SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 3 – Abril de 2004

LONG-SHOT - HUMBERTO MAURO (ou: O DIA EM QUE DERAM MESCALINA A UMA MÁQUINA DE FILMAR)

FIGURAS E GESTOS

Humberto Mauro

 

A brancaleônica equipe do INCE: da esquerda para a direita, Zequinha Mauro, Bandeira Duarte, Humberto Mauro e Beatriz Bojunga. Arquivo CTAV-Funarte
 

Agora que você viu nove textos falando de Humberto Mauro, que tal vermos o que o próprio Mauro tem a dizer?
Entre 1943 e 1944, Humberto Mauro apresentou uma série de palestras radiofônicas sobre cinema na PRA-2, Rádio Ministério da Educação (a antiga Rádio Sociedade, fundada por Roquette-Pinto e já incorporada ao Ministério da Educação desde 1936). No total, foram cinqüenta palestras. Enquanto não sai a edição crítica destas palestras, que a pesquisadora da UNICAMP Ana Carolina Maciel está organizando, SOMBRAS ELÉTRICAS apresenta algumas delas, extraídas da antologia organizada por Alex Viany: Humberto Mauro: sua vida, sua arte, sua trajetória no cinema (Rio de Janeiro, Artenova/Embrafilme, 1978). Muitas delas espelham a experiência de Mauro em (até aquela época) dezoito anos de trabalho no cinema. Algumas de suas afirmações parecem ser atuais.


QUESTÕES DE LUXO E MERCADO (30 de agosto de 1943)
 
O cinema brasileiro para vencer não precisa caminhar pari-passu com o cinema estrangeiro, que isso seria uma tentativa vã. Necessita de propriedade, isto sim.
O luxo nababesco das películas estrangeiras, o exagero das montagens, o excessivo conforto material que de tanto requinte até já nos parece prejudicial aos dramas e comédias que ornam; nada disso é indispensável que o cinema brasileiro alcance desde já. Nada disso é indispensável para que o cinema brasileiro possa vencer. Sob qual argumento? O de estarmos habituados a ver?... Ora...
O indispensável, o essencial, é que o nosso filme transporte para a tela o nosso ambiente.
Eu estou convencido, e nunca pensei de outra maneira, de que a obra do cinema brasileiro, além de ser de interesse vital para o Brasil, é uma obra de criação. De interesse vital porque só através do cinema poderemos intensificar a nossa propaganda externa e a interna, sempre necessária para nos fazermos conhecidos de nós mesmos, com a revelação dos nossos costumes, das nossas riquezas, das nossas necessidades e possibilidades econômicas, que são tão variadas e diferentes nas diversas zonas do nosso imenso país.
O Brasil ainda se desconhece e só o cinema poderá fazê-lo conhecer-se.
Portanto, nada de tentativa para imitar o cinema americano, russo ou francês. Cada qual tem o seu modo de fazer cinema e sua orientação comercial.
O documentário, de custo mais baixo, com a vantagem de poder se espalhar pelo mundo todo, é, também para o mercado interior, o melhor caminho a seguir.
Chegar, no entanto, a uma perfeição técnico-artística e fazer indústria regular de filmes de enredo, no momento, acho muito difícil. Primeiro, porque a realização de um filme posado é cara e complicada, exigindo para a sua perfeição os mais elevados recursos técnicos. Segundo, o nosso filme posado, quase sempre cheio de imperfeições, só pode contar com o mercado interno, pois a imperfeição técnica impede logo de início a exibição do nosso filme no estrangeiro.
O mercado brasileiro é pequeno. Possuímos uns mil e poucos cinemas. Uma linha de distribuição nacional pode abranger no máximo uns quatrocentos a quinhentos cinemas. Ora... quando acontece de o filme não agradar nas principais cidades, é um desastre. E a coisa mais fácil de acontecer é o filme não agradar.
Vamos imaginar, por exemplo, que a Metro Goldwyn Mayer tivesse realizado o filme Rosa de Esperança, como realizou, gastando o que gastou, mas para ser exibido só no Brasil e ainda, distribuído por uma distribuidora brasileira: a D.F.B., a Cooperativa ou a D.N. Positivamente os resultados não animariam o in(cio de outra produção; pois o público quer isso: que o cinema brasileiro faça Rosa de Esperança para ser exibido só no Brasil.
Além disso, ele - o público - não julga os filmes de conformidade com os gastos; compara quase sempre a produção que custou quinhentos mil com a que custou um milhão de cruzeiros; paga e quer gostar do espetáculo; não toma conhecimento dos apertos por que passou o realizador , obrigado muitas vezes a caçar com gato, devido à deficiência técnica.
Entre nós, não se pode, no filme posado, gastar película virgem à larga, para refazer as sequências imperfeitas. Por quê? Porque o filme virgem é muito caro e iria aumentar consideravelmente o custo da produção.
Penso que se poderia produzir mais e melhor, se todos os elementos necessários à produção - escritor, cenarista, atores, músicos, cenógrafos, técnicos e diretor - arriscassem com o produtor em benefício do filme virgem. Se o filme rendesse muito todos ganhariam muito, se rendesse pouco todos ganhariam pouco.(...)
 
