SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 9 - Maio de 2012

LONG-SHOT - CINEMATECA DE LETRAS OU BIBLIOTECA DE IMAGENS: CINEMA E LITERATURA

MODERNISMO E CINEMA NOVO: PROPOSTA TÍMIDA DE INTERPRETAÇÃO SOBRE AS FRICÇÕES ENTRE A LITERATURA E O CINEMA... MODERNOS E BRASILEIROS

Heder Junior dos Santos

Oswald-macho (Flávio Galvão), Rosinha Lituana (Dora Pellegrino) e Oswald-fêmea (Ítala Nandi) encostam Jesus Cristo (Arduíno Colassanti) na parede, em O Homem do Pau Brasil (1982), filme de Joaquim Pedro de Andrade baseado na vida e obra de Oswald de Andrade.

Ao publicar seu primeiro livro de poesia em 1917, Mario de Andrade já no título advertia: “Há uma gota de sangue em cada poema”. Entusiasmado pelas influências diretas do nacionalismo emergente da Primeira Guerra Mundial e da subsequente e gradativa industrialização do país e de São Paulo em particular, o literato aponta de forma metafórica para o necessário esforço do artista brasileiro de seu tempo em assimilar os elementos de estrutura sócio histórica nacional e inteligi-los de forma criativa – mesmo que para isso tivesse que originar empenhos homéricos para sua realização, a seu ver, depositar “gotas de seu próprio sangue” em suas obras.

O assunto de que trata Mário de Andrade está alocado em um momento de nossa vida nacional quando se busca assinalar as potencialidades do Brasil e quando uma euforia envolvia jovens artistas e intelectuais, também animados com as festas do centenário da Independência em preparo pelo governo Epitácio Pessoa. Assim sendo, em face das “comemorações” de nosso passado não tão distante, um grupo irrequieto, motivado pela exaltação do nosso país, forma-se depois da exposição de Anita Malfatti ocorrida em 1917-18, desabrochando em manifestação em 1922. O objetivo comum colocado às artes brasileiras foi a dessacralização dos cânones que até aquele instante perduravam em nossas elaborações artísticas. O alvo a ser perseguido, confessadamente exprimido, traria, como mais tarde o autor de Macunaíma exporia, o direito inabalável à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a firmação de uma consciência criadora nacional, quer dizer, como efeito imediato daquele nacionalismo, surge a consciência criadora nacional: voltar-se para si e captar a expressão do povo e da terra sobre a qual o artista se formou.

Em Literatura e sociedade, Antonio Candido (1980), observa que o Modernismo “inaugura um novo momento na dialética do universal e do particular” (p. 119). Entendido pelo crítico como uma denominação que abarca, pelo menos, três fatores envoltos à produção artística nacional: “um movimento, uma estética e um período” (CANDIDO; CASTELLO, 1977, p. 7), o Modernismo comporta um instante em que a literatura brasileira é “muito larga no seu âmbito”, quando investiga “outros setores da vida intelectual no sentido da diferenciação das atribuições, de um lado; da criação de novos recursos expressivos e interpretativos, de outro” (1980, p. 134). Historiando o movimento, Candido (1980) o divide em três fases – a primeira, de 1900 à 1922; a segunda, de 1922 à 1945; e a terceira inicia em 1945. É da segunda fase em diante, comenta o estudioso (1980), se pode entrever “mais humour, maior ousadia formal, elaboração mais autêntica do folclore e dos dados etnográficos, irreverência mais consequente, produzindo uma crítica mais profunda” (p. 122, grifo do autor). E prossegue o crítico literário nas considerações que particularizam a abordagem desta “segunda etapa” do Modernismo (1980):

 

Sobretudo a descoberta de símbolos e alegorias densamente sugestivos, carregados de obscura irregularidade; a adesão franca aos elementos recalcados da nossa civilização, como o negro, o mestiço, o filho de imigrantes, o gosto vistoso do povo, a ingenuidade, a malandrice. É toda evocação dionisíaca de Oswald de Andrade, Raul Bopp, Mário de Andrade; este haveria, aliás, de elaborar as diversas tendências do movimento numa síntese superior. A poesia Pau Brasil e a Antropofagia, animadas pelo primeiro, exprimem a atitude de devoração em face dos valores europeus, e a emancipação de um lirismo telúrico, ao mesmo tempo crítico, mergulhado no inconsciente individual e coletivo, de que Macunaíma seria a mais alta expressão. (p. 122, grifos do autor)

 

E a propósito dos reverbérios destas predileções estéticas e políticas na literatura brasileira subsequente, interpreta Antonio Candido (1980), tem-se, pois:

 

A destruição dos tabus formais, a libertação do idioma literário, a paixão pelo dado folclórico, a busca do espírito popular, a irreverência como atitude; eis algumas contribuições do Modernismo que permitiram a expressão simultânea da literatura interessada, do ensaio histórico-social, da poesia libertada. (p. 135)

 

