SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 2 - Março de 2004

VER COM OLHOS LIVRES

TELEVISÃO: ANOTAÇÕES PARA DEBATE (II)

Newton Cannito

O espectador de TV, segundo vários executivos e programadores das redes.

 (Foto de contracapa da Sinopse nº 6)

 

ARGUMENTOS PARA CAPITALISTAS (ou: porque a televisão brasileira é ruim mesmo "capitalisticamente" falando.)

 

A televisão brasileira é pré-capitalista.

A maioria das empresas de televisão brasileira são grupos familiares (ver Bernardo Kucinski – Mídia da exclusão – em a Síndrome da Antena parabólica) cujo principal interesse é controlar a opinião pública para garantir a perpetuação de seu poder político. Um programa jornalístico de denúncias, por exemplo, pode interessar ao telespectador e ter boa audiência, mas é retirado do ar por causar atritos políticos com grupos de interesse. Dessa forma muitas vezes a própria rentabilidade da emissora fica em segundo plano, já que o proprietário consegue "lucros" de outras formas,

Geralmente com favores do "Estado" brasileiro.

A televisão vive sob o controle de algumas poucas oligarquias. Esse modelo monopolista impossibilita o princípio básico do capitalismo ideal (ou capitalismo utópico): a livre concorrência.

 

Modelo de Gestão burocrático e ausência de inovação.

A estrutura pré-capitalista, monopolista e familiar das empresas de televisão brasileiras faz com que elas se organizem num modelo gerencial ultrapassado e burocrático, sem incentivo ao empreendedorismo, a inovação e ao risco. No monopólio não é preciso estar sempre se aperfeiçoando já que a concorrência não existe. Para os executivos e artistas que controlam a empresa hegemônica é mais seguro repetir indefinidamente os mesmos programas do que inovar, correr o risco de errar e colocar a cabeça a prêmio. Quando a inovação surge ela é freada, mesmo que dê certo comercialmente. Vamp foi uma novela que inovou o gênero e fez audiência, mas a experiência não foi repetida. Porque será? Com certeza é devido ao jogo interno de poder na organização. Qualquer inovação abre brechas que podem desestabilizar equipes já assentadas e baseadas em outro tipo de produto. Vamp, por exemplo, atingiu um público de jovens (não tão tradicional nas telenovelas) mas afastou o público cativo de senhoras donas de casa. Em índices absolutos o público de Vamp era maior que o tradicional do horário das sete. Vamp provou que um novo estilo de novelas podia dar ainda mais lucros à emissora. No entanto essa mudança não interessava a todos pois obrigava uma reestruturação do Departamento Comercial. Com a mudança de público os antigos anunciantes ficam descontentes. É necessário arrumar novos patrocínios mais adequados ao novo público. Com isso executivos de marketing que já controlavam as contas das empresas tradicionais vêem-se de uma hora para outra obrigados a procurar novos patrocinadores e a competir com novos executivos. Contam também com a influência externa das agências de publicidade, extremamente conservadoras na elaboração de seus planos de mídia. E por fim, os próprios autores de novelas tradicionais (que só sabem escrever desse jeito e mantém sua hegemonia na organização com o discurso de "minha novela é ruim mas dá audiência") tem sua legitimidade de público contestada e não tem interesses na mudança. Na verdade, a Globo repete suas fórmulas até a exaustão não porque o "público" quer vê-las, mas por interesse dos velhos profissionais da emissora que querem manter seu poder dentro da empresa e continuar fazendo a mesma programação que já estão acostumados há dezenas de anos.[1]

A programação da Globo está também sujeita a pressão de grupos externos. Para evitar a real representação dos problemas da nação (que podem ofender grupos da elite brasileira) a dramaturgia global se repete e evita abordar a constante mudança da realidade. No artigo "Vendo a televisão a partir do Cinema" (em A TV aos 50), Roberto Moreira fez uma análise de um capítulo de Mulher:

"A Globo insiste em ignorar nosso conflitos cotidianos. A imagem que constrói é a de um país institucional, oficial e desinteressante. Por exemplo, em um dos capítulos do seriado Mulher, uma jovem grávida faz um aborto, ato corriqueiro em todas as classes sociais, mas na ficção, diante da força da Igreja católica, a personagem acaba culpabilizada e castigada. Ora, com quem deve ser o compromisso da emissora? Com um grupo de pressão ou com seu público? Enquanto a Globo não perder seu tom oficial e chapa-branca, sua audiência vai continuar a se erodir, simplesmente porque não existe narrativa – seja jornalística, seja de ficção – sem conflito."

