SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 8 – Abril de 2012

VER COM OLHOS LIVRES

O DIA EM QUE JOGARAM A CHUPETA FORA (Sobre Strovengah, de André Sampaio)

Antonio Paiva Filho

Pedro (Otoniel Serra) e seus imaginários (ou reais?) convidados, em Strovengah, de André Sampaio.

 

Disse Oswald de Andrade certa vez: O índio não conhece o verbo “ter”. Daí, a dificuldade de transformá-lo num animal moralizado. O máximo que se consegue é um cristão de chupeta.[1]

 

Nos anos 1990, uma nova geração de estudantes de cinema da UFF metia a mão na massa – como, aliás, todas as anteriores. A diferença é que ela prestava tributo, em suas principais fontes de inspiração, no Cinema Marginal de Júlio Bressane, Rogério Sganzerla e Cia. Ltda.[2] Certo, às vezes inspirar-se numa estética cinematográfica não implica em ser original – pelo menos, quando pegam tal estética tal qual uma nova receita de bolo. O máximo que estes imitadores conseguem é ser udigrúdis[3] de chupeta. No entanto, há quem herde o inconformismo do Cinema Marginal ou udigrúdi, tornando-o um ponto de partida para a sua própria visão do mundo em sua volta através da câmera. É o caso de André Sampaio.
Ao longo se sua obra cinematográfica, André Sampaio demonstra um inconformismo e uma recusa às formulas prontas do cinema e aos abedismos politiqueiros esclerosados (“Ainda ganharemos um cargo de contínuo no Ministério da Cultura de Ana de Amsterdam! Ainda ganharemos!”[4]).
(Eu disse “obra cinematográfica”? Xiii... sei não. Talvez chamar a filmografia de “obra” seja assaz ofensivo para alguém que já chamou o Oscar de “bonequinho viado”: Chamemos pela luz às trevas do deslumbramento novo-rico que substitui os bares por bombonières, as salas de exibição pelas igrejas evangélicas, o talento pelo culto à MEDIOCRIDADE na valorização da subserviencia e do conformismo aos desmandos dos lacaios donatários de nossas capitanias cinematográficas que, com seus Rebooks e bonezinhos, pitbulls de Hollywood, alisam a bunda de uma réplica qualquer de uma estatueta do Oscar enquanto sonham com a real, falando em indústria no ENGENHO DE CINEMA, sentados na varanda da casa grande do Brasil, pensando assim: ainda ganharemos um bonequinho viado igual a este aqui. Ainda ganharemos.[5]... Desconfio que vou levar esporro dele por isso.)
Esta recusa se estende, por enquanto, ao modo de produção de seus filmes: 100% independente, quase sempre de seu próprio bolso, sem leis de incentivo ou editais – como aqui em Strovengah.[6] Este é o único modo de demonstrar sua visão iconoclasta e irreverente do mundo – visão que era sintetizada, ao meu ver, em Polêmica (1998), releitura irreverente (pero sin perder la ternura jamás) da célebre polêmica musical Noel Rosa X Wilson Batista.
Esta iconoclastia e irreverência volta com força total em Strovengah, a partir de argumento original de Luiz Paulino dos Santos que mofava numa gaveta.[7] Neste filme, ninguém escapa dela: nem o casal de burgueses – Pedro, ex-publicitário aspirante a escritor (Otoniel Serra, ator de, entre outros filmes, de A lira do delírio, de Walter Lima Jr.); Marcela, aspirante a cantora (Rose Abdallah, bela e, com todo o respeito, com tudo em cima, para a alegria do grande especialista em cinema pornô Demóstenes Torres[8] e outros tarados de plantão...) – nem as seitas evangélicas, através de um estranho e histérico pastor (Nello Marresi) e de seus fiéis – um velho cego (José Marinho) seu filho autista (Nelito Reis) e o casal de caseiros dos ilustres burgueses. O clima de mistério – reforçado pelos “personagens” do livro de Pedro (bonecos que o ajudariam a criar seu romance) –, paradoxalmente, reforça a iconoclastia e irreverência do filme.
Ah, e a chupeta udigrúdi? Esqueçam ela: foi jogada fora há muito tempo. Strovengah é a prova disto.