É MELHOR ESTAR DENTRO DA FESTA (11 de outubro de 1943)
 
No Cinema sempre houve duas escolas -nesta questão de compasso. Uma, geralmente utilizada pelos grandes diretores americanos, que consiste em conservar o compasso de um filme de acordo com o bater normal do coração, que aumenta de velocidade sob a influência de emoções fortes; outra, mais empregada pelos diretores europeus, atrasa a cadência do filme até o compasso do pulso estar mais adiantado. Uma faz sentir o filme. Outra faz a pessoa ver o filme.
Sentir é melhor. E muito melhor estar dentro da festa que do lado de fora, apenas observando.
Muitas vezes, um filme tecnicamente perfeito não agrada devido ao mau emprego do compasso. A platéia não sentiu: o diretor demorou demais num close-up, esqueceu do long-shot, demorou pouco num close-in. ..enfim, controlou mal os movimentos do pulso do espectador.
No começo do Cinema, uma história era mostrada inteiramente em long-shots. Tudo de longe. O resultado era uma confusão tremenda e era absolutamente impossível a gente sentir o filme. Resultava uma obra sem alma. A utilização dos detalhes, fixados em diferentes planos, modificou tudo; felizmente...
O long-shot é um apanhado importantíssimo dentro de um filme; na minha opinião, talvez o mais importante mesmo. Com ele pode-se tirar grandes emoções. Chaplin é mestre em empregá-lo assim. Quem não se lembra: Carlitos sozinho?... caminhando longe?... uma estrada comprida?...
O long-shot é que dá a topografia do filme. E um filme sem topografia estabelece uma grande confusão. Aliás, o que é muito comum nos filmes brasileiros. Fica a gente sem saber onde está...
Mesmo nas grandes produções estrangeiras, às vezes, noto esse defeito. Por exemplo: em Casablanca - filme americano há poucos dias estreado aqui no Rio, e muito elogiado - na minha opinião faltam long-shots. Não se sente bem a Cidade.
Fato exatamente contrário sucede no filme Nosso Barco, Nossa Alma, de Noel Coward, recentemente exibido aqui. Graças ao emprego inteligente do long-shot, Noel Coward consegue fazer o espectador sentir o mar em toda a sua imensidão, o que, por sua vez, aumenta a intensidade emotiva nos interiores e close-ups. Posso assinalar mesmo, como maravilhoso efeito cênico e emotivo do long-shot, aquela cena do rapaz covarde que, depois de advertido pelo Comandante, vem andando, trôpego, pelo cais deserto. O tipo do alto, apanhando o cais, vasto e deserto, com o marinheiro cambaleando, quase como uma sombra, superaria, como superou, qualquer close-up. Outro magnffico long-shot do mesmo filme é, momentos depois do desembarque daquelas tropas evacuadas de Dunquerque, a chegada do comandante, que dá a ordem unida, e consegue, num milagre de disciplina militar, reerguer o perfil dos soldados mortos de sono e cansaço. Esse long-shot aumenta de valor pelo contraste que consegue mostrar, após aquele close-up de câmara, detalhando em movimento a fisionomia arruinada dos soldados.
King Vidor, a meu ver, é o mestre dos long-shots. Tira deles belos efeitos e grandes emoções, e ao mesmo tempo os utiliza como orientadores topográficos, de maneira magistral. Num filme de King Vidor não há confusões. Agora, só long-shot num filme, de fora a fora, é um erro.
A introdução no cinema das tomadas de vistas em vários planos -aproximações, close-ups, detalhes etc. -e ainda, dos sinais de pontuação -fade-in, fade-out, fusões -, nós devemos a um homem extraordinário: David Wark Griffith. Verdadeiramente, o primeiro gênio que apareceu no Cinema.
D. W. Griffith foi o diretor de inúmeros filmes notáveis, como: Vontade Suprema, O Nascimento de uma Nação, Intolerância e muitos outros. O L(rio Partido, que foi a sua obra-prima - o filme era verdadeiramente notável -o deixou completamente pobre. É sempre assim, as obras-primas são quase sempre um desastre na bilheteria.
Em O lírio Partido foi que eu vi pela primeira vez o fade-out. Ainda me lembro muito bem. Eram muito longos. Aliás, nunca mais os vi aplicados daquela maneira.
Outros filmes de Griffith foram, entretanto, grandes sucessos financeiros. Deram lucros fabulosos, 11ão a ele, mas à companhia produtora. Posso citar: Way Down East, The Birth of a Nation, Orphans of the Storm e outros.
E Griffith muitas vezes não tinha dinheiro para comprar cigarros...
 
