SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 9 - Maio de 2012

VER COM OLHOS LIVRES

CINEMA BRASILEIRO: O BAKUNIN DIGITAL DE SILVIO TENDLER

Éder Rodrigues

Milton Santos (1926-2001), entrevistado e inspirador de Encontro com Milton Santos: O Mundo Global Visto do Lado de Cá (2006), de Silvio Tendlar.

 

O filme documentário Encontro com Milton Santos: O Mundo Global Visto do Lado de Cá, produzido em 2006 e dirigido pelo cineasta brasileiro Silvio Tendler, dedica vários minutos a um capítulo no qual ele denominou de ‘Bakunin Digital’. Recebe este nome como referência irônica ao principal propagador do anarquismo do século XIX, o teórico político russo Mikhail Bakunin. Atual e provocador, este trecho aborda uma vertente da filmografia digital contemporânea que faz contraponto ao controle cultural e antidemocrático de alguns meios de comunicação de massa no mundo e, sobretudo, na América Latina.

O fio condutor do documentário são depoimentos feitos pelo professor baiano Milton Santos (1926-2001) cinco meses antes de falecer. Além disso, o autor utiliza outros pronunciamentos feitos em eventos científicos. Milton Santos estudou no Brasil e na França e é autor de 40 livros. Colecionou 20 títulos honoris causa e neste filme faz reflexões sobre a economia mundial, a cultura latino americana, vislumbrando uma utopia para o terceiro mundo no século XXI.

A construção didática do documentário mostra a crítica do professor Milton feita à globalização ou ao ‘globalitarismo’, neologismo criado por ele. A obra se torna provocadora porque o diretor optou em fazer uma entrevista no estilo ‘neoconfissão’, termo que significa, segundo Edgar Morin, o momento em que o entrevistador se apaga diante do entrevistado e faz um mergulho interior, buscando profundidade no diálogo e deixando pra trás as relações superficiais e pobres da vida cotidiana. É neste contexto que, influenciado pela proposta do Cinema Novo, da década de 60, o diretor procura exibir várias tomadas cinematográficas feitas por realizadores do circuito não comercial de países da América Latina.

O filme reuniu depoimentos de militantes políticos e culturais do Brasil e de países vizinhos que, como uma câmera na mão, registram as indignações, protestos e manifestações populares pelas ruas de várias cidades. Contém entrevistas com pessoas que atuam no cinema produzido em aldeias, favelas e lugares afastados dos centros urbanos no Brasil. Tendler apresenta uma obra visual central que pode ser utilizada na discussão dos caminhos da globalização do ponto de vista acadêmico, mas também do cinema brasileiro, porque traz, além das ricas palavras de Milton Santos, experiências de pessoas que, em outro momento recente da história, teriam dificuldades em adquirir equipamentos de gravação e de edição.

Com a recente revolução digital, ter um equipamento de produção e pós-produção está mais fácil e mais barato. O celular e a máquina fotográfica digital vêm preenchendo, seguramente, a falta de uma câmera filmadora convencional. Realizadores contam histórias, participam de festivais, ganham prêmios e distribuem seus filmes nas faculdades, pela internet e em canais de TV. Em outras palavras: o produto tem visibilidade e o registro pode acontecer a qualquer hora e lugar. Se somarmos este fato a uma postura política e ideológica de contestação por parte do realizador, o sonho do Cinema Novo estará materializado nos dias de hoje. Mas encontrar um conteúdo a esta altura é como procurar uma agulha no palheiro.

Para o cineasta baiano Glauber Rocha que, além da fecunda produção cinematográfica, também publicou o livro Revolução do Cinema Novo, “onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura, aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo”. Glauber defendia que não será um filme, mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência, mas para isso é preciso vencer a lógica da mentira e da exploração, resultados da histórica enxurrada de filmes do cinema industrial que, desde muito tempo, impede qualquer integração econômica e industrial dos cinemas independentes.

Tanto o premiado ‘Encontro com Milton Santos’, de Silvio Tendler, quanto seus outros filmes de conotação histórica e política, como Marighella (2001), Utopia e Barbárie (2009); a trilogia ‘Anos JK’ (1980), ‘Jango’ (1984) e ‘Tancredo’ (2010), entre outros, chegam como uma resposta ao clamor daqueles que não suportam mais uma televisão sem conteúdo crítico e os exagerados efeitos modernos e ilusórios do cinema de entretenimento vazio. A obra documental de Tendler é uma opção rara de entretenimento, cultura e história do Brasil. Um festival de imagens, sons e energia.

 

 

ÉDER RODRIGUES É Jornalista, especialista em MKT, estudante de Ciências Sociais da UFRR e de Cinema e Linguagem Audiovisual.

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