SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 1 - Dezembro de 2003

LONG-SHOT - ABRAM ALAS PARA O CINEMA!

MÁRIO DE ANDRADE FALA SOBRE CINEMA EM KLAXON

 

 

Capa do número um de Klaxon (1923); ao lado, Charlie Chaplin e Jackie Coogan em O garoto (1921)

 

 

É conhecida a importância do Cinema para os modernistas em suas idéias ou no uso que fizeram da sintaxe cinematográfica para inovar a maneira de escrever.[i][[1][1]1]

 

Não sem motivos. Para os modernistas de 1922, o Cinema era a arte do século XX — “a criação artística mais representativa de nossa época”.

 

E não por acaso, o Cinema ganharia um certo destaque na primeira revista do movimento modernista no Brasil

 

Klaxon começa a circular a partir de 15 de maio de 1922, logo após a Semana de Arte Moderna, durando até meados de 1923. O nome da revista já era, para os modernistas da época, o supra-sumo do moderno: klaxon era uma buzina de automóvel, colocada na parte externa. Editada principalmente por Sérgio Milliet, Guilherme de Almeida, Oswald e Mário de Andrade, foi o primeiro porta-voz do Modernismo. Pelo menos, até que estes se dividissem em correntes mais “calmas” — leia-se conservadoras ( Grupo Verdamarelo, Grupo da Anta) — e mais “raivosas” ou revolucionárias (Pau- Brasil, Antropofagia). Se qual dos grupos estava certo em seu pensamento em torno do Brasil e sua cultura, 78 anos depois, esta é uma cumbuca onde SOMBRAS ELÉTRICAS não mete a mão — pelo menos, por enquanto.

 

O importante é que, enquanto existiu, — e entre artigos irreverentes, contos e “uma poesia aérea e desarticulada”, no dizer de Graça Aranha — Klaxon também falava de Cinema.

 

A revista manteve uma seção de crítica de Cinema, “a criação artística mais representativa de nossa época”, discutindo filmes exibidos na cidade naquele ano de 1922. Poucos, e escolhidos, como os de [Erich von] Stroheim e [Charles] Chaplin (...).[ii][[1][iii]2]

 

Vários modernistas se revezavam na função de... o termo pode não ser muito preciso, mas vá lá... críticos de cinema da Klaxon. Entre eles, um que era 300, 350 — o poeta, romancista, ensaísta e pesquisador incansável da cultura brasileira Mário de Andrade (1894-1945).

 

SOMBRAS ELÉTRICAS apresenta aqui dois exemplos de Klaxon falando de Cinema. Ou de um Mário de Andrade apaixonado pela tal de Sétima Arte.

 

 

O primeiro artigo, (edição de junho de 1922) curto, trata de um filme brasileiro, Do Rio a São Paulo para Casar, produção da da Rossi Film, direção de José Medina, com roteiro de Canuto Mendes de Almeida. O texto é assinado por um certo “R. de M.”— daí, um estudante de Letras meio distraído pode pensar que o autor pode ser Rubens Borba de Morais, outro companheiro do movimento modernista. Mas nós achamos que é de Mário — principalmente se nos lembrarmos de que seu nome completo é Mário Raul de Moraes Andrade, e se prestarmos atenção ao fato de que o criador de Macunaíma (que por sinal, viraria um ótimo filme nas mãos de Joaquim Pedro de Andrade) era o único cinéfilo modernista que se interessava pelo pobre Cinema paulistano dos anos 20 [iv][[1]3] de acordo com que se ouviu de uma testemunha ocular da História: “A propósito, Rubens Borba de Morais companheiro de Mário na revista, lembra que ele assistia com o maior interesse aos filmes nacionais. Motivo pelo qual, aliás, era alvo de grandes caçoadas dos amigos, que não entendiam que interesse se poderia encontrar nos “simplesmente abomináveis” filmes nacionais.”[v][4]

 

