SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 3 – Abril de 2004

LONG-SHOT - HUMBERTO MAURO (ou: O DIA EM QUE DERAM MESCALINA A UMA MÁQUINA DE FILMAR)

PALETÓ AMERICANO: O CINEMA COMO SONHO DE CONSUMO

Sabine Sorrel

 

Mário Mascarenhas e Cláudia Montenegro em cena de O Canto da Saudade, de Humberto Mauro (1952).

 

Este pequeno artigo não pretende, é claro, analisar a fundo a obra de Humberto Mauro ou as recentes obras do Cinema brasileiro, mas criar um primeiro paralelo de ambições e ansiedades entre cineastas de duas gerações que tem mais em comum do que parecem perceber. Se temos uma dificuldade muito grande em examinar nosso passado fica a sugestão de nos apoiarmos na experiência de nossos antecessores como forma mais lógica de não começar tudo sempre praticamente do zero. As questões aqui destacadas são atemporais, a identificação que fica com Mauro é um apoio a mais em novas empreitadas.

 

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O Cinema brasileiro nasceu e foi assassinado várias vezes no século sem conseguir estabelecer uma diversidade real que levasse à criação de mercado e público para seus filmes e de legislação mais convincente no que diz respeito à distribuição e aos incentivos de produção, mas sua história estética muitas vezes foi responsável por registrar grandes conscientizações populares e por marcos culturais de livre expressão (como no caso do Cinema Novo).

Assim, quando recentemente alguns cineastas questionaram a real existência de um Cinema brasileiro, questionando sua permanência no tempo e a pouca variedade de estilos em cada época de renascimento, obviamente se esqueceram de sua enorme importância social e política em momentos anteriores e mesmo do grande público que já foi às salas para ver as comédias da Atlântida, entre outros filmes.

A nova geração do Cinema brasileiro muitas vezes parece questionar seu passado, mas quer como em todos os outros momentos de auge do Cinema brasileiro descobrir uma saída para continuar sendo visto por um público que tem sido sempre tão difícil de alcançar, em meio à colonização dos cinemas pelo produto americano plastificado: filmes feitos para dar público em qualquer lugar, óbvios e repletos de tecnologia, que perdem em conteúdo e estética.

Esse processo de colonização deixa poucas saídas aos novos realizadores, uma vez que a supõe a supremacia da estética clean – com sua luz padronizada em imagens claras e limpas e ângulos “quadrados” demais que parecem muitas vezes molduras para o rosto de um ator ou para um cenário fulgurante – e a negação (parcial ou total) do trabalho criativo do diretor, que fica submetido a esses códigos gerais de apresentação, essa linguagem griffithiana pós-moderna (narrativa clássica com efeitos especiais) que já está introjetada no espectador. Trabalha-se cada vez mais com as elipses, retirando os “tempos mortos” do filme e transformando a ida ao cinema em um processo catártico de identificação em vários graus, que pode levar o público a comprar o CD do filme e assistir seu clip na MTV ou a se projetar totalmente na tela, perdendo por completo sua capacidade de análise crítica perante o filme. Contemporaneamente, as noções de diversão várias vezes são confundidas e aproximadas do estágio em que quem assiste já não pensa, tão somente percebe o filme. Não pensar passou a ser divertido.

Quanto a posturas frente à ditadura estética, existem basicamente duas: remar contra a maré e ser taxado de alternativo ou experimental, ou seguir o modelo e tentar atingir o público pela semelhança. Neste último renascer do Cinema brasileiro, na segunda metade da década de noventa, ainda é cedo para analisarmos qual das duas táticas dará mais certo, embora se note uma predominância dos filmes baseados na estética do cinemão americano, que tem sido privilegiados pelos grandes patrocinadores e conseguido espaço em premiações nacionais e internacionais.

