedades, gran guignol,  entre outros segmentos, pela aproximação dos meios,  passaram a se interessar por aquela arte nascente e, nessa ambiência  primeva, devem ter ocorrido mútuas contaminações. Em 1902, os irmãos Pathé fundam seu primeiro estúdio em Paris com pessoas vindas do teatro. Nessa fase, muitos dos trabalhadores do cinema acumulavam diversas funções.  Ferdinand Zecca, colaborador de Pathé,  era produtor, roteirista, diretor e ator. Ivan Mosjoukine, da Albatros,  era cenógrafo, diretor, montador e ator, entre outros. Num primeiro instante, privilegiam-se as imagens em moção, ficando em segundo plano o conteúdo dramático. O movimento ainda não estava totalmente estabelecido pela câmara, sendo uma parcela dele creditada aos atores. Assim, tem-se pequenos filmes, nos quais dança, números musicais e atrações de feira constituem a temática.  A tônica é o movimento corporal, ora com  as famigeradas cenas de perseguições, nas quais os atores enfrentavam os mais diversos obstáculos; ora com o ator  imerso em cenários exóticos pintados nos estúdios. A preponderância da imagem exigia gestos nítidos, e muitas vezes, eloqüentes. 

 

Os filmes pautavam-se pelo binômio imagem e trilha sonora, que nessa época, quando ocorria, era executada ao vivo. Houve alguns tentativas de  sincronizar imagem e som, mas foram exceções. A maioria deles eram mudos e deviam ser compreendidos somente pela imagem. No princípio, uma grande quantidade de filmes aproximava-se de um teatro filmado, em que se tinha um plano fixo, com a câmera plantada diante da ação.  Do quadro predominante parado, na era inicial,  a história passou a ser narrada por intermédio das mudanças do ponto de vista no interior de uma mesma cena.  Destarte, a variação dos planos, associada à montagem, deram  ensejo ao nascimento da linguagem cinematográfica. Na sua origem, o cinema flerta com o teatro, flerte que se revela até na nomenclatura, haja vista que,  na Inglaterra, o cinema chegou a ser conhecido como Teatrógrafo, e não somente com o teatro de atores vivos, mas com o proveniente do universo da animação. Vejamos os dois exemplos a seguir.

William Haggar, administrador de  teatro, foi o primeiro homem a exibir filmes no sul de Gales. Utilizava atores de carne e osso, bem  como marionetes, as quais achava ideais, por nunca ficarem bêbadas. Realizava também projeção de slides, acompanhadas de música e de um narrador. Méliès tinha um passado teatral como Haggar, e já antes de ingressar no  cinema  havia montado uma série de espetáculos nos quais trabalhava com a imagem. Seu personagem preferido era o diabo travesso.  No período 1896-1912, produziu mais de quinhentos filmes, em que experimentou uma série de trucagens: máscara,  sobreimpressão, retrocesso do movimento, mudança de velocidade, fusão,  dupla exposição e exposição múltipla. Nesta última,  um único personagem desdobra-se em vários outros. Quanto à estrutura textual, o autor vale-se do recurso associativo das imagens, muitas vezes apoiado pelo expediente do  sono. Utiliza também a escala dimensional em filmes como A Dançarina Microscópica e Anão e Gigante.  Neste último, os dois personagens são interpretados pelo diretor. Em 1912, fecha o estúdio em Montreuil  e volta a produzir espetáculos teatrais no Théâtre Varieté Artistique.

Eisenstein,[1] na sua análise sobre montagem,  mostra que a junção de dois planos – na época o filme era mudo – dá sentido ao filme. Para ele, os filmes não devem contar apenas com lógica e coerência, mas também com o máximo de capacidade patética de emoção. Jung observa que quando existe apenas a imagem, ela eqüivale a uma descrição de pouca conseqüência, mas, quando carregada de emoção, ganha numinosidade (ou energia psíquica) e torna-se dinâmica, acarretando conseqüências várias.[2] O perigo que incorre o teatro de animação é a ilustração, uma vez que muitos espetáculos negligenciam a ação teatral e apenas ilustram fatos por meio de imagens, ficando destituídos de emoção. Outros confundem a virtuose técnica com ação, distanciando-se, portanto,  da essência teatral.  A técnica não está a favor dela mesma, porém sintonizada com a ação teatral.  Einsenstein observa que: Duas pontas quaisquer unidas combinam-se infalivelmente numa representação nova, surgida dessa justaposição como uma nova qualidade.[3]  Como bem observou o cineasta, essa particularidade não pertence exclusivamente ao cinema, pois,  se colocarmos essa questão em termos de Teatro de Animação observa-se que a junção de duas formas animadas também pode gerar conflito, fazendo surgir dessa relação uma nova qualidade. Não somente a cena, mas a própria estrutura pode ser pensada de acordo com esse postulado.