A FOTOGENIA E O CINEMA-CONVERSA FIADA (22 e 29 de janeiro de 1944)
Não pode haver cinema sem fotografia. Eu me refiro a esse cinema que a gente vê, na tela, com os olhos.
Falo assim porque aqui, entre nós, há um outro cinema, formidável, talvez, mesmo, único. no mundo, que não precisa nada disso: nem fotografia, nem maquinismos, nem laboratórios, nada: é o cinema conversa-fiada. Esse cinema estranho, fantástico, se divide em dois grupos: um é o grupo dos grandes planos, entrevistas, retratos nos jornais e revistas etc. - o grupo dos promessas. O outro se coloca num plano muito mais alto: é o grupo dos cineastas notáveis. Fazem e publicam cenários, discutem sempre o grande cinema, pintam o diabo. Mas até agora não apresentaram na tela sequer um metro de filme realizado. Eu, aliás, sou fã deste segundo grupo e gostaria que ele metesse mãos à obra; por certo sairia coisa boa.
Mas. como eu ta dizendo, não pode existir cinema – na tela - sem fotografia. Se a arte - Cinema - precisa dela, a indústria ainda muito mais. Toda a indústria cinematográfica se baseia na fotografia. Daí, por certo, foi que a indústria – a indústria pesada de cinema -, necessitando produzir a granel, para poder abarrotar o mercado mundial de filmes, tratou logo de criar uma fotografia standard para os seus filmes de linha. Fotografia que de um modo geral pudesse contentar a todo o mundo. Prepararam tudo cuidadosamente, organizando, classificando e... lançaram, então, umas regras ou teorias de fotogenia que devem ser postas de lado o quanto antes. Do contrário, vamos ficar nesse ran... ran... ran... a vida toda.
Um grande número de cineastas americanos, fotógrafos, diretores, cenaristas, de quando em quando desobedecem a essas regras. E exatamente quando isso acontece que a gente vé, então, qualquer coisa de novo, de melhor.
A teoria da fotogenia se baseia, principalmente, na qualidade peculiar de certos objetos que depois de fotografados tornam-se imagens mais impressionáveis e mais eficientes. Uns devido à forma, outros devido à superf(cie, polida ou reluzente etc. Mas a teoria vai ainda mais longe: só certas e determinadas caras são fotogênicas; só certos e determinados ângulos são fotogênicos; só certas e determinadas maneiras de contar a história estão certas etc. etc.
Vê-se claramente que com essa teoria prevalecendo, o fotógrafo e o diretor do filme - o que é ainda pior - ficam presos, escravizados às regras preestabelecidas, impossibilitados, portanto, de criarem. Não há dúvida de que para quem não quer ter trabalho é muito bom.
E sempre mais cômodo fotografar pessoas ou objetos que, de acordo com o gosto e conhecimentos estéticos do público comum, já são suficientemente belos por si próprios.
Parece que a teoria da fotogenia começou a ser: introduzida no cinema quando Louis Delluc achou por bem considerar fotogênicas, apenas, certas e determinadas feições.
No cinema chamado americano, a teoria evoluiu de tal forma que hoje as regras são impostas para os menores detalhes na realização de um filme.
Começaram com os objetos, depois tudo mais foi caindo na teia cuidadosamente tecida pelos homens da indústria. Caras, pessoas, maneiras de contar a história, ângulos, modos de fotografar, efeitos de luz, tudo.