De qualquer maneira, existem várias questões éticas e estéticas que se derivam daí, como por exemplo: até onde a busca por um Cinema alternativo deveria nos levar para longe do público e até onde deveríamos nos preocupar com as construções formais com que o filme se apresenta? Onde se traça a fronteira entre o alternativo e a provocação sem sentido, entre os novos pontos de vista e os filmes que subvertem roteiro e técnica em busca de uma colocação diferente? Questões contemporâneas que na verdade parecem se configurar em preocupações tão cíclicas quanto o próprio cinema brasileiro. Questões éticas que se apresentam a todos os cineastas pela difícil situação em que se encontra essa arte no Brasil. Questões que se tornam realidade na vida de todos os técnicos de cinema: desde alunos de cinema da UFF até seus antepassados ilustres, como Nelson Pereira dos Santos ou Humberto Mauro.

Os jovens realizadores deste renascimento do Cinema, como em todas as áreas profissionais atualmente, querem achar de qualquer maneira uma posição segura no mercado. Seus filmes refletem a tentativa de inovação e a timidez técnica e raras vezes caem na real experimentação que deveria ser prioridade para um realizador iniciante. É uma geração mais cuidadosa e desconfiada, que reproduz as pressões do mercado em suas produções em geral.

Em Humberto Mauro, paralelamente, podemos observar um mesmo amor pelo Cinema e as mesmas questões polêmicas refletidas em sua vida real, em sua trajetória como realizador. Foi um diretor do "cinema de autor" ao começar sua carreira em Cataguases, Minas Gerais, dono e produtor único de suas ideias, criativo e pioneiro em suas construções narrativas. Esta é a fase do "Humberto Mauro de chapéu de palha", onde podemos ver claramente seu processo de aprendizado estampado na construção diegética de seus primeiros filmes e em seu domínio crescente da linguagem cinematográfica. A técnica crua exercitada em seu ciclo mineiro de filmes se constitui no pontapé inicial para sua fama carioca, pois não consegue esconder a criatividade de seus roteiros e a audácia de algumas de suas ideias (como no caso do argumento de Ganga Bruta, por exemplo, retrato ousado da sociedade mineira, muitas vezes revelador de sua hipocrisia.)

Assim temos, contemporaneamente, exemplos da mesma vontade e amor ao Cinema que moveram Mauro nessas empreitadas que tecnicamente poderiam parecer impossíveis na época. Se não existem filmes tão crus em matéria de linguagem como os primeiros passos de Mauro em Tesouro Perdido, coisa que se deve, inclusive, em grande parte à sua dedicação, ainda reinam as dificuldades técnicas e financeiras - sua consequente superação que implica em uma dose ainda maior de criatividade.Se para Mauro a tecnologia e os conhecimentos narrativos pareciam inacessíveis, o que motiva sua busca autodidata, para a nova geração de realizadores existe uma clara censura econômica, que os impele a procurar soluções criativas.

Se para Mauro a tecnologia e os conhecimentos narrativos pareciam inacessíveis, o que motiva sua busca autodidata, para a nova geração de realizadores existe uma clara censura econômica, que os impele a procurar soluções criativas. Assim, filmes como Baile Perfumado [1] e Um céu de estrelas[2], que se tornam possíveis através de um incentivo governamental, lutam contra a narrativa clássica com ferramentas do Cinema Novo, câmweras na nmão como armas e ideias na cabeça. Seus estudos cinematográficos são claros, a experimentação nesses dois longas fica como uma ratificação do espírito inovador em cada ciclo do cinema. Ainda são realizadores, a exemplo de mauro, criando seu próprio universo imagético da melhor maneira possível, com pouquíssimos recursos.

Em sua segunda fase, uma segunda questão polêmica, o mercado e o real acesso aos recursos de maquinaria, luz etc., que fazem nosso Humberto Mauro de casaca. Por um acesso à tecnologia e uma viabilidade econômica, vemos muitos realizadores contemporâneos, organizarem a temática dos filmes que produzem dentro do quadro da narrativa clássico-linear e dentro de temáticas suaves.