E já que indicado por Candido (1980, p. 122) como “a mais alta expressão”, importam também para esse trabalho, as sugestões e apontamentos que, sobre Macunaíma e o modernismo paulista, Carlos Eduardo Berriel (1990) discorreu em “A Uiara enganosa”. Para o crítico (1990), o livro de Mário de Andrade, “todo ele de segunda intenção”, trazendo palavras do próprio literato, estaria arraigado à ideologia rural da República Velha. Assim, na interpretação do autor (1990), mesmo que envolto a dada ambiência revolucionária, no sentido de apreensão e ressignificação do dado popular, entendido como matrizes referenciais no que toca o desenho de nossas peculiaridades, apresenta-se, todavia, no coração da rapsódia, em sua organização interna, em sua forma, um “triunfo mimético”. Diz Berriel (1990):

 

Quando Mario de Andrade vacila entre os gêneros, na dança entre romance folclórico e romance moderno, permite-nos supor que, na verdade, opera-se a não aceitação de um “capitalismo verdadeiro” para o Brasil, entendido como tal uma sociedade antagonizada essencialmente entre burgueses e proletários, com uma intensa divisão social do trabalho regida contratualmente em detrimento dos direitos do costume e da tradição, societária em vez de comunitária, tendente ao urbano em detrimento do rural, e acima de tudo industrializada. Na sua visão culturalista de realidade social, Mario de Andrade entendia que tal forma de vida social no Brasil equivalia à liquidação das possibilidades nacionais de virmos a constituir uma civilização própria, autônoma e original, construída a partir da cultura popular. (p. 167)

 

Para Berriel (1990), Macunaíma exprimiria, portanto:

 

[...] a experiência da oligarquia cafeeira, e sustenta-se do plasma da crise desta classe. A incompletude da oligarquia enquanto classe burguesa alimenta formalmente a obra e molda a composição das personagens. O impasse de um sistema que deseja implantar modificações – formas do novo e é incapaz de romper com o tradicionalismo – o velho –, esta contradição [...] decide o andamento da narrativa. (p. 133)

 

Apesar de afastados por mais de trinta anos e envolto a problemáticas conjunturais outras, o cinema brasileiro do final da década de 1950 e início de 1960 informa uma vontade análoga àquela perseguida pela nascente moderna literatura. A propósito das posturas adotadas pelos cineastas desse período, José Carlos Avellar (1986, p. 207) em O cinema dilacerado afirma que também haveria uma “gota de sangue” em cada película cinemanovista. E nesse jogo com a expressão metafórica, que primeiramente usada pelo poeta, aferiu à necessidade de os artistas modernistas se voltarem para o local e experimentassem outra práxis literária que não aquela ossificada nas letras nacionais; e depois pelo crítico (1986), também para destacar as novas configurações do cinema brasileiro e o papel dos novos agentes do campo fílmico brasileiro; daí pensarmos um equacionamento tímido para a expressão: “gotas de sangue: no Modernismo e no Cinema Novo”.

Mesmo que os cineastas brasileiros tenham recuperado temas e temáticas já sugeridos, trabalhados, enfrentados e trilhados pela moderna literatura, comenta Avellar (1986), os mesmos procuraram elaborar uma filmografia brasileira com formato novo, uma linguagem que fosse representativa da vida nacional, quer dizer, moderna, não no que se refere ao conteúdo, mas acima de tudo, ao tratamento formal conferido a ele. O intuito desses cineastas, similar aquele propagado por Mario de Andrade e os modernistas, era de romper com certo marginalismo artístico-intelectual, presente até então no cinema do Brasil, numa tentativa declarada de descolonizar sua feitura, uma vez que a própria tessitura (forma) era responsável pelas reverberações de nossa tradição colonial e oprimida, além de apresentar uma imagem falseada do nosso povo e cultura, ou melhor, chamemos por enquanto, desacertada. 

Entendido, pois, o Cinema Novo como uma manifestação artística alinhada diretamente ao ideário revolucionário dos anos de 1960, que almeja tornar-se, conforme frisou Raquel Gerber (1991, p. 11), em “Glauber Rocha e a experiência inacabada do Cinema Novo”, “a expressão da cultura brasileira”, também esse movimento cinematográfico se mostra como possibilidade de fraturar a importação do modelo colonizador vigente até então; falamos daqueles filmes realizados sob os padrões de consumo passivo e burguês, ordenados pela causalidade e a lógica ossificada dos grandes estúdios, os quais ditavam no Brasil, em termos econômicos e culturais, o american way of life. É nesse sentido que Bernardet e Galvão (1983) comentam, em O nacional e o popular na cultura brasileira, que a luta dos cinemanovistas se agudiza pelo fato de que não apenas transplantávamos para o nosso país tal forma fílmica, “mas idéias prontas – e formas, modelos, estruturas de pensamento - forjadas em função de realidades diversas que correspondem mal a nossa própria realidade” (p. 166). Assim, os modos de construção fílmica sob a égide, hegemonicamente, hollywoodiana e seu manifesto padrão clássico de dominação cultural, étnica, política, econômica e social ocupavam tamanho espaço na vida brasileira – 90% do tempo de projeção nas salas de cinema no Brasil, conforme Gerber (1991, p. 12) –, a ponto de não mais conseguirmos formular reflexões objetivas e sistemáticas acerca de nossa própria realidade, pensavam os cineastas.