Uma das evoluções interessantes da Teoria da Fotogenia é o chamado sex-appeal. Parece que, hoje, já está fora de moda o tal sex-appeal. O diretor russo G. V. Alexandrov dizia a este respeito, com muita graça, o seguinte: " A escolha de atores para o cinema é feita, em primeiro lugar, baseada no fato do citado ator ou atriz possuir sex-appeal. O produtor contrata o ator ou atriz se na sua opinião eleou ela são capazes de exercer essa influência erótica. A ( então nada mais terá valor, enquanto se puder tirar dinheiro do appeal do citado ator."
Quando o objeto ou pessoa não têm beleza própria, então, entra a grande auxiliar da Teoria, a maquilagem. E preciso, primeiro, tornar bonito o que vai ser fotografado. O ator é minuciosamente maquilado e retocado – tornado bonito -para ser, então, fotografado pelos métodos estandardizados de iluminação, processos óticos especiais, etc. etc. Poucos atores ou atriles do cinema americano já foram apresentados na tela como são, isto é, com seus traços individuais, próprios, t(picos. Pudera. ..a maquilagem modifica tudo...
Nas atrizes, de um modo geral, começam arrancando as sobrancelhas e pintando outras. Depois o artista da maquilagem trata logo de acentuar os chamados fatores superficiais do sex-appeal, que são: os olhos, as pestanas e os lábios. Um ligeiro papinho que haja é tirado por meio de sombras feitas a pincel especial; fazem coisas do arco da velha. E tudo isso com absoluta certeza de êxito, porque eles sabem perfeitamente que o público já não reclama uma grande atriz, ele se satisfaz em ver apenas uma mulher bonita.
Todos esses cuidados na maquilagem não chegam ainda. Também a fotografia vai ajudar muito... Foram criados, para isso, métodos e regras de iluminação que devem ser usados.
Quando se vai fazer um close-up, por exemplo (e agora a descrição não é minha), o operador concentra todos os seus esforços para efeminar o mais possível a textura facial da atriz, que já está sem as suas feições características. Uma lente de vidro polido suaviza todas as desigualdades da face; um luz suave e difusa, partindo da fronte, destrói o relevo; outra luz posterior, forte, acentua somente as linhas exteriores do contorno...
Vamos ter, como resultado de tudo isto, uma figura de mulher ideal, com uma clara auréola de luz em redor da cabeça, olhos reluzentes, sombras claramente definidas partindo das grande pestanas artificiais. Resta-nos, então, uma cópia exata dessas belezas das imagens dos postais; mas que são grandemente apreciadas pelo grosso público, por força do hábito.
Pois bem, meus senhores, realizadas por esses processos - com rigorosa aplicação da Teoria da Fotogenia -, nós assistimos no ano passado a cerca de cento e cinqüenta produções.
A teoria da fotogenia criou ra(zes profundas e habituou mal o público. Criou, também, uma compreensão falsa de beleza. Limitou a idéia.
E claro que devemos procurar mostrar beleza através do cinema. Mas a compreensão de beleza deve ser muito mais vasta que a imposta pelas regras do cinema americano. Podemos perfeitamente conseguir beleza, mas a nossa custa, pondo em atividade o nosso poder de criação, aplicando os nossos próprios recursos técnicos.
Se fizermos isso, sem outra preocupação senão a de fazer arte, estaremos, por certo, fazendo coisa nova.
Nós, aqui no Brasil, devemos começar desde já a seguir um caminho melhor: produzir com absoluta independência artística e técnica; produzir filmes nos quais a semelhança técnica ou artística com teorias impostas por qualquer escola seja mera coincidência...
 