Enquanto Humberto Mauro dirige o incômodo Lábios Sem Beijos, que aparece como um parêntesis mal feito em sua carreira, Bruno Barreto dirige o supostamente polêmico O que é isso companheiro?[3], cuja temática suavizada e sem perspectivas de chocar ganha o público como um thriller e ainda se aproveita da história trágica e verídica para seu marketing comercial. Um filme de produção friamente calculada e estética submetida à ditadura econômica. Mauro passou por esse dilema estético, trabalhando por um bom tempo de sua vida no esquema do grande estúdio, no Rio de Janeiro. Certamente que não nos cabe aqui discutir suas intenções ao aceitar as instruções de seu descobridor Adhemar Gonzaga, mas analisar a situação como fato recorrente na carreira de vários cineastas que trabalham sobre a pressão de seus sonhos e suas possibilidades econômicas.

Em uma terceira fase, Mauro se institucionaliza, mas agora parece mais consciente de como trabalhar criativamente em um ambiente que o pressiona. Se ele não pode escolher tão livremente suas temáticas, fará os melhores filmes sobre elas que puder imaginar, propondo tasmbém seus próprios projetos já dentro possibilidades de aceitação. No seu trabalho no INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo), Mauro está adaptado a sua realidade e parece até mesmo confortável assim. Grandes sucessos de curtametragem em sua carreira como A velha a fiar e Carro de bois se devem á experiência junto ao INCE e todo o seu conhecimento da técnica aqui ganha outro aspecto pioneiro: Mauro vai inovar o aspecto do curtametragem de documentário ou docudrama, abrindo campos de exploração sem-fim nesta área.

É semelhante a fenômenos recentes como o do curta Brevíssima História das Gentes de Santos[4], encomendado pelo governo de Santos para as comemorações do aniversário da cidade, transformado em sucesso em festivais nacionais e vencedor de alguns deles (como o RioCine, por exemplo), transcendendo sua proposta inicial. Pensando na técnica demonstrada em A Velha a Fiar, percebemos muitas semelhanças e uma grande inspiração do realizador deste curta, em particular, em Humberto Mauro. O modo como as imagens são picotadas, a rapidez humorística da narração ritmada em paralelo à música de roda no filme de Mauro.

Parcerias com o governo têm garantido possibilidades interessantes ao Cinema brasileiro contemporâneo, se bem administradas e ampliadas, a criação de pólos de Cinema alternativos ao velho eixo Rio-São Paulo, em todas as regiões do país. Quase todas as produções recentes se incluem nesse esquema de produção dos filmes que já nascem pagos.

Fica a imagem geral de que os realizadores do Cinema brasileiro são como o personagem principal de O Canto da Saudade, o humilde Galdino, sonhando com seu paletó americano, cobiçado e nunca realmente seu. Um cineasta brasileiro também é um sonhador humilde que tem o Cinema como seu sonho de consumo, seu “paletó americano”, e parece pegá-lo emprestado dos irmãos estrangeiros algumas vezes para uma festa ou ocasião especial. O Cinema nos escapa por entre os dedos e insistimos em correr atrás dele.

 

Sabine Lima Mendes Moura, codinome SABINE SORREL, é aluna do Curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense. está finalizando seu primeiro curta-metragem, O Diário Ilustrado de Carmen Ferreira. Este artigo foi escrito como tarefa de conclusão da disciplina Estudo Especifico de Cineasta Brasileiro, do Curso de Cinema da UFF, ministrado pelo professor Roberto Moura no primeiro semestre de 1998, e cujo tema específico foi Humberto Mauro.

 

© 1998 – Sabine Sorrel

© 2004 – SOMBRAS ELÉTRICAS

 



[1] Longametragem de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (1997) – cineastas da nova geração de cinema pernambucano – baseado na história de Benjamin Abraão (1890-1938), cinegrafista que registrou as únicas imagens filmadas do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião (1898-1938).

 
 
 

[2] Longametragem de Tata Amaral (1997).

 
 
 

[3] Produção de 1997, baseada no livro homônimo (1979)  de Fernando Gabeira.

 
 
 

[4] Curtametragem dirigido por André Klotzel (1996)