            O filme não existe mais (como aliás grande parte da produção muda brasileira), logo o preclaro leitor não poderá saber quem estava certo: os que caçoavam de Mário por assistir esses “simplesmente abomináveis” filmes posados nacionais; ou Mário, que seguia com entusiasmo “os progressos da cinematographia paulista”. A análise é justa e imparcial: aponta falhas no filme, algumas até cômicas, mas reconhece sensatamente a existência de  dificuldades técnicas e materiais com que o Cinema paulistano mudo da época lidava: O apuro seria preconceito esterilizante no início de empreitada tão difficil como a que a Rossi Film se propõe. Uma coisa é interessante: quando afirma que os “costumes actuaes do nosso paiz conservar-se-hiam assim em documentos mais verdadeiros e completos” , Mário antecipa a valorização da imagem como documento importante para o estudo histórico — tese absurda para a época, mas que hoje é fundamental.

 

O segundo artigo, (edição de setembro de 1922) um pouco mais extenso sobre O Garoto (The Kid), o clássico de Charles Chaplin. Aqui, Mário refuta a críticas desabonadoras de uma poetisa, uma tal de Celina Arnauld, justamente sobre uma das seqüências mais belas e líricas do filme, o sonho de Carlitos, na vila pobre, depois que levam seu filho adotivo o garoto do título).

 

Aqui, sem perder a coerência de sua argumentação — e descontando-se a irreverência típica da primeira geração modernista — Mário mostra uma coisa em comum com vários de seus confrades modernistas: uma paixão incondicional pelo Cinema lírico-humorístico de Chaplin.

 

Infelizmente, a edição original de onde este artigo foi transcrito tem uma parte danificada, indicada por (...).

 

 

Os dois textos foram transcritos de edições microfilmadas guardadas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. A ortografia original foi mantida. Logo não estranhe os PHs, FFs etc. Nenhum dos textos tem um título específico. Acima deles, só o título da coluna: CINEMA.

 

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A empresa Rossi apresenta uma tentativa de comedia. Applausos. Transplantar a arte norte-americana para o Brasil! Grande beneficio. Os costumes actuaes do nosso paiz conservar-se-hiam assim em documentos mais verdadeiros e completos do que todas as “coisas-da-cidade” dos chronistas.

 

Photographia nitida, bem focalizada. Aquellas scenas noturnas foram tiradas ao meio-dia, com sol brasileiro... Filmadas à tardinha, o rosado não sendo photogenico, a producção sahiria sufficientemente escura. Isso emquanto a empresa não conseguir filmar á noite.

 

O enredo não é máu. Fôra preciso extirpal-o de umas tantas incoherencias.

 

A montagem não é má. Fôra preciso extirpal-a de umas tantas incoherencias.

 

O galã, filho de uma senhora aparentemente abastada, por certo teria o dinheiro necessário para vir de Campinas a S. Paulo. A sala e o quarto de dormir da casa campineira brigam juntos. Aquella burguesa, este pauperrimo. Accender phosphoros no sapato não é brasileiro. Apresentar-se um rapaz á noiva, na primeira vez que a vê, em mangas de camisa, é imitação de habitos esportivos que não são nossos. E outras coisinhas.

 

É preciso comprehender os norte-americanos e não macaqueal-os. Aproveitar delles o que tem de bom sob o ponto de vista technico e não sob o ponto de vista dos costumes. Artistas regulares. Porque não usam pó de arroz azul? De quando em quando um gesto penosamente ridículo... Num film o que se pede é vida. É preciso continuar. O apuro seria preconceito esterilizante no início de empreitada tão difficil como a que a Rossi Film se propõe.

 

Applauso muito sincero. Seguiremos com enthusiasmo os progressos da cinematographia paulista.