Já é momento da Globo perceber que é hora de mudar. A empresa deve desbancar o esquema conservador de poder interno e abrir mais espaço para a inovação. Deve também se preocupar mais com a conquista de audiência e menos com os grupos de pressão externos a ela. Ou a Globo faz isso logo ou perderá gradativamente a audiência e não conseguirá competir no mercado que se tornará cada vez mais competitivo – especialmente com a abertura para a entrada de capital estrangeiro em redes de televisão. E é claro que o que dissemos para a Globo serve de forma amplificada para todas as outras emissoras

 

Produção independente para a conquista do público

Outro erro e: pensar a produção independente é necessariamente não comercial, sempre um fracasso de público. Essa idéia acaba por restringir as empresas de televisão a capacidade de fazer programas de audiência. E isso não é verdade. verdade. Em Porto Alegre a experiência da transmissão de curta-metragens de produção independente aos sábados à tarde na RBS (afiliada da Globo) vem obtendo enorme sucesso de público. O sucesso foi tanto que o programa se sedimentou na grade de programação, tirando do ar o programa de Luciano Huck e conquistando a maior audiência no horário. O Rio Grande do Sul é o único estado brasileiro onde a transmissora da Globo supera a audiência do concorrente Raul Gil. E conseguiu isso com produção independente. No entanto, a experiência de abertura à produção independente não é adotada com sistematicidade. É apenas em casos pontuais quando se acirra a concorrência. A resistência da televisão à entrada da produção independente não é por motivos de ordem econômica e sim de ordem política. Em termos simplesmente comerciais, a produção independente, desde que bem escolhida pela emissora, render altos lucros. Mas garantir um espaço para um produtor independente na grade da produção é dar direito a voz a uma parcela da população que nem sempre compartilha dos mesmos interesses da elite proprietária da emissora.

 

A eterna justificativa do Ibope

Nos dias de hoje, o suposto "discurso comercial da televisão" está todo sustentado no Ibope, o índice de audiência. Já mostramos como esse argumento se contrapõe aos valores democráticos e mostraremos agora como ele, em alguns momentos, se contrapõe aos princípios de uma empresa capitalista. Mostraremos como o argumento da "necessidade natural de ficar submisso a medição do Ibope" serve, na verdade, para justificar a manutenção dos interesses oligárquicos dos grupos proprietários das empresas de televisão e para justificar a perpetuação de determinados tipos de programas  televisivos (no caso, os popularescos) e, conseqüentemente, para manter os "poderes" e salários de seus próprios produtores.

O Ibope é um dos institutos de pesquisa mais respeitados do país. No entanto, na prática, quando a mídia fala "índices do Ibope" ela está falando de um único tipo de pesquisa: a medição de audiência absoluta e instantânea de um único tipo de programa. Confundir Ibope com medida de audiência absoluta e instantânea é uma distorção ideológica. Há vários outros tipos de medidas de audiência que interessam ao anunciante, muitas realizadas pelo próprio Ibope.

No índice de medida absoluta a audiência medida é apenas quantitativa. Uma boa medida, no entanto, deve ser também qualitativa e definir com mais precisão o público que assiste ao programa. Uma campanha pode ter sucesso investindo num programa de baixa audiência absoluta, mas adequada ao seu produto. Determinados programas tem, por exemplo, alta audiência absoluta mas apenas de pessoas de classe baixa e não são adequados para campanhas de carros importados.

Outra coisa que a audiência absoluta não mede é a credibilidade do programa e a atenção que o público dispensa a ele. O público pode, por exemplo, assistir a determinado programa mas não confiar nas suas campanhas ou mesmo rejeitá-las. É por isso que, em alguns casos, associar um produto a um programa pode ser prejudicial à marca.

O fato é que a medição da audiência absoluta e instantânea não é o único critério de medição comercial. Não que ele não seja válido, mas ele não é o único. No entanto, ele é o único utilizado na construção do discurso que legitima a programação a televisão brasileira, especialmente os programas de auditório popularescos. Foi este tipo de distorção que acabou por levar a Globo a tirar do ar os programas do grupo Guel Arraes, que mesmo sem ter uma imensa audiência absoluta tinha um imenso potencial comercial (por interessar a um público selecionado, pela possibilidade de circular também em outras mídias – cinema, vídeo, pela legitimidade que dava a emissora e aos produtos que tinham sua marca associada ao programa etc...).