 

Agora, fica uma ligeira (e idiota) pergunta minha: quando é que poderemos ver Strovengah fora de festivais, como o de Tiradentes e a Mostra do filme Livre? Nenhum cinema se habilita?
E a TV Brasil, será que não gostaria de exibi-lo, para nos poupar das mil e uma reprises de sua programação de filmes brasileiros? Ou o título lhes mete medo?

 

Ah, antes que eu me esqueça: Aruê Exu.

 

ANTONIO PAIVA FILHO é editor de SOMBRAS ELÉTRICAS.


STROVENGAH (2011 – 88 min.)
Direção, roteiro (a partir de argumento de Luiz Paulino dos Santos) e produção executiva: Andre Sampaio
Produtores associados: Cavi Borges, Denise Miller, Jal Guerreiro
Fotografia e câmera: Fabrício Tadeu
Arte: Gabriela Gusmão
Som: Luis Eduardo Carmo
Edição: Severino Dadá
Trilha Musical: Jards Macalé
Figurino: Paula Scamparini
Elenco: Otoniel Serra, Rose Abdallah, Nello Marresi, José Marinho, Nelito Reis


FILMOGRAFIA DE ANDRÉ SAMPAIO

O Palhaço Xupeta (1996), co-direção Carlos Sanches;
Polêmica (1998)
Rua Netuno Morada do Sol (2005)
Vida Fuleira (2007)
Conceição - Autor Bom é Autor Morto (2007) (direção coletiva: ele é um dos diretores)
Estafeta – Luiz Paulino dos Santos (2008)
Tira os Óculos e Recolhe o Homem (2008)
Strovengah (2011)

 

[1] Não tive tempo hábil para procurar onde Oswald de Andrade escreveu isso. (Se alguém souber, pode mandar para este ingrinorante escriba.) Estou citando, de memória, do filme O homem do Pau-Brasil (1981) – a vida e obra de Oswald sobre o olhar de Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988).

 

[2] Sobre Rogério Sganzerla (1946-2004), aliás, recomendo novo filme de Joel Pizzini sobre ele: Mr. Sganzerla: os Signos da Luz (2011).

 

[3] Udigrúdi (corruptela de underground) foi termo criado por Glauber Rocha para responder às críticas ásperas de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla ao Cinema Novo e aos cinemanovistas, em entrevista ao O Pasquim nº 33, 5-11 de fevereiro de 1970 (disponível em https://www.contracampo.com.br/27/frames.htm)

 

[4] Não entendeu nádegas do que eu disse? Ver Noite, névoa, trovoadas e outras manifestações meteoro-bestialógicas, nesta edição nº 8 de SOMBRAS ELÉTRICAS.

 

[5] Ver SAMPAIO, André. “Cinema etílico”. In Glauberianas nº 1. Niterói, Núcleo dos Estudantes de Cinema (NECINE) e Departamento de Cinema e Vídeo da UFF, 1996, págs. 24-25. O grifo é meu.

 

[6] Honrosa exceção: o documentário Aldir Blanc: dois pra lá, dois pra cá, de 2004, dirigido em parceria com Alexandre Ribeiro de Carvalho e José Roberto de Morais para o DOC TV I.

 

[7] Não por acaso: Luiz Paulino dos Santos – cineasta baiano, mais conhecido como o diretor que começou a dirigir Barravento até ser deposto do cargo por Glauber Rocha, que o concluiu, mas que na verdade tem mais serviços prestados ao cinema brasileiro do que isso (ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Luiz_Paulino_dos_Santos) foi homenageado em um curta seu, Estafeta (2008). Aliás, sobre este filme, ver https://www.contracampo.com.br/91/pgcineop03.htm.

 

[8] Sobre esta notória especialização do senador pelo DEMO de Goiás, ver (de novo) Noite, névoa, trovoadas e outras manifestações meteoro-bestialógicas, no arquivo de SOMBRAS ELÉTRICAS.