 

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O garoto por Charlie Chaplin é bem uma das obras primas mais completas da modernidade para que sobre elle insista mais uma vez a irriquieta petulância de Klaxon. Celina Arnauld, pelo último número fóra de série da revista Action, commentando o film com bastante clarividência. Denuncia-lhe dois senões: o sonho (...) e a anedocta da mulher abandonada que por sua vez abandona o filho. Talvez haja alguma razão no segundo defeito apontado. Effectivamente o caso cheira um pouco a sub-literatura. O que nos indignou foi a poetisa de "Point de Mire" criticar o sonho de Carlito. Eis como o percebe: "Mas Carlito poeta sonha mal. O sonho objectivado no film choca como alguns versos de Casimiro Delavigne intercaladas ás Illuminations de Rimbaud. Em vez de anjos alados e barrocos, deveria simplesmente mostrar-nos 'pierrots' enfarinhados ou ainda outra cousa e seu film conservar-se-ia puro. Mas quantos poemas ruins tem os maiores poetas."

Felizmente não se trata d'um máu poema. O sonho é justo uma das páginas mais formidáveis de O Garoto. Vejamos: Carlito é o maltrapilho e o ridículo. Mas tem pretenções ao amor e á elegancia. Tem uma instrução (seria melhor dizer conhecimentos) superficial ou o que é peior desordenada feita de retalhos colhidos aqui e além nas correrias de aventura.

 

É profundamente egoísta como geralmente o são os pobre, mas pelo convivio diurna na desgraça chega a amar o garoto como a filho. Além disso já demonstrara sufficientemente no correr da vida uma religiosidade inculta e ingênua. Num dado momento conseguem emfim roubar-lhe o menino. E a noite adormecida é perturbada pelo desespero de Carlito que procura o engeitado. Chupado pela dor, Carlito vae sentar-se á porta da antiga moradia. Cae nesse estado de sonolência que não é o somno ainda. Então sonha. Que sonharia? O lugar que mais perlustrara na vida, mais enfeitado, ingenuamente enfeitado com flores de papel, que parecem tão lindas aos pobres. E os anjos apparecem. A pobreza inventiva de Carlito empresta-lhes as caras, os corpos conhecidos de amigos, inimigos, policiais e até cães. E os incidentes passados misturam-se ás felicidades presentes. Tem o filho ao lado. Mas a briga com o boxista se repete e os policiais perseguem-no. Carlito foge num vôo. Mas (e estaes lembrado do sonho de Descartes) agita-se, perde o equilíbrio, cahe na calçada. E o sonho repete o acidente: o policial atira e Carlito alado tomba. O garoto saccode-o, chamando. É que na realidade um policial chegou. Encontra o vagabundo adormecido e saccode-o para accorda-lo. Este é o sonho que Celine Arnauld considera um mau poema. Como não conseguiu ella penetrar a admirável perfeição psychologica que Carlito realizou! Ser-lhe-ia possível com a mentalidade e os sentimentos que possuia, no estado psychico em que estava, sonhar "pierrots" enfarinhados ou minuetes de aeroplanos! Estes aeroplanos imaginados pela adorável dadaísta é que viriam forçar a intenção da modernidade em detrimento da observação da realidade. Carlito sonhou o que teria que sonhar fatalmente, necessariamente: uma felicidade angelical perturbada por um subconsciente sabio em coisas de sofrer ou de ridículo. O sonho é o commentario mais perfeito que Carlito poderia construir de sua pessoa cinematographica: não choca. Commove immensamente, sorridentemente. E, considerado a parte, é um dos passoa mais humanos de sua obra, é por certo o mais perfeito como psychologia e originalidade.

 

Mario de Andrade

 

 

 


 

© 1922 – Mário de Andrade

© 2000 (artigo sobre O Garoto – Revista Contracampo

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Permitida a reprodução, desde que citada a fonte.



[i][1] MACHADO, Rubens – "O Cinema paulistano e os ciclos regionais sul-sudeste" – in História do Cinema Brasileiro – São Paulo, Art Editora, 1987 – pág. 106.

 

 
 

[ii][2] Idem.

 

 

[iv][3] Sobre esse assunto, recomendamos o excelente estudo de Maria Rita Galvão, Crônica do Cinema Paulistano (São Paulo, Ática, 1978)

 

[4] MACHADO, Rubens, Op. cit.