Assim, a ligação entre a literatura e o cinema brasileiros ocorreu, segundo José Carlos Avellar (1986), pela “vontade de inventar [...] foi um sentimento irmão, foi a presença de um outro autor movido pelo mesmo impulso de descobrir e discutir o país, e de discutir em brasileiro” (p. 212). A propósito do empenho formal perseguido pelos literatos brasileiros no Modernismo e suas confluências nos modos de filmar dos diversos cineastas do Cinema Novo, Avellar (1986) observa que as inquietações vividas pelos literatos e tornadas públicas na Semana de Arte Moderna de 1922 foram, de uma forma particular, encampadas pela sétima arte brasileira. As relações estabelecidas entre movimentos artísticos amparados em códigos de realização estética distintos, comenta o estudioso, não se apresentaram como produto determinado, como se o cinema tivesse que retornar aos valores estéticos e políticos defendidos pelos escritores modernistas, mas porque diversas questões suscitadas na década de 1920 – e apontadas não só para elaboração expressiva como também para o próprio terreno social brasileiro, suas nuances e seus impasses –, pareciam não ter encontrado solução. Diz José Carlos Avellar (1986):

 

É como se parte da inquietude e criatividade de 22, abafada depois de 30 e especialmente depois de 37, tivesse renascido em forma de cinema em 60. É como se a expressão dilacerada por uma intervenção de forças tivesse se rearmado. E ao nascer de novo indicou caminhos semelhantes. (p. 224, grifo nosso)

 

Na leitura de Avellar (1986), não houve por parte dos cinemanovistas uma reflexão arguta do programa modernista da literatura, com a finalidade de, a partir dele, extirpar e fundamentar um projeto estético-cinematográfico. Embora estejam espaçados por algumas décadas decisivas para o contorno da realidade dos anos de 1960, o então moderno cinema brasileiro e a já assumida moderna literatura se entrecruzariam, conforme o estudioso, na “vontade comum de inventar um instrumental capaz de nos revelar melhor para nós mesmos” (p. 236). Assim sendo, o que justifica o diálogo e a herança modernistas dentro do quadro de forças em que está inserido o Cinema Novo é a procura pela invenção e redescoberta do Brasil, todavia, pontua o crítico: “[...] liberto deste sentimento colonizado que nos leva na maior parte do tempo a produzir (ou reproduzir) formas, questões, modelos e sistemas de trabalho a partir do que é programado nos grandes centros industriais” (p. 237).

Jean-Claude Bernardet (1979), em Cinema brasileiro, ressalta que, voltar-se para o Brasil, no contexto cinemanovista, não mais queria significar uma produção que descrevesse nossos costumes locais, “mas sim ter da sociedade brasileira uma visão crítica, analisar suas contradições numa perspectiva sociológica” (p. 75). Conforme o crítico (1979), cada película procura, tomando por base um assunto particular, “fornecer uma análise globalizante da sociedade brasileira, ou do ‘Terceiro Mundo’” (p. 75, aspas do autor). A escolha consciente por dar tratamento ao local não garantiria uma antecipada vinculação ao ideário do Cinema Novo. Enaltece Bernardet (1979), que neste caso, “o decisivo é o tratamento ideológico-estético que a temática receberá” (p. 76).

Em suma, os apontamentos por ora colocados possibilitam afirmar que a influência da moderna literatura brasileira, sobretudo do romance, enquanto fonte de investigação sobre os modos de representação da região nordestina para os cinema-novistas, como o próprio Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, etc., foi essencial na medida em que informou aos cineastas os traços da sociedade que também se debruçariam, mesmo que a forma de assimilação e apropriação daquele que detém “a câmera na mão e a ideia na cabeça” discrepe se não parcialmente em relação a determinados autores, radicalmente em relação a outros; e apesar de nos parecer bastante instigante estudar os mais possíveis reverbérios da prosa ficcional moderna na formação da perspectiva dos cineastas nos anos de 1950 e 1960, quando da realização de seus filmes, não comporta neste texto o estudo individual de várias obras, porque abarcaria pelo menos um número considerável de escritores de feição preferencialmente regionalista, como Euclides da Cunha, o próprio Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Jorge Amado, João Guimarães Rosa e que se sistêmico, procuraria discutir seus pontos de contato e afastamento, adesão e negação, assimilação e rejeição compondo um emaranhado de pontos de conflitos e impasses oriundos do lugar social de onde os mais variados discursos são emanados.

 

Referências bibliográficas:

 

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Héder Junior dos SANTOS é Mestrando em Letras na FCL da UNESP/ Assis, bolsista do CNPq e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Cinema e Literatura na FFC da UNESP/ Marília. heder_eu@hotmail.com)