Até mesmo na avaliação do sucesso comercial da televisão a cabo as pessoas começam a utilizar a medida de audiência absoluta. Neste caso é, realmente, um completo absurdo. Como esses canais são financiados principalmente por assinantes que pagam previamente, a melhor forma de medir "o sucesso comercial" de um canal a cabo é medir a influência que ele exerce na escolha do consumidor, no momento de escolher determinado pacote de programação. A CNN, por exemplo, tem apenas 0,5% de audiência. Mas, especialmente nos EUA, ela vale muito dentro de um pacote, pois todo mundo quer tê-la disponível. Ninguém assiste a CNN o tempo todo, mas todo mundo assiste um pouquinho. Trata-se assim de outra forma de medição de chamado "sucesso comercial" de um canal. Uma forma de medição onde um canal com 0,5% de Ibope é um dos canais mais valorizados comercialmente. E essa forma nunca é citada. O discurso da necessidade natural do Ibope trata como impossível a existência comercial de um canal segmentado com audiência pequena.

Outro tipo de pesquisa que nunca é citada é a pesquisa antecipatóriua, a pesquisa sobre o que o público gostaria de ver. No período de implantação da Rede Globo foi esse tipo de pesquisa que fez com que a empresa conquistasse o público. Homero Sanchez era o homem que coordenava a pesquisa da Rede Globo nessa época. Em depoimento no livro TV ao Vivo ele fez uma crítica à simples medição de audiência de programas: "O que chamo de trabalho a posteriori, ou seja, a constatação do índice de audiência dos programas – o que era insuficiente, porque, se um programa atingia um determinado índice de audiência, qualquer outro parecido ia ao ar. Assim, não havia variedade. Dessa forma, percebi que estávamos apenas 'contando narizes', como diziam os americanos. Constatávamos o óbvio, quando o importante não era trabalhar depois do fato, mas descobrir como prever o fato. Ou melhor, em lugar de examinar a audiência de um programa, procuraríamos prever essa audiência. Ao simplesmente constatar o óbvio, não se abrem perspectivas. Apenas copia-se a programação de uma emissora líder, que chamamos de programação espelho".

Na descrição de seu trabalho Homero mostra como a Rede Globo em seu período áureo não apenas reproduzia o que o público já assistia (a programação-espelho) mas procurava também descobrir antecipadamente os programas que o público queria ver e ainda não estavam na sua grade ou que o público queria ver mas nem sequer sabia ainda. E é o que garante a inovação dos produtos. Esse tipo de pesquisa não existe mais. Só existiu nos primórdios da televisão brasileira, onde ainda existia concorrência entre os diversos canais. Hoje, com o regime de monopólio vigente, não é mais necessário que a empresa inove nada. Sua principal preocupação é manter o status quo.

Ao que parece o discurso da "necessidade natural" de ficar submisso ao Ibope (entendido como medição de audiência absoluta e imediata) não atende apenas a interesses comerciais. Como vimos, comercialmente falando, esse é um discurso limitado. O que esse discurso faz é justificar o modelo de televisão que está aí, evitando a inovação e sedimentando o poder dos que já o realizam.[2][2]

 

Segunda conclusão: Se a televisão brasileira realmente atendesse aos interesses comerciais ela seria muito mais diversificada do que ela hoje. Ela teria muito mais qualidade. A TV brasileira é ruim pois, ao invés de atender ao gosto do público, ela atende a grupos de interesse, internos e externos à própria organização.

 

  NEWTON CANNITO é pesquisador de Cinema, membro do Grupo de Cinema de São Paulo e da Associação Cultural Educação e Cinema (Educine) e articulista da revista Sinopse.

 

 


 

© 2001 – Newton Cannito.

  © 2001 – revista Sinopse.

© 2004 – SOMBRAS ELÉTRICAS

Permitida a reprodução, desde que citada a fonte.



[1] A exceção mais notável e digna de nota é Daniel Filho. Ele que na década de 60 e 70 foi o principal inventor do padrão de direção das ficções globais (ver curta mas excelente análise no artigo de Roberto Moreira: "Vendo a televisão a partir do cinema", em A TV aos 50) Daniel filho nunca parou de inovar. Quando impossibilitado pela estrutura arcaica da Rede Globo, Daniel fez uma incursão pela produção independente e dirigiu um dos melhores seriados da década de 90, Confissões de Adolescente. Recentemente se destacou como um dos principais apoiadores da iniciativa inovadora do núcleo Guel Arraes. Daniel Filho, por estar permanentemente aberto a inovações, é um exemplo do profissional exigido hoje por qualquer empresa que pretende ser realmente competitiva. E ao que tudo indica ele vem encontrando imensas dificuldades de inovar dentro do esquema de gestão conservador a Rede Globo.

 
 

[2] Em "Formar Opinião", Patric Champanhe discute amplamente as chamadas pesquisas de opinião pública. Ele mostra como o próprio conceito de opinião pública foi construído historicamente e tem como objetivo justificar a manutenção do poder de determinado grupo dominante.