O CINEMA DO MAIS-OU-MENOS (22 de julho de 1944)
Agora que está reunida a Comissão nomeada pelo Senhor Presidente da República para ampliar as medidas e rever as leis de proteção ao cinema brasileiro, parece-me boa ocasião para expor aqui um assunto que há muito tempo ando com vontade de comentar.
Trata-se, mais propriamente, de uma grande medida de proteção, que merece estudos, pois dará, pelo menos de início, grande impulso à nossa indústria de cinema. Essa medida seria o Governo subvencionar o filme brasileiro de curta-metragem -- de enredo ou documentário.
Naturalmente, só depois de feito o censo cinematográfico do país, trabalho inicial da Comissão, segundo declarações do seu Presidente -- o professor Roquette-Pinto --, é que se poderá estudar precisamente as conveniências e vantagens dessa sugestão.
Sim, porque atualmente, no Brasil, não é apenas a produção de filmes que está sempre no mais ou menos. Tudo o que se relaciona com cinema aqui entre nós... é mais ou menos... Tudo: a produção, a sala de espetáculo, a projeção... e quanto às estatísticas, então, nem é bom falar...
- Quantos cinemas tem o Brasil? - Mais ou menos... mil e tantos.
- Quanto dá de lucro um filme estrangeiro, em média, no Brasil? - Mais ou menos... uns seiscentos mil cruzeiros.
- E uma produção brasileira de grande metragem? - Mais ou menos... quinhentos mil cruzeiros.
Ora, com o levantamento estatístico que a Comissão pretende fazer, vamos saber, ao certo, tudo isso e muitas coisas mais.
A comissão vai, logo de início, prestar a todos nós, do cinema , um grande benefício. Vamos ter dados precisos, concretos, de tudo o que se relaciona com o cinema, no Brasil.
Evidentemente, essa certeza dos dados é necessária para um estudo dos problemas, mas, com ou sem o mais ou menos, eu estou absolutamente convencido de que o Governo terá vantagens subvencionando o filme brasileiro de grande metragem.
Afinal de contas, o teatro brasileiro, por exemplo, não é subvencionado? E... Olhem que no teatro brasileiro, praticamente, não há concorrência. Para que houvesse concorrência equivalente à do cinema, seriam necessários, para cada espetáculo diário de uma companhia brasileira, sessenta outros também diários de companhias estrangeiras.
Mas voltemos ao caso da subvenção ao Cinema. Usemos as estatísticas aproximadas. Vamos aos cálculos, aos números: um filme estrangeiro dá de lucro seiscentos mil cruzeiros. Entram no Brasil cerca de cento e vinte filme filmes por ano -- são, portanto, setenta milhões de cruzeiros, ou mais, que saem daqui para fora, por ano. Com trezentos mil cruzeiros (trezentos contos) pode-se reralizar um bom filme de enredo no Brasil.
Se o Governo resolvesse subvencionar, digamos, dez filmes por ano, gastaria três milhões de cruzeiros.
Muito bem. Agora, as vantagens, os lucros. Cada filme brasileiro rende em média quinhentos mil cruzeiros. Dez filmes: cinco milhões, portanto. São, já, cinco milhões de cruzeiros que ficam aqui. Mas não é apenas isto: há outra coisa muito importante. Muito mesmo. Dez filmes brasileiros prejudicam o lançamento de vinte filmes estrangeiros, no mínimo. Isto, aliás, é fácil de explicar: Favela dos meus amores, por exemplo, permaneceu dois meses num cinema de Madureira. Esse cinema estréia dois filmes estrangeiros por semana. Logo, prejudicou, nesses dois meses, a passagem de dezesseis filmes.
A mesma Favela ficou três cinemas em cartaz num cinema da Cinelândia; prejudicou, portanto, o lançamento de três filmes estrangeiros... e por aí afora.
Ora, se dez filmes brasileiros prejudicam o lançamento de vinte estrangeiros, no mínimo, é claro que a renda dessas vinte películas - doze milhões de cruzeiros - ficará entre nós, e, mais ainda a renda dos dez filmes nacionais - cinco milhoes de cruzeiros.
Doze milhões mais cinco milhões são dezessete milhões de cruzeiros!
Vale ou não a pena estudar o caso?
Penso que vale!