 

O teatro de animação aproxima-se do cinema na medida em que, enquanto conceito,  apóia-se também na imagem. Apoiar-se nesta última não implica elaborar um espetáculo puramente visual, com  uma sucessão de truques, nem tampouco  tendê-lo  a fazer-se cinema, efetuando uma cópia.  Embora comunguem de um mesmo conceito ambos têm  especificidades próprias. Assim, quando o autor de À Deriva - texto encenado pelo grupo Usina Contemporânea de Teatro, do Pará -  observa que o Bufo transforma duendes em movimento, isso equivale  a dizer imagens em movimento.  O roteirista Syd Field, ao afirmar que o roteiro é uma história contada em imagens,[4]  fornece uma chave para compreender a escritura do teatro de animação. Ademais, os textos partilham  de procedimentos também utilizados no cinema. Em À Deriva, peça inspirada em A Tempestade, de Shakesperare, a cena em que Antônio usurpa o ducado de Milão é narrada  no original shakesperiano e dela podem advir imagens sonoras. Contudo,  em À Deriva, o relato foi transposto para a imagem, o que ressalta a ênfase no signo visual concernente à animação. O autor opta por transformar em imagens o que no original constitui-se relato.

A estrutura de O Menor Espetáculo da Terra, espetáculo montado pelo grupo Cem Modos, do Rio Grande do Sul,  apóia-se em múltiplos recursos cinematográficos. Vejamos, por exemplo, a seqüência entabulada pelos dois sentinelas. O primeiro, ao surgir em cena, parece estar no encalço de alguém. Inicialmente encontra-se no perímetro urbano da cidadela, por entre o casario, com uma estatura condizente com a dimensão das torres do castelo. A seguir, em tamanho maior,  aparece próximo às muralhas que defendem a pequena comunidade medieval. Finalizando o percurso, eis que surge ampliado,  de corpo inteiro, do lado de fora, circundando o muro.  Este recurso assemelha-se aos planos cinematográficos. Na primeira cena, por estar no meio do casario, é visto em tamanho menor,  confundido  com o amontoado de torres e remetendo a cena a um plano de conjunto, em que o tempo de exposição é suficientemente longo para a identificação dos elementos da cena.  Na segunda vez,  tem estatura maior e está mais próximo da platéia. O cenário torna-se então fundo, e o personagem sobrepõe-se, mas o cenário ainda é legível ao fundo.  É como se a cena passasse de um plano conjunto a um outro médio. Este mesmo guardião surge no palco como ator-boneco, alçando-se ao primeiro plano. Toda a seqüência é ajudada, pela  iluminação, que compõe a profundidade de campo. 

 

Através do procedimento da escala dimensional, o mesmo personagem é apresentado em três tamanhos e técnicas diferentes. Na primeira cena a movimentação é feita com vara; em seguida, marote e, na terceira, o ator veste um boneco. Trata-se de uma cena de perseguição que envolve a continuidade direcional dinâmica. Na movimentação do boneco,  há harmonia entre as diversas etapas que a compõem, com respeito a entradas e saídas do quadro,  o que implica um movimento sempre para a frente. Se sai pela esquerda, sua próxima entrada é à direita. Dando continuidade à seqüência, o ator-boneco observa uma corda, na qual incide um  foco de luz a pino, configurando o campanário de uma igreja, e lança-se sobre ela, passando a tocar o sino.  A luz fecha-se somente na torre, com o personagem caracterizado por um figurino medieval e com uma protuberância nas costas, sugerindo a imagem do corcunda de Notre Dame. O toque do  sino anuncia a aurora, passando de uma atmosfera azulada a outra branca, indicando o novo dia. A cena abre-se como um plano geral, seguido de um médio, mostrando uma galeria de personagens que realizam ações embalados por uma trilha sonora. Do exposto, percebe-se que o processo de transição das cenas propõe uma continuidade.

 

Verifica-se ainda, em determinadas cenas, a inspiração no desenho animado. Da mesma forma que na seqüência do casal de ratos no guarda-roupas, em Giz (Grupo Giramundo-MG) e na cena Iabadabadu, de Uma História do Mundo, da Companhia Truks, de São Paulo.  Enquanto este último faz  uma referência aos Flintstones, o primeiro, através de uma movimentação ágil, traz à cena a atmosfera dos filmes clássicos hollywoodianos, das décadas de quarenta e cinqüenta do século passado.