 
 
FAZER EM VEZ DE DIZER (29 de julho de 1944)
Antigamente, no tempo do cinema silencioso, não eram apenas os diálogos que constituíam as legendas dos filmes, mas também, com muita freqüência, os subtítulos explicavam o significado de uma seqüência inteira e o caráter dos personagens. Naturalmente, por exigência do público, a maioria dos filmes mudos não era realizada em linguagem pura de cinema. Por isto, traziam as películas uma quantidade enorme de letreiros: títulos falados e subtítulos, como se dizia naquele tempo. Eram cem, duzentos letreiros e às vezes mais. Começaram, então, os cineastas a fazer guerra às legendas. Nào foram de todo abolidas, embora muitos diretores, como Murnau, por exemplo, tivessem realizado vários filmes sem elas. Apareciam apenas algumas inserções: cartas, notícias de jornais etc., que sempre foram consideradas como cenas. Não sei se estarei enganado, mas penso que atualmente está acontecendo a mesma coisa com o cinema falado. Os filmes tem diálogos demais. É uma falação sem parar, de fio a pavio.
A maioria dos filmes americanos e quase todos os nacionais trazem muito pouco de cinema e, se a gente fechar os olhos durante a exibição, entende tudo. É como se estivéssemos ouvindo uma novela pelo rádio. Cinema é, sobretudo, um espetáculo para os olhos. É por o pensamento em ação em vez de palavras.
A superabundância de diálogos, como antigamente a superabundância de legendas (estou convencido), deve ser levada à conta da preguiça do cenarista, que acha menos trabalhoso explicar em palavras o que poderia ser representado em ação. Mas em ação inteligente.
 
No tempo do cinema mudo, houve nos Estados Unidos uma certa tendência para as legendas engraçadas, as gag-titles.
Quando havia pontos fracos nos filmes os produtores procuravam os escritores de letreiros para encher o filme de legendas o mais espirituosas possíveis. Hoje, acontece a mesma coisa com os diálogos. Aqui mesmo, entre nós, muitos dos nossos produtores procuram escritores engraçados para encher um pouco mais o cenário [1] de diálogos espirituosos, de boas-bolas, como dizem eles. Está chegando a hora de começarmos a fazer guerra ao diálogo. É claro que não será, naturalmente, abolir o diálogo. Mas usá-lo com parcimônia, com o seu valor justo, no momento justo.
O meu amigo ouvinte preste bem a atenção e veja lá se o que eu vou dizer sobre a legenda de antigamente não se aplica ao diálogo de hoje. Evidentemente, com o sonoro pode-se realizar as duas coisas: ação e fala, que exigirá um esforço mental muito maior por parte do cenarista [2]. Mais que apenas a ação, sendo a fala-explicando-tudo o meio mais fácil e mais corrente.
Hoje, eu mesmo poderia dizer a autores de inúmeros cenários que tenho recebido: “Meu amigo, o nosso negócio não é fazer novelas de rádio pelo cinema. Menos diálogos e mais ação.”
Está aí, em tudo isto, um magnífico conselho aos nossos cenaristas: verificar se não se pode fazer em vez de dizer. Porque devemos sempre considerar que, como a legenda de antigamente, o diálogo deixa de ser um amigo para se tornar um inimigo quando usado em excesso.



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