Ainda em Giz, com o personagem de O Figurão, Álvaro Apocalypse vale-se de uma lente de aumento, como um close-up. A cena é centrada no discurso demagogo de um político, no qual, somente o rosto é realçado. Assim, o personagem é elaborado como uma enorme cabeça. Utilizando-se da parte pelo todo, o autor explora a função metaligüística do boneco constituindo-se numa metonímia visual. Assim, tanto teatro de animação, como o cinema de animação, configuram o impossível-plausível, como dissera Walt Disney referindo a este último.

A técnica do teatro negro aparenta-se ao chroma-key ou blue-screen (tela azul). Estas duas últimas permitem a sobreposição de imagens e trabalham com fundo azul. A preferência por essa cor deve-se ao fato de que na pele humana e na cor das folhagens há menos componentes dessa cor.  No teatro, a técnica pode ser elaborada com luz negra ou cortina de luz. O manipulador, completamente vestido de negro, confunde-se com o fundo da mesma cor,  dando realce somente ao objeto na cortina de luz ou pela reação do cromatismo deste e a luz negra.

 

A dissociação entre fala e imagem ocorre não somente no cinema como também no teatro. Porém, o primeiro tem recursos que possibilitam a disjunção ver/falar de forma específica. Tanto em um como em outro, pode-se ter uma voz que relata algo ao mesmo tempo que a cena nos mostra outra situação. Contudo, como observa Deleuze, no cinema:

 

...Aquilo de que nos falam está sob aquilo que nos fazem ver. Logo se vê que o teatro não teria acesso a tal expediente. O teatro poderia adotar as duas primeiras proposições: nos falam de alguma coisa e nos fazem ver outra. Mas que aquilo de que nos falam põe-se ao mesmo tempo sob aquilo que nos fazem ver – e isso é imprescindível, senão as duas primeiras operações não teriam nenhum sentido ou interesse.[5]

 

Embora comunguem um mesmo procedimento, teatro e cinema o fazem de forma específica. Os autores do teatro de  animação, porém,  ainda não utilizam de forma eficaz a dissociação entre o visual e o sonoro no que diz respeito à narrativa. O recurso da narração tem seu desenvolvimento maior na disjunção ator e personagem, no processo de manipulação. Em muitos casos, os autores limitam-se a descrever a imagem. Se na cena da morte de Miséria, em O Ferreiro e o Diabo, autoria de Tiaraju Carlos Gomes e R. Lélis,  a narração da morte não chega a ser descritiva,  ela não avança na dissociação. O narrador não propõe imagens sonoras distantes da cena que presenciamos, tal como sucede também em À Deriva e Nau, um Poema Cênico, de Renato Perré.

Finalizando, é interessante observar o que nos diz Dario Fo sobre o trabalho do ator. Ele principia por dizer que o ator tem uma filmadora na cabeça, e acrescenta:

 

É uma maneira pela qual o espectador é condicionado pelo ator a privilegiar uma particularidade ou a totalidade da ação, por intermédio de uma  série de objetivas alojadas inconscientemente no seu cérebro. Ao executar a fome do zanni criei um amplo espaço em torno de mim, consentindo ao espectador uma visão completa do meu corpo – porém, em um certo momento, o meu corpo deveria ser esquecido, uma vez que enrijecia propositadamente a parte inferior (portanto, retirando o interesse por ela), Desse modo, induzia o público a usar um primeiro plano fechado, focalizando somente o meu rosto[6]

 

No teatro de animação, essa característica se dá duplamente: no ator-animador e no objeto, dado que o personagem se desloca do seu corpo. Ao ator cabe o mister de  configurar o impossível-plausível mediante a animação, conferindo-lhe o  ser (vida) e a ficção(personagem). O ator-animador é atuador-atuante, um narrador, um demonstrador, um rapsodo, enfim, uma câmera pela qual são filtradas as imagens.

 

 


FELISBERTO SABINO DA COSTA é professor da ECA-USP.

 

 

 

© 2003 – SOMBRAS ELÉTRICAS



[1] EISENSTEIN, Reflexões de um Cineasta, p. 73.

 
 

[2]  JUNG, Chegando ao Inconsciente. In O Homem e seus Símbolos, p.96.

 
 

[3] EISENSTEIN, op. cit., p. 72.

 
 

[4] FIELD, Manual do Roteiro, p. 80.

 
 

[5]  DELEUZE, O ato da criação. In: Folha de s. Paulo 27 jun 1999,  p. 5.5.

 
 

[6] Dario Fo,  Manual Mínimo do Ator